quarta-feira, 30 de abril de 2014

O ‘Arranque’ dos Descobrimentos. Paulo Sousa Pinto. «Lendas à parte, existem de facto informações e indícios sobre explorações atlânticas antes das viagens portuguesas do século XV. As mais remotas referem-se a colónias fenícias na costa africana e a alegadas viagens gregas e cartaginesas»

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Foram, de facto, os Portugueses os primeiros a desbravar o Atlântico?
«A resposta à velha e sacramental pergunta se foram os Portugueses os primeiros, é, como para muitas outras questões, um desconcertante não e sim. Não, se tomarmos a questão num sentido restrito, pressupondo de alguma forma que nunca ninguém teria navegado nas águas do oceano ou procedido a tentativas de exploração antes das viagens promovidas pelo infante Henrique; sim, se a entendermos num sentido mais lato, não apenas no que respeita a dados históricos seguros e fiáveis, mais do que suspeitas ou indícios, mas, e sobretudo, a consequências duráveis, impacto e continuidade.
Por outras palavras, se os Portugueses tiveram precursores na exploração do Atlântico, não passaram de tentativas fracassadas, efémeras ou inconsequentes e que caíram no esquecimento. Tal como uma obra é inútil se ficar guardada numa gaveta e não for conhecida por ninguém, uma viagem, por mais ousada e bem-sucedida que seja, não tem qualquer relevância histórica se dela nada resultar, quer do ponto de vista prático, quer na divulgação do conhecimento. Isto aplica-se a inúmeros casos, alguns dos quais já fizeram correr rios de tinta, desde o descobrimento da América ao da Austrália. A verdade, no caso presente, é que, na primeira metade do século XV, nada se sabia em concreto na Europa acerca das condições naturais do Atlântico, da existência do continente americano ou do prolongamento de África para sul, com ligação ao oceano Índico; apenas dados confusos ou incompletos, lendas, fragmentos de relatos em obras clássicas e referências incorrectas em mapas. A única excepção diz respeito ao arquipélago das Canárias, e, em menor grau, aos da Madeira e dos Açores, e, ainda assim, no caso destes últimos, envoltos em brumas lendárias que tornam muito difícil discernir o mito da realidade.
É preciso relembrar que o Mediterrâneo era o centro de todo o mundo antigo (e da Europa medieval, já agora) e, por consequência, constituía o ambiente normal e natural em que se moviam navegantes e mercadores. Para oeste, para lá das colunas de Hércules, ou seja, do estreito de Gibraltar, estendia-se um vasto oceano que, além de imenso e desconhecido, possuía condições naturais, ventos, marés, correntes, agrestes e bem mais traiçoeiras do que as do lago mediterrânico. Desde há muito que circulavam histórias e lendas sobre as condições pouco acolhedoras do oceano. A lenda da Atlântida, divulgada por Platão, dava conta de um terrível cataclismo que teria engolido um continente inteiro e que tornara toda aquela zona intransitável e imperscrutável.
Corriam também rumores sobre a existência de ilhas mais ou menos brumosas no meio da vastidão oceânica, sempre associadas a lendas e encantos: as Ilhas Afortunadas, descritas pelo poeta grego Hesíodo; Avalon, da saga do rei Artur; Antília ou Ilha das Sete Cidades, para onde teriam fugido os bispos cristãos quando os Árabes dominaram a Península Ibérica, e cujo encanto impedia que fosse descoberta antes da derrota e expulsão dos infiéis; por fim, a ilha paradisíaca de S. Brandão, onde este monge irlandês e os seus companheiros teriam desembarcado após uma longa jornada cheia de peripécias e de encontro com animais fabulosos. Estas ilhas aparecem na cartografia medieval algures no meio do oceano. Identificar qualquer uma delas como os Açores ou a Madeira, uma vez que é certo que as Canárias eram conhecidas desde a Antiguidade, é um exercício tentador mas pouco seguro.
Lendas à parte, existem de facto informações e indícios sobre explorações atlânticas antes das viagens portuguesas do século XV. As mais remotas referem-se a colónias fenícias na costa africana e a alegadas viagens gregas e cartaginesas no Atlântico, que ecoam, de forma fragmentária e pouco clara, em algumas obras de cronistas e geógrafos da Antiguidade. Um dos nomes mais importantes é o de Hainão, Hanno, explorador cartaginês que, por volta do ano 500 a. C., terá supostamente comandado uma frota de dezenas de navios e fundado diversas colónias ao longo da costa africana. O limite da sua viagem é ainda motivo de controvérsia e, embora alguns autores defendam que terá chegado ao golfo da Guiné, subsistem muitas dúvidas devido a diversas incongruências dos dados disponíveis e às dificuldades de identificação dos locais.
Sensivelmente pela mesma altura, é possível que o grego Eutímenes tenha igualmente largado da actual Marselha (então uma colónia grega), passado o estreito e atingido as mesmas paragens. Dois séculos depois, um outro grego, originário da mesma cidade, chamado Píteas, terá deixado o Mediterrâneo e explorado o Atlântico Norte, passando pela costa portuguesa e seguindo até às Ilhas Britânicas e daí talvez até ao Báltico». In Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? Porque foi Conquistada Ceuta? O arranque dos Descobrimentos, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-498-7.

