domingo, 30 de dezembro de 2012

Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. «Andam-se às razões frias pela rama, um vilancete brando, ou seja, um chiste, letras às invenções, motes às damas; uma pergunta escura, esparsa triste, tudo bom, quem o nega...»

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«Melhores são os cozinheiros em audições que os confessores; os cozinheiros são artistas da paciência em lumes brandos ou fervuras... Da amálgama dos condimentos operam sábias alquimias... O cozinheiro-mor ouviu-o. Longa e atentamente o ouviu, em silêncio respeitoso mas pleno de critérios. - Meu senhor - disse por fim, em pausa aproveitada. - Vim recentemente das Índias, terras bravas onde o Mundo é do avesso e em nada se parece com terras cristãs que conhecemos.
  • Os homens ali são de outras e muitas cores e têm outros cheiros, outros feitios de espírito e de corpo, e outras crenças. Até os animais, por lá, são inspirações de demónio estrangeiro que ora os agigantou ora os afeou e afeleou de tal sorte que pormenores monstruosos em alguma de todas as lendas descritas se lhes podem semelhar... As Índias são terras de feitiços mas não desprovidas de ensinamentos. De lá trouxe, permita-me confessá-lo e assim sendo incorrer na imodéstia imprópria da minha condição, algumas sabedorias. Olhai...
O cozinheiro levantou o saiote que lhe cobria as pernas e tirou, debaixo deste, um saquinho de pano. E disse com mistérios na voz, nos modos: - Nunca experimentei estes pós. Garantiram-me a sua força, a sua eficácia. Que fazem do ser mais fraco um vencedor, mo disseram... Tomai-os.
Ataíde aquiesceu, medroso como sempre, a custo, tremendo-lhe as mãos, os pensamentos, os desejos... O cozinheiro estimulou-o e, como se ele hesitasse, misturaram juntos os pós numa pouca de água, água turva que se foi muito mais turvando na mistura até se tornar um prodígio opaco. Ataíde tragou a mistela de um trago. Esperou… Como se nada sentisse findo algum tempo pediu esclarecimento. - A seu tempo, meu senhor, a seu tempo.
Ataíde desistiu da espera, conformado, mais uma vez a sorte abandonara-o, e desiludido recolheu-se, finalmente, aos seus aposentos. Durante muitas horas nada sentiu, pois nada visivelmente se passou. Os caminhos do sangue, todavia, fervilhavam numa transformação de efeitos imprevisíveis…
Já a noute era bem cerrada, e essa noute era, por sinal, de lua nova, negrume absoluto, a cabeça começou a rodar-lhe, o corpo a inchar, o sangue novo a revelar-se-lhe... Ideias que nunca tivera e vontades que nunca possuíra treparam-lhe pelos membros. A pele era agora um cortiço e Ataíde agastava-se em mil mordeduras. Agitou-se inteiro. Em certos sítios muito próprios da sua pele sempre dócil ardia como labareda, eram dentes de diabos que se cravavam na carne. Desvairou. Abriu a porta num rompante e chamou, esganiçado, o guarda-sentinela que costumava fazer vigílias no corredor. O guarda acudiu e Ataíde trouxe-o consigo, de arrasto... […]

Era a Páscoa e El-Rei resolveu festa. El-Rei decidira: uma festa grandiosa que até as varizes se me varrem da lembrança! - Que corra o vinho, que se assem carnes, de javali, de veado, de cabrito, de faisão. Que se faça a festa, com poetas de recital e músicos tangedores. Porquê? Porque talvez assim as varizes se entretenham e a chateação diminua...
Frei Nicolau emborrachou-se como há muito não fazia. Vomitava e bebia, bebia e vomitava. Pelo meio incitava a que se tocasse e dançasse. El-Rei encomendou poetas. E a um pediu que recitasse. Não pediu a um qualquer. Pediu a um de grande porte, que obtivera o grau de doutor em leis com tal acerto que passara da carteira de aluno aplicado para a cátedra de professor. Além das leis, era um desses que conhecia bem o grego e o latim, e que vivia na Corte e que gostava de momos e serões, do primor dos motes e dos ditos delicados, então muito em voga. Era o Sá, poeta que sentira desde muito cedo o chamamento das musas, começando a compor cantigas' esparsas e vilancetes.
 - Irra, Sá, recita-me um poema! - Comandou El--Rei de taça ao alto para que um serviçal lha enchesse pela décima vez nessa noute. E Sá recitou um vilancete:

Acustumei me a meus males:
e eu assi acustumado a eles
andão por me apartar d'eles.
Não ha a fortuna vergonha
do mal que assi fazia;
ha medo que ua pezonha
de que eu ja agora bebia.
Quando os meus males sentia,
quando me queixava. d'eles,
deixava me jazer n'eles.

Agora que o custume
(que al não) mos tinha abrandado,
virão me andar sem queixume,
provão me no meu cuidado.
Que bem é de acustumado
os males calar com eles!
E assim me matem por eles!

O rei ficou danado. - Pois quereis que vos açoite? Que merdança é essa de males, Peçonha, queixume? Sá, sem se abalar, ripostou:

Andam-se às razões frias pela rama,
um vilancete brando, ou seja, um chiste,
letras às invenções, motes às damas;
uma pergunta escura, esparsa triste,
tudo bom, quem o nega...

El-Rei, exasperado, ergue-se e cambaleou em direcção ao poeta. - Vou-te desfazer esse traseiro ao pontapé, irra! Eu te dou a esparsa triste... Sá safou-se. Saiu da sala acabrunhado. Sentou-se cá fora a um canto e, muito bucólico e lírico, soltando azeda lágrima, disse entre dentes:

Dos motes o primor e altos sentidos,
os ditos delicados cortesãos,
que é deles? Quem lhes dá somente ouvidos?

In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT