«Ao longo daqueles dias que eu e irmã Margarida passámos juntos, depois
do grande terramoto, senti várias vezes ciúme. Mas o mais intenso e perturbador
foi-me causado pelo inglês. O capitão Gold, que se cruzou com os nossos
caminhos, um homem que tentámos roubar e que depois nos armou uma cilada. É
também por causa dele que eu, um ano depois desses acontecimentos, continuo
preso. Mas isso quase não tem importância comparado com a força do ciúme que
ele me conseguiu gerar no coração. A passagem do tempo trouxe-me, porém, alguma
calma e lucidez. Sou hoje capaz de descobrir-lhe méritos, de reconhecer que era
um homem bem-parecido, bonito mesmo, alto e com uns olhos azuis brilhantes e um
cabelo solto e anárquico, que o faziam ao mesmo tempo parecer estouvado e
meigo.
Sou também capaz de aceitar que era um talentoso sedutor de mulheres.
Mesmo com Lisboa em ruínas, milhares de mortos nas ruas e um caos desolador à
nossa volta, mantinha as suas artes de galanteio, os seus truques experientes
em questões de saias. Sabia falar ao coração das mulheres, e eu estava
consciente disso desde o primeiro momento. Apesar de ser de certa forma nosso prisioneiro
e de várias vezes ter tido vontade de o matar, tal era o meu ciúme, à medida
que nos foi contando a sua história, e mesmo sem querer, fui-me afeiçoando a
ele.
Na manhã do Dia de Todos-os-Santos, o capitão Gold acordara
maldisposto. Já passava das nove horas e ainda estava na cama, na sua casa de
Santa Catarina, de onde se podia ver o rio Tejo e os barcos. E era isso que o
deixava maldisposto: a visão de dezenas de embarcações e a saudade que lhe
davam dos seus tempos de marinheiro, que agora lhe eram negados. Proibido de
comandar um navio de Sua Majestade, sentia a punição como uma amputação de uma
parte do corpo.
Irritado, escutara na cama os barulhos domésticos. A mulher devia andar
no andar de baixo, a preparar-se para sair. Estava há muito tempo
desinteressado dela e arrependido de a ter trazido de Inglaterra. Melhor teria
sido que ficasse em Londres, com a sua família, em vez de o acompanhar, naquela
azia magoada. Tinha a certeza de que fora isso que a fizera abortar mais uma vez,
impedindo-o de ter um filho. Pelo menos um legítimo, pois desconfiava de que em
Londres devia ter alguns desconhecidos...
Sentia um dom natural para atrair as mulheres, mas naquela manhã nem
isso o estava a animar. Afinal, esse tinha sido o motivo da sua perdição.
Seduzira a mulher de um almirante e o escândalo fechara-lhe as portas da marinha
inglesa, condenando-o a uma viagem apressada para Portugal, uma espécie de exílio
voluntário para escapar à sede de vingança do almirante, que era bem
relacionado na corte e prometera fazer-lhe a vida negra. Lisboa apareceu como
uma escapatória. Conhecia bem o embaixador, escrevera-lhe e metera-se a caminho
logo que foi possível, trazendo a mulher consigo. Zangada, amarga e sempre a moer-lhe
o juízo.
Três anos tinham passado, mas, apesar da vida boa que levava, Gold
continuava triste por não poder navegar. Capitanear um barco inglês estava fora
de questão e não se queria vender aos franceses ou aos espanhóis. Quanto aos
portugueses, seguira os conselhos do embaixador, evitando envolver-se nas
tensões que começavam a aparecer entre as duas comunidades desde que o monarca José
I sucedera ao pai como rei. Assim, limitava-se ao seu trabalho numa casa
comercial, uma labuta entediante e minuciosa, executada entre quatro paredes, e
que o deixava macambúzio e arreliado.
É certo que, trabalho à parte, a vida até era divertida. Nomeou, sem
qualquer pudor, as várias amantes que mantinha em Lisboa. Além da criadita,
dormia regularmente com uma marquesa casada, amiga de João da Bemposta, irmão
do rei; namoriscava freiras nas grades, em Odivelas ou em Alcântara; e ainda
lhe sobravam noites para uns encontros furtivos com a mulher de um comerciante
inglês, a senhora Locke. Aliás, na véspera do terramoto, encontrara-se com ela para
uma folia, confirmou sorridente, com aquela gabarolice maliciosa, típica dos
conquistadores bem-sucedidos.
No seu relato daquela trágica manhã, tantas eram as façanhas para exibir que demorou algum tempo até chegar ao terramoto. Regressou à criada, que lhe entrara no quarto, a sorrir, e lhe perguntara se desejava ovos com bacon. Gordita e roliça, Gold esquecia muitas vezes o nome dela. Sim, queria o breakfast, respondeu antes de a questionar: - Ó menina, my wife, meu mulher, vai ao missa? - Sim, senhor Gold, vai à missa. – Tá claro, of course, today feriado… Era feriado católico, mas não protestante. O que levava a mulher a ir a uma missa católica? Era-lhe cada vez mais difícil compreendê-la. Para Gold, ela estava a absorver as piores características dos portugueses católicos, a sua beatice, as suas rezas, a sua subserviência aos padres, aos frades, aos jesuítas, à Inquisição (maldita), às velas, aos incensos, a toda essa multiplicidade de símbolos idiotas que idolatrizavam. Encolheu os ombros e ordenou à criada: - Well, tá bem. Traz então the eggs. E very mexidos? Tás a perceber, ó girl?» In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, o Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras (Oficina do Livro), 2010, ISBN 978-972-46-1986-6.
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