Cortesia de E. dos Livros/JDACT

terça-feira, 29 de abril de 2014

Jazz. Poemas del Alma. Orquestra do Algarve. «Não me acordes. Estou morta na quermesse dos teus beijos. Etérea, a minha espécie nem teus zelos amantes a demovem. Mas quanto mais em nuvem me desfaço mais de terra e de fogo é o abraço com que na carne queres reter-me jovem».

jdact e cortesia de joaochichorro


«Aquí
en esta orilla blanca
del lecho donde duermes
estoy al borde mismo
de tu sueño. Si diera
un paso mas, caerla
en sus ondas, rompiéndolo
como un cristal. Me sube
el calor de tu sueño
hasta el rostro. Tu hálito
te mide la andadura
del soñar: va despacio.
Un soplo alterno, leve
me entrega ese tesoro
exactamente: el ritmo
de tu vivir soñando.
Miro. Veo la estofa
de que está hecho tu sueño.
La tienes sobre el cuerpo
como coraza ingrávida.
Te cerca de respeto.
A tu virgen te vuelves
toda entera, desnuda,
cuando te vas al sueño.
En la orilla se paran
las ansias y los besos:
esperan, ya sin prisa,
a que abriendo los ojos
renuncies a tu ser
invulnerable. Busco
tu sueño. Con mi alma
doblada sobre ti
las miradas recorren,
traslúcida, tu carne
y apartan dulcemente
las señas corporales,
por ver si hallan detrás
las formas de tu sueño.
No lo encuentran. Y entonces
pienso en tu sueño. Quiero
descifrarlo. Las cifras
no sirven, no es secreto.
Es sueño y no misterio.
Y de pronto, en el alto
silencio de la noche,
un soñar mío empieza
al borde de tu cuerpo;
en él el tuyo siento.
Tú dormida, yo en vela,
hacíamos lo mismo.
No había que buscar:
tu sueño era mi sueño».
Poema de Luis Cernuda, in ‘Poemas del Alma’

JDACT

El rei João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Dava o tempo máximo de trinta dias para que o corpo fosse entregue às pessoas que a duquesa de Borgonha enviaria para esse efeito ao Reino de Portugal. A duquesa de Coimbra, do seu recanto claustral de Santa Clara, alertara a consciência de muita gente…»

