«Sob o sol furioso de Agosto, a hoste prossegue, os cavalos ferem a terra
com as patas e levantam mais poeira que começa logo a rodopiar. É um dia de sol
e de vento. Sob o sol furioso de Agosto, a hoste prossegue, os cavalos ferem a
terra com as patas e levantam mais poeira que começa logo a rodopiar. É um dia
de sol e de vento. No interior da tenda real, que oscila ligeiramente a cada assalto
da ventania, Beatriz olha, devagar, à sua volta. O arcebispo, que hoje trocou o
elmo pela mitra e a cota de malha pelas vestes eclesiásticas, parece dormir
solenemente encostado ao báculo. O escrivão consulta com nervosismo disfarçado o
documento que redigiu durante a noite, há-de perguntar a si mesmo se não deverá
ainda fazer-lhe emendas. O olhar da Rainha passa depois, agora à pressa, como a
fugir-lhes, por Pero Coelho, por Diogo Lopes Pacheco e pelo meirinho-mor,
Álvaro Gonçalves, que, pensa ela, não deveriam encontrar-se ali. A sua presença
é um gesto de soberba inútil, talvez perigoso. Porque eles estavam presentes em
Santa Clara, quando foi pronunciada a sentença, e isso basta para valer-lhes o
ódio mortal do Infante. A todos por igual, ainda que um ou outro tenha menos
culpa no feito que então se fez. Mas quem pode agora falar de culpas, com o
reino retalhado pela guerra que um filho moveu ao pai?
Neste espaço restrito em que as respirações se chocam não há murmúrios
nem chamamentos, a tensão é um fardo que pesa sobre todos e lhes rouba a força
para falar. Os atalaias acabam de avisar que avistaram o Infante e a sua gente.
A Rainha observa o rosto inteligente de Álvaro Pais, que tomou discretamente
uma posição recuada de onde pode tudo observar sem ser notado. Também ele a
fita, com uma expressão de encorajamento. Uma corte devia ter mais homens assim,
tranquilos, de cabeça fria e capazes de fazer do interesse geral a ambição das
suas vidas, prontos sempre a calar a paixão e a dar ouvidos à razão. Reprimindo
um suspiro de fadiga, Beatriz recosta-se na cadeira e levanta a mão num gesto
lento até que os dedos tocam de leve a cabeça. Como aquela coroa a oprime,
neste momento. Como a esmaga.
Não, reflecte, não é o diadema, pois está já afeita ao seu peso. É
outra coisa. O cansaço de uma vida gasta a tentar calar a voz das espadas, a
tentar fazer definhar ódios, malquerenças, ambições que lançam uns contra os
outros os homens da sua família e atrás deles os seus reinos. O marido contra o
sogro, o marido contra o sobrinho e agora, mágoa suprema, o seu próprio filho
contra o pai. Tal como este se levantou um dia contra o seu pai, El-Rei Dinis.
Pecados velhos pagos com novos pecados. Mas, para ela, uma vida inteira
de preces, conselhos, apelos, súplicas, graves conciliábulos com bispos,
grandes senhores, conselheiros. A criminosa, obsessiva paixão do filho pela Castro. Foi culpa nossa, quem sabe,
fizemos tudo o que não devíamos ter feito. Ao primeiro olhar apercebido, dele
para ela, devíamos tê-la banido do reino, nesse mesmo dia, e em vez disso
obriguei-a a ser madrinha do meu primeiro neto, como se um feitiço urdido pelo
demo pudesse quebrar-se tão facilmente. Quando ele a tomou como sua e a levou
para Coimbra, em desafio à lei de Deus e à lei do reino, devíamos tê-los então
apartado e não o fizemos com força bastante.
O que ganhámos depois com a morte dela, senão mais escândalo e mais
mortes? E três bastardos órfãos, três crianças inocentes privadas da mãe. Duas
dessas crianças inocentes são varões e quando forem homens feitos terão a apoiá-los
o poder dos Castro. Os bastardos, na sua inocência, são o mais terrível castigo
com que Deus pune o adultério de um rei. Quantas vezes Beatriz viu Portugal,
Castela e Aragão divididos, incendiados, ensanguentados pela simples presença
desses pequenos anjos que depois se tornam homens e ganham ambição ou excitam a
ambição dos outros.
Os bastardos. Ah, não exigir a honra aos homens aquilo que exige às
mulheres. Como seria diferente o mundo se a honra de homens e mulheres fosse a
mesma. Toques de charamela, vozes, chiar de arreios. Ele chegou, estará aqui em
breves instantes. Empenhou-me a sua palavra, há-de jurar. Não poder eu tomá-lo
nos meus braços e beijá-lo. Isso é impossível, bem o sei, pois não é só meu
filho, é também o Infante, herdeiro destes reinos, que se alevantou em guerra
contra El-Rei, seu pai e seu senhor. Mas como é duro ter de ser Rainha antes de
poder ser mãe». In João Aguiar, Inês de Portugal, pequenos Prazeres, Edições ASA, 1997,
ISBN 972-41-1822-3.
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