sábado, 15 de dezembro de 2012

Leituras. Kaputt. Curzio Malaparte. «No meio das árvores do parque, sobre o fundo desta pálida e subtil paisagem nórdica, as cópias do “Pensador”, de Rodin, e da “Vitória de Samotrácia”, esculpidas num mármore muito branco, evocavam de uma maneira inesperada o gosto parisiense de um fim de século decadente…»



(1898-1957)
Prato, Itália
jdact e cortesia de wikipedia

Os cavalos
O mundo de Guermantes
«O Sol escondia-se. Havia já muitos meses que eu não via o pôr-do-sol. Depois do longo Verão do Norte, depois desse dia ininterrupto, infindável, sem auroras, sem poentes, o céu começava enfim a enlanguescer por sobre os bosques, o mar, os telhados da cidade. Qualquer coisa como uma sombra, e talvez simplesmente o reflexo de uma sombra, a sombra de uma sombra, se condensava a oriente. A noite nascia pouco a pouco, meiga e delicada, e o céu, a ocidente, incendiava-se sobre as florestas e os lagos, encarquilhando-se ao fogo do poente como uma folha de carvalho ao cansado fogo do Outono.
No meio das árvores do parque, sobre o fundo desta pálida e subtil paisagem nórdica, as cópias do Pensador, de Rodin, e da Vitória de Samotrácia, esculpidas num mármore muito branco, evocavam de uma maneira inesperada e peremptória o gosto parisiense de um fim de século decadente e parnasiano que tomava, em Waldemarsudden, uma atitude arbitrária e capciosa. Na vasta sala onde nos encontrávamos, com a fronte apoiada aos vidros das grandes janelas, a sala onde o príncipe Eugénio estuda e trabalha, um eco sobrevivia também, enfraquecido, fora de moda, do esteticismo parisiense do ano de 1888, aproximadamente, época em que o príncipe Eugénio tinha um atelier em Paris, morava na Rua Monceau, com o nome de Oscarson, e em que era aluno de Puvis de Chavannes e de Bonnat. Algumas telas da juventude encontravam-se suspensas nas paredes:
  • paisagens da Ile-de-France, do Sena, do vale de Chevreuse, da Normandia, retratos de modelos com os cabelos esparsos pelos ombros nus, à mistura com quadros de Zorn e de Josephson.
Ramos de carvalho de folhas vermelhas raiadas de ouro saíam de ânforas de porcelana de Marieberg e de vasos de Rorstrand, pintados por Isaac Grunevald no estilo de Matisse. Uma grande chaminé de cerâmica branca, de frontão ornado com um relevo com duas flechas cruzadas, encimadas por uma coroa nobiliárquica fechada, ocupava um dos cantos da sala. Num vaso de cristal de Orefors florescia uma magnífica mimosa trazida pelo príncipe Eugénio de um jardim do Sul da França. Cerrei os olhos por um momento: era realmente o perfume da Provença, de Avignon, de Nimes, de Arles que eu respirava: o perfume do Mediterrâneo, da Itália, de Capri.
 -Eu também gostaria-de viver em Capri, como Axe1 Munthe, disse o príncipe Eugénio. - Parece que ele vive rodeado de flores e de-pássaros. Pergunto-me às vezes, acrescentou sorrindo, - se ele ama verdadeiramente as flores e os pássaros. -As flores amam-no muito - respondo eu. - E os pássaros também o amam? - Tomam-no por uma velha árvore - volto eu a responder, por uma árvore ressequida.
 - O príncipe Eugénio sorria com os olhos semicerrados. Como todos os anos sucedia, Axel Munthe passara o Verão no Castelo de Drottningholm, onde era hóspede do rei, e partira para a Itália havia poucos dias. Eu lamentava não o ter encontrado em Estocolmo. Em Capri, cinco ou seis meses antes, nas vésperas da minha partida para a Finlândia, subi à Torre de Materita para saudar Axel Munthe, que devia dar-me algumas cartas para Sven Heddin, Ernst Manker e outros amigos de Estocolmo. Axel Munthe esperava-me sob os seus pinheiros e os seus ciprestes de Materita: de pé, direito, lenhoso, rebarbativo, o dorso coberto pelo seu velho casacão verde, um mau chapéu posto de lado sobre os cabelos despenteados, os olhos vivos, maliciosos, escondidos pelos óculos pretos que lhe davam um pouco desse ar misterioso e ameaçador que têm os cegos.
Munthe segurava pela trela um cão-lobo e, ainda que o cão parecesse manso, logo que me apercebeu no meio das -árvores pôs-se a gritar que me não aproximasse. - Vá-se embora! - gritava ele com grandes gestos de mão e exortando o cão a não se atirar a mirn, a não me despedaçar, como se fizesse um grande esforço para o reter, como se já não pudesse mais resistir aos furiosos sacões que dava à trela esta besta-fera. Esta olhava-me, pacífica e alegre, dando ao rabo, enquanto eu avançava lentamente, simulando medo, muito satisfeito por me prestar a esta inocente comédia. Axel Munthe, quando está de bom humor, diverte-se a improvisar pequenas cenas picarescas para troçar dos seus amigos». In Curzio Malaparte, Kaputt, Edição Livros do Brasil, Colecção Dois Mundos, Lisboa.

Cortesia E. Livros do Brasil/JDACT