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E Todos os Caminhos levam ao Falcão da Luz de Maio
«(…) O rei não se divorciou de Isabel de Lencastre, portanto, após a morre do Infante, apesar de até teólogos e letrados terem sido chamados a depor contra a indefesa rapariguinha de dezassete anos que casara com o rei de Portugal. Afonso V mandou a esposa vir para Lisboa e foi recebê-la ao caminho com todas as provas de amor e alegria. Isto pouco tempo depois de Alfarrobeira. E a vida continuou. Nesse ano a ralé de Lisboa criou problemas aos judeus, no mês de Dezembro. Tudo começou no mercado do peixe com um grupo de rapazio estouvado e mal-intencionado que levantou a população, atacando todos os judeus que encontrou e depois a judiaria onde roubou, feriu e espoliou os judeus.
Se não fosse o conde de Monsanto, com a guarda, pôr cobro ao desacato, teria havido um lamentável mar de sangue e um incontrolável massacre. Mesmo assim, a mulher de mestre Tadeu morreu disso pois um dos populares que a encontrou no mercado bateu-lhe com um ferro no peito. Meses depois, a mama do lado direito começou a inchar, o bico a arrochear e a purgar, depois recolheu... e ela morreu de cancro como a imperatriz Teodora. Era a frase que ele me dizia, mais tarde, no seu scriptorium junto da chaminé onde destilava o mercúrio:
Foi assim com Teodora, sabes? A morte iguala-nos a todos. As Rainhas e as pobres judias que os cristãos matam há séculos. Os cristãos e os outros... Todos somos fracos, irmão, fracos e cobardes, mas eles são-no mais ainda que nós porque usam a violência, a brutalidade, o mal e servem as ocultas forças de Satã. Que desde a minha infância se transformou numa espécie de pedra angular do edifício da minha alma, o que devia ser uma verdade insofismável em todos nós. Será que terei tempo para falar dele, de todos eles, de mim, de Ruth, de todos nós? Ó meu Deus, dai-me forças! Fazei-me merecedor de alguma coisa, por última que seja, da tua força! Apesar de tudo. Apesar de tudo o que tu sabes, apesar das minhas dúvidas já, sobre o meu destino e a tua sabedoria! Foi por essa altura que Afonso contratou como pintor régio, um tal Nuno Gonçalves, que começou a trabalhar primeiro numa sala do Paço da Alcáçova e, depois, na igreja de Santa Cruz e até em casa própria. Começou por fazer cartões e desenhos para tapeçarias que o rei mandava confeccionar na Flandres. Mais tarde foi ele quem desenhou aquela obra belíssima onde se lia em tons de ouro, azul, verde e vermelho a conquista de Arzila e que o rei colocou na grande sala de audiências do Paço. Mas Afonso teve assuntos prementes a tratar porque a morre do sogro trouxe-lhe um mar de tremendas recriminações em todo o mundo, da Corte papal às reais e principescas. A duquesa de Borgonha, acertadamente, queixou-se ao Papa da morte ultrajante do irmão, verdadeiro assassínio, para ela, perpetrado a frio. Como poderia ela, como cristã, celebrar exéquias condignas a seu irmão, homem de bem e fama e como convinha a um Príncipe de tamanhos merecimentos? O Sumo Pontífice, que também não gostara do procedimento do rei de Portugal, dirigiu uma epístola aos bispos de Tournai, Salamanca e Leão para que fizessem saber do seu desagrado e admoestassem fidalgos, príncipes, reis ou outras quaisquer pessoas, até mesmo bispos ou arcebispos, que fossem culpados da ocultação do corpo do desditoso Infante, para que indicassem o seu paradeiro sob pena de excomunhão.
Dava o tempo máximo de trinta dias para que o corpo fosse entregue às pessoas que a duquesa de Borgonha enviaria para esse efeito ao Reino de Portugal. A duquesa de Coimbra, do seu recanto claustral de Santa Clara, alertara a consciência de muita gente através de recados enviados em segredo, à cunhada. De resto, nem necessário fora esse expediente porque a mulher de Filipe de Borgonha adorava aquele irmão belo, inteligente, exímio diplomata e excelente homem de cultura e humanidades. A Isabel de Borgonha foi conferida a autoridade de publicar a bula papal em todo o território português e o duque, seu marido, enviou a Afonso V o deão Vergi, como embaixador que informou o Rei que deveria dar sepultura ao tio e sogro no Mosteiro chamado de Santa Maria da Vitória, como seu avô decidira e que não negasse, sob qualquer pressão dos inimigos de Pedro, a piedade e o amparo que a mulher, filhos, criados e servidores do Infante mereciam». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de EPresença/JDACT

