«Não te preocupes, eu aviso-o, e depois empreendeu o caminho novamente
em direcção a casa de Ágaton,
enquanto Sócrates ficava ali, sentado, imóvel, em atitude contemplativa,
a ver como o pequeno Aristodemo era
tragado pela imensidão da noite. - Já sabes como ele é - insistiu Aristodemo perante Ágaton. - Mas não te preocupes, de certeza que estará aqui em
breve. Sócrates não perderia um banquete nem por todo o ouro do mundo.
Deitados em mantas e almofadas, esfomeados, excitados pelos gostosos
manjares que o dono da casa oferecia, os convidados foram recebidos com o
melhor da cozinha ateniense durante o decorrer de uma noite infindável e
abundante em risos, cantos, celebrações e burburinho. Durante quase três horas
desfilaram carnes avermelhadas e estaladiças, o delicioso aroma dos molhos e o
vinho, sobretudo o vinho, em largas e coloridas vasilhas que iam e vinham com
alegre despreocupação. E já o banquete chegava ao fim, no meio de barrigas
ostentosas, faces coradas, rostos encharcados em suor, quando a figura do velho
Sócrates
espreitou sob o marco da porta, com o sorriso afável, o braço levantado, a
expressão ainda vagamente absorta.
- Por todos os deuses, velho
amigo! - rugiu Ágaton assombrado. -
Já era tempo de chegares! - E baixando o tom de voz, acrescentou: - Mas vem,
senta-te ao pé de mim e deixa-me desfrutar da tua companhia.
O velho sorriu mais uma vez, comprazido pelo convite, e foi sentar-se
junto ao dono da casa enquanto um silêncio inquietante seguia os seus passos.
Todos o observavam intrigados, expectantes, demasiado curiosos em saberem que
estranhos e profundos pensamentos teriam retardado a sua chegada ao banquete.
Olhavam o seu rosto um tanto enigmático e distraído, talvez ainda enredado em
alguma abstracção confusa; seguiam-lhe os passos à espera que se decidisse a falar
disso perante a assistência que aguardava ansiosamente os seus segredos, mas o
velho mestre não se deu por convencido e continuou a andar até se sentar junto
de Ágaton.
Sim, por vezes actuava assim, recusando-se a desvendar as suas ideias
aos outros; talvez as julgasse transcendentes, demasiado simples e inúteis,
fruto de uma inspiração efémera que acabaria por se diluir nos meandros do seu
espírito e que talvez merecesse ser revista, examinada, meditada ainda mais profundamente
antes de a dar a conhecer. O caso é que não abriu a boca e sentou-se junto ao
dono da casa acomodando-se entre umas almofadas. Com o canto do olho viu que todos
o observavam com apreensão e expectativa, mas mesmo assim permaneceu calado e
metido consigo, enquanto as suas mãos agarravam uma suculenta perna de
cordeiro, recém-saída do forno e a escorrer sangue, e dedicou-se a apreciar os
músicos que animavam o banquete com liras e flautas.
Olhava os músicos e ele próprio era olhado, olhado pelos outros convidados
que não tiravam os olhos daquele homem estranho e singular, de pétrea armação
óssea, de crânio redondo e firme como o de um touro. Na verdade, o seu rosto
selvagem e animalesco chamava a atenção, aquelas mandíbulas de cão que agora
mastigavam com gosto, que devoravam os nacos de carne rugosa, fumegante, e cujo
suco lhe escorria por entre as barbas. Todos viam o seu olhar um tanto
insolente e profundo, aqueles olhos escuros e fugidios, reveladores de algum mistério
insondável que parecia incompreensível ao comum dos mortais. Olhavam para a sua
figura grotesca e fascinante e contudo tão sólida, tão indelével que se
assemelhava à de um deus, talvez ao aleijado e horrível Hefesto, que habitava as profundezas encobrindo a sua fealdade, as
suas feições repulsivas e a espantosa mutilação que sofreu na perna. Todos
pareciam extasiados ao observar aquele velho e rude mestre de
filosofia que não se parecia nada com os outros e pensavam que talvez
alguma aura divina, algum influxo olímpico devia abrigar-se no seu espírito.
E então foi tempo de libações e oferendas. Quando terminou o jantar, e
quando o próprio Sócrates já devorara a sua perna de cordeiro, o dono da casa
agarrou num copo de vinho e bebeu em honra dos deuses, bebeu até ao fim e com
solenidade ritual, acompanhado pelos outros convivas, que, quando esvaziaram o
copo, entoaram um cântico guerreiro em honra do deus Apolo. Agora sim,
era o momento para a embriaguez luxuriosa, a imponderação, o combate orgíaco
entre os corpos, era tempo da obscenidade exuberante com que costumavam acabar
os banquetes.
Mas desta vez nada disso aconteceu: Ágaton
decidiu que não eram os corpos a falarem mas as mentes, que não brilhasse o
erotismo, o voluptuoso erotismo, mas o refinado engenho do intelecto. Oh sim! Desta
vez não haveria lugar para os deleites amorosos, não haveria lugar para Eros, para Afrodite, para o tormentoso Príapo,
não haveria lugar para acender as paixões carnais mas para animar os prazeres
do espírito». In Miguel Betanzos, Sócrates, O Sábio Imortal, Editorial Sudamericana,
2005, Ésquilo, Lisboa, 2006, ISBN 972-8605-93-5.
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