quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Quando Lisboa Tremeu. 1755, o Dia de Todos os Santos vai mudar a vida… Domingos Amaral. «Sentia um dom natural para atrair as mulheres, mas naquela manhã nem isso o estava a animar. Afinal, esse tinha sido o motivo da sua perdição. Seduzira a mulher de um almirante e o escândalo fechara-lhe as portas da marinha inglesa…»


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«Ao longo daqueles dias que eu e irmã Margarida passámos juntos, depois do grande terramoto, senti várias vezes ciúme. Mas o mais intenso e perturbador foi-me causado pelo inglês. O capitão Gold, que se cruzou com os nossos caminhos, um homem que tentámos roubar e que depois nos armou uma cilada. É também por causa dele que eu, um ano depois desses acontecimentos, continuo preso. Mas isso quase não tem importância comparado com a força do ciúme que ele me conseguiu gerar no coração. A passagem do tempo trouxe-me, porém, alguma calma e lucidez. Sou hoje capaz de descobrir-lhe méritos, de reconhecer que era um homem bem-parecido, bonito mesmo, alto e com uns olhos azuis brilhantes e um cabelo solto e anárquico, que o faziam ao mesmo tempo parecer estouvado e meigo.
Sou também capaz de aceitar que era um talentoso sedutor de mulheres. Mesmo com Lisboa em ruínas, milhares de mortos nas ruas e um caos desolador à nossa volta, mantinha as suas artes de galanteio, os seus truques experientes em questões de saias. Sabia falar ao coração das mulheres, e eu estava consciente disso desde o primeiro momento. Apesar de ser de certa forma nosso prisioneiro e de várias vezes ter tido vontade de o matar, tal era o meu ciúme, à medida que nos foi contando a sua história, e mesmo sem querer, fui-me afeiçoando a ele.

Na manhã do Dia de Todos-os-Santos, o capitão Gold acordara maldisposto. Já passava das nove horas e ainda estava na cama, na sua casa de Santa Catarina, de onde se podia ver o rio Tejo e os barcos. E era isso que o deixava maldisposto: a visão de dezenas de embarcações e a saudade que lhe davam dos seus tempos de marinheiro, que agora lhe eram negados. Proibido de comandar um navio de Sua Majestade, sentia a punição como uma amputação de uma parte do corpo.
Irritado, escutara na cama os barulhos domésticos. A mulher devia andar no andar de baixo, a preparar-se para sair. Estava há muito tempo desinteressado dela e arrependido de a ter trazido de Inglaterra. Melhor teria sido que ficasse em Londres, com a sua família, em vez de o acompanhar, naquela azia magoada. Tinha a certeza de que fora isso que a fizera abortar mais uma vez, impedindo-o de ter um filho. Pelo menos um legítimo, pois desconfiava de que em Londres devia ter alguns desconhecidos...
Sentia um dom natural para atrair as mulheres, mas naquela manhã nem isso o estava a animar. Afinal, esse tinha sido o motivo da sua perdição. Seduzira a mulher de um almirante e o escândalo fechara-lhe as portas da marinha inglesa, condenando-o a uma viagem apressada para Portugal, uma espécie de exílio voluntário para escapar à sede de vingança do almirante, que era bem relacionado na corte e prometera fazer-lhe a vida negra. Lisboa apareceu como uma escapatória. Conhecia bem o embaixador, escrevera-lhe e metera-se a caminho logo que foi possível, trazendo a mulher consigo. Zangada, amarga e sempre a moer-lhe o juízo.
Três anos tinham passado, mas, apesar da vida boa que levava, Gold continuava triste por não poder navegar. Capitanear um barco inglês estava fora de questão e não se queria vender aos franceses ou aos espanhóis. Quanto aos portugueses, seguira os conselhos do embaixador, evitando envolver-se nas tensões que começavam a aparecer entre as duas comunidades desde que o monarca José I sucedera ao pai como rei. Assim, limitava-se ao seu trabalho numa casa comercial, uma labuta entediante e minuciosa, executada entre quatro paredes, e que o deixava macambúzio e arreliado.
É certo que, trabalho à parte, a vida até era divertida. Nomeou, sem qualquer pudor, as várias amantes que mantinha em Lisboa. Além da criadita, dormia regularmente com uma marquesa casada, amiga de João da Bemposta, irmão do rei; namoriscava freiras nas grades, em Odivelas ou em Alcântara; e ainda lhe sobravam noites para uns encontros furtivos com a mulher de um comerciante inglês, a senhora Locke. Aliás, na véspera do terramoto, encontrara-se com ela para uma folia, confirmou sorridente, com aquela gabarolice maliciosa, típica dos conquistadores bem-sucedidos.


No seu relato daquela trágica manhã, tantas eram as façanhas para exibir que demorou algum tempo até chegar ao terramoto. Regressou à criada, que lhe entrara no quarto, a sorrir, e lhe perguntara se desejava ovos com bacon. Gordita e roliça, Gold esquecia muitas vezes o nome dela. Sim, queria o breakfast, respondeu antes de a questionar: - Ó menina, my wife, meu mulher, vai ao missa? - Sim, senhor Gold, vai à missa. – Tá claro, of course, today feriado… Era feriado católico, mas não protestante. O que levava a mulher a ir a uma missa católica? Era-lhe cada vez mais difícil compreendê-la. Para Gold, ela estava a absorver as piores características dos portugueses católicos, a sua beatice, as suas rezas, a sua subserviência aos padres, aos frades, aos jesuítas, à Inquisição (maldita), às velas, aos incensos, a toda essa multiplicidade de símbolos idiotas que idolatrizavam. Encolheu os ombros e ordenou à criada: - Well, tá bem. Traz então the eggs. E very mexidos? Tás a perceber, ó girlIn Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, o Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras (Oficina do Livro), 2010, ISBN 978-972-46-1986-6.

Cortesia de Casa das Letras/JDACT