Duas Estratégias Divergentes na Busca das Índias. D. João II vs Colombo. José M. Garcia. «… que este vinha do descobrimento das ilhas de Cipango e de Antilha, e que tendo-o João II mandado vir ante si, ele especialmente acusava-se el-rei de negligente, por se escusar dele por míngua de crédito e autoridade…»

jdact e wikipedia

Sobre a negação do apoio de João II ao projecto de Colombo
«(…) É de realçar aqui o ênfase colocado na ideia de se estar prestes a entrar no oceano Índico e a ultrapassar um ponto geográfico denominado Promontório Prasso, que seria então situável nos confins meridionais da África. O rei João II tinha a esperança de que este obstáculo pudesse ser finalmente ultrapassado por Diogo Cão no decorrer da sua segunda viagem de descobrimento, que se iniciou no Outono de 1485, altura em que Colombo já deixara Portugal visto ter partido para Castela depois de ter estado com José Vizinho ainda nesse ano.
Nos primeiros tempos que passou em Castela o genovês foi considerado como português, na medida em que, não sendo ali conhecido e tendo vindo de Portugal, esta proveniência facultava-lhe uma espécie de identidade que para os seus projectos lhe poderia ser vantajosa por lhe dar credibilidade, tendo em conta que os Portugueses estavam então bem cotados nos meios marítimos. Note-se que a origem portuguesa de Fernão de Magalhães e a sua experiência nos meios náuticos e orientais dos portugueses lhe deram a credibilidade necessária para que Carlos V tivesse aprovado a sua intenção de ir às Molucas por ocidente.
Os fundamentos que levaram Colombo a deixar Portugal em 1485 terão certamente resultado do facto de ter perdido a esperança de aí poder alcançar o apoio para a realização do seu projecto de atingir Cipango, as Índias ou outras ilhas como a Antilia, sendo ainda possível que tivesse problemas de dívidas, esperando que a ida para Espanha lhe viabilizasse a concretização dos seus anseios descobridores e a resolução de eventuais dificuldades económicas.
Rui de Pina, que foi secretário do rei João II e terá conhecido Colombo, além de ter participado logo em 1493 na primeira fase das negociações que iriam conduzir no ano seguinte à assinatura do Tratado de Tordesilhas, afirmou em 1504 a propósito da chegada de Colombo a Lisboa, por ele situada a 6 de Março de 1493, que este vinha do descobrimento das ilhas de Cipango e de Antilha, e que tendo-o João II mandado vir ante si, ele especialmente acusava-se el-rei de negligente, por se escusar dele por míngua de crédito e autoridade, acerca deste descobrimento para que primeiro o viera requerer. Na sua sequência Garcia de Resende, que também foi contemporâneo de Colombo, mas copiou em grande parte o que Rui de Pina escreveu, referiu cerca de 1533 que ele acusava el-rei por se escusar deste descobrimento e não no querer mandar a isso, pois primeiro se lhe viera oferecer que aos reis de Castela, e que fora por lhe não dar crédito.
João de Barros ao escrever sobre Colombo seguiu em parte o que referiu Rui de Pina mas alargou o teor das informações que possuía ao publicar em 1552 que primeiro que fosse a Castela andou com ele mesmo rei João, que o armasse pêra este negócio, o que ele não quis fazer (...), registando ainda que veio requerer a el-rei Dom João que lhe desse alguns navios pêra ir descobrir a ilha Cipango per este mar ocidental, e explicou que o fundamento desse pedido estaria mais nas influências suscitadas pela leitura do livro de Marco Polo do que nas informações que ele teria sabido de algumas ilhas ocidentais, como haviam referido outros autores, adiantando que o genovês, mesmo que não chegasse à terra pretendida, poderia pelo menos descobrir alguma ilha que desse para pagar as despesas do empreendimento que se propunha levar a cabo.
Damião de Góis, que em 1540 foi o primeiro português a publicar uma informação sobre Colombo, aludiu ao facto de que: Em sua vida, o genovês Colombo, muito perito na arte de navegar, ofereceu-lhe seu serviços e prometia viajar para a Índia, seguindo a rota do Ocidente. Não o atendeu o monarca, ordenando-lhe que se retirasse, pelo que ele se acolheu à proteção e serviço dos reis de Castela, Fernando e Isabel. O parecer negativo dado a Colombo resultaria fundamentalmente da sua míngua de crédito e autoridade, como dissera Rui de Pina, e porque certamente a tese de Toscanelli continuava a não ser aceite em Portugal». In José Manuel Garcia, D. João II vs Colombo, Duas Estratégias divergentes na busca das Índias, Quidnovi, 2012, Vila do Conde, ISBN 978-989-554-912-2.

Cortesia de Quidnovi/JDACT

Um Percurso Humano e Político nas Origens da Modernidade em Portugal. D. João II. Manuela Mendonça. «… eram os mesmos que haviam conduzido seu pai a “Alfarrobeira”, eles eram os que tinham condenado à morte o seu avô, contribuindo para o prematuro desaparecimento de sua mãe. A consciência desta realidade, a sua atitude para com a facção que simbolizava ‘o outro lado’…»

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O jovem
«(…) A criança que vimos acompanhando foi, a pouco e pouco, crescendo para dar lugar ao jovem que necessariamente surgiu moldado no sistema de múltiplas e contraditórias influências que descrevemos; a personalidade desse jovem foi assim descrita por Garcia de Resende sendo muyto moço veo logo a ganhar tanta auctoridade com os povos, com os nobres e com el-Rey seu pay, que não fazia conselho, nem cousa grande, em que o não metesse, e tomasse seu parecer. Debrucemo-nos de novo sobre o significado da formação intelectual, para tentarmos perceber a sua importância neste príncipe, não perdendo de vista que na formação da personalidade o factor mais determinante é a existência de um ambiente que não só influencie (...) mas sobretudo responda... No dizer de Luís de Matos não há dúvida de que os príncipes e infantes estudaram com maior ou menor aplicação as disciplinas do trívio (gramática latina, lógica e retórica) e alguns deles as do quadrívio (aritmética, geometria, astronomia e música). O cronista Garcia de Resende limitou-se a dizer que o futuro rei João II aprendeu latim.
Elaine Sanceau, embora sem citar fonte, afirmou que o seu interesse ia da Matemática à Medicina, à Geografia, à Astronomia, à cartografia, à Artilharia e à Construção Naval. Quando, em 1490, Cataldo Parísio Sículo proferiu a Oração de boas vindas à princesa D. Isabel, noiva do príncipe Afonso, afirmou de João II: Diz-se que são sete as artes liberais. Este sapientíssimo rei parece não só conhecer todas sete, mas as nove... Sendo as sete artes o trívio e o quadrívio, as outras duas serão, de acordo com Moreira de Sá a oratória e a poesia. Este saber tão vasto de João condiz com a afirmação de Jerónimo Münzer quando escreveu: O rei João II, é um homem instruidíssimo. Nenhum destes elementos, contudo, deixa transparecer a sua formação política. É esse aspecto que iremos tentar abordar. Como já ficou suficientemente documentado, a corrente cultural de nítida influência em Portugal era de importação italiana. E embora Pina Martins considere que em Portugal, como é óbvio, o humanismo não reveste formas de tão nobre altitude espiritual e de tanto interesse histórico e filosófico-teológico como na Itália (...) apesar das relações havidas entre os humanistas portugueses e italianos..., nem por isso a sua força deixou de empurrar o que poderíamos chamar a tendência política nacional. Efectivamente esta época viu Portugal, a par de todo o ocidente europeu, insistir na modificação das estruturas materiais e mentais que permitiram à própria Europa avançar na rota do seu extraordinário destino. Esse destino foi, em Portugal, definitivamente marcado pela escola do jovem Príncipe D. João. Muito influenciado pelo ideal do seu avô de quem, como já ficou dito, os amigos e familiares fariam agigantar a imagem de herói e confrontado com as exigências de um grupo senhorial que procurava influenciar seu pai de modo a manter e aumentar as próprias prerrogativas, João foi definindo o que reprovava. No entanto, no fulgor da sua adolescência e juventude, o Príncipe não contestou nunca a figura de seu pai. Mas os outros, aqueles que rodeavam o soberano, o influenciavam e aumentavam os próprios réditos à custa do depauperamento do erário régio, esses sim, figuravam na lista das discordâncias do Príncipe. Curiosamente eles eram os mesmos que haviam conduzido seu pai a Alfarrobeira, que o mesmo é dizer, eles eram os que tinham condenado à morte o seu avô, contribuindo indirectamente para o prematuro desaparecimento de sua mãe. À medida que crescia no jovem a consciência desta realidade, a sua atitude para com a facção que simbolizava o outro lado tornou-se cada vez mais radical. Esta identificação, aliada a uma nova visão de governo e da pessoa do rei, foram determinantes na opção que o Príncipe fez pela linha política do Regente seu avô. Leituras e eventuais contactos com homens conhecedores de novos caminhos políticos, bem como a influência dos italianos presentes na corte de seu pai, terão levado o jovem a construir o seu próprio projecto de governo. Figuras da Europa mais próxima, como a de Luis XI em França, seriam por ele admiradas na sua àcção centralizadora. Apesar de se reconhecer como ultrapassado o Espelho de Reis de Álvaro Pais, que até ao século anterior fora o manual indicado para a formação dos príncipes; apesar de ser já corrente a sua substituiçío por outros considerados mais actuais, como os de Egídio Romano e de Pier Paolo Vergerio de que já falámos, mesmo assim não era ainda muito claro o caminho a trilhar pelos monarcas deste final do sec. XV». In Manuela Mendonça, D. João II, Um Percurso Humano e Político nas Origens da Modernidade em Portugal, Imprensa Universitária 87, Editorial Estampa, Lisboa, 1991, ISBN 972-33-0789-8.

Cortesia de Estampa/JDACT

Lionor. Lionor. A Paixão da Memória. Seomara Veiga Ferreira. «A velhice instalou-se comigo em Tordesilhas nestes últimos dois anos. Tenho trinta e seis anos e estou velha, desiludida. Sei que ainda não morri porque meu estúpido genro, tão escravo de protocolos, mesquinho e vingativo, apesar de tudo e do ódio que me tem…»

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«(…) Nessa noite, que tantas as vezes observei da janela da casa onde nasci, nas agrestes montanhas do Norte, na de meus tios que me criaram, eu colocava como num desenho, em tons negros ou cinzentos, a dor da velhice, os seus terrores, como eles existiam sob as copas e os troncos, onde se acoitavam malfeitores na loucura da sua violência fratricida. A noite amedrontou-me sempre, é certo, com a sua face obscura, secreta, implacável. E à treva associei o envelhecimento, a tristeza, a desilusão, a ameaça pertinente e invencível da dissolução de outros rostos, como a já vira devastar os de mulheres e homens que me rodearam na meninice e comigo conviveram. Vi-a durante os últimos anos destruir o rosto de Fernando, a sua face pura, belíssima, o seu nariz direito, fino, que no fim traduzia a transparência das asas de certos insectos, os seus olhos cor de mel, quase fulvos, risonhos, onde crepitava, numa alegria de embriaguez controlada, o ouro e o Sol, o seu poderoso corpo esbelto, forte, que continha, como um vinho precioso, a força do desejo e a ilusão do prazer eterno, as grandes forças da terra e da luz que, unidas, são a origem da vida e o nosso sonho de eternidade que se repete sempre em cada ser e em cada geração. Mas a ideia da velhice está muito longe de nós, em certos momentos da nossa existência, mesmo quando observamos o seu insidioso caminho na face dos que sofrem a sua transmutação. A velhice. Nunca a pensei instalada no frágil alicerce de meu corpo, nos meus tempos áureos dos Paços, com o amor obcecado e confuso de Fernando, o amor cego, infantil, ingénuo, de quem não sabe amar...
Quando a senti pela primeira vez? Quando? Em Santarém, em Coimbra, em Elvas? Não. Foi em Lisboa, naquela desgraçada noite em que o Mal começou a vingar-se de mim para não mais me larga; o Mal, a traição, a cobardia dos homens. Aquela terrível noite nos Paços, que se seguiu à morte do infeliz João Fernandes. Foi nessa noite, porque, apesar de a idade não o justificar, percebi que começara a perder a partida. Apenas fazia parte, e a parte menor, da intriga urdida por todos, meu melífluo cunhado, ambicioso, cobarde e velhaco, sequioso do poder, esfaimado de honras onde poderia esquecer a sua bastardia que nunca perdoou; os ingleses, que já nessa altura, secretamente, o apoiavam e, tenho a certeza, lhe ordenaram a morte do conde de Andeiro, de cujos serviços já não necessitavam, porque a rainha viúva de Portugal deixara de centrar na sua pessoa o interesse político que antes detinha e preferiam apoiar o pretendente espúrio que vivia em Portugal (já que o outro estava detido em Castela, meu cunhado, filho de D. Inês) e que os homens de negócios de Lisboa desejavam, manobrando a arraia-miúda a seu bel-prazer, como se a canalha das ruas tivesse opinião política fosse sobre o que fosse. Antes o bastardo que a fraqueza de uma mulher que permitisse a Castela tomar o Reino pela mão da jovem D. Beatriz, minha filha. Só que não era assim. O tratado fora muito claro e Fernando defendeu, como pôde, a independência do Reino. John of Gaunt, que teve fundas pretensões ao trono de Castela, ainda não as perdera e impediria por todos os meios que Castela engolisse Portugal antes de ele próprio ser rei, por questões estratégicas e políticas, evidentemente, mesmo que por direito adquirido no casamento. Apenas por isso, apoiou o discreto e aparentemente submisso Mestre de Avis que aceitaria qualquer apoio, viesse de onde viesse, para ser rei.
A velhice instalou-se comigo em Tordesilhas nestes últimos dois anos. Tenho trinta e seis anos e estou velha, desiludida. Sei que ainda não morri porque meu estúpido genro, tão escravo de protocolos, mesquinho e vingativo, apesar de tudo e do ódio que me tem, não se atreve a dar-me o golpe final, bem ao estilo da família dele que mata os irmãos à punhalada, por causa de minha filha, Beatriz. Mas sabeis que até ela me odeia e me abandonou. É apenas uma criança que ele domina.
Ah, frei Juan! Esse olhar azul! Não esqueço a vossa ascendência borgonhesa. Tendes uns olhos compreensivos, leais, carinhosos. O Cambridge tinha-os menos profundos mas sempre frios e perscrutadores. O Cambridge... Voltemos então à nossa história, meu amigo. Àquilo por que vos pedi para virdes estar comigo. Quando olho por esta janela já nem sequer fico triste. E a partir de ontem muito menos. Conheceis a lenda da Pedra-que-chora? Contaram-ma quando aqui entrei. A pedra existe, aqui, no velho pátio mourisco do edifício. Dizem, não sei se é verdade, que ela se humedece quando está para morrer alguém coroado… E a pedra dos desígnios, uma espécie de pedra do destino. Pois bem, ela ontem chorou. A água, confessou-me a jovem monja oriunda de Toledo, de uma velha família ainda aparentada com a minha, começou a correr, em fio. Um fio transparente e brilhante como prata líquida. Minutos depois, outro fio de água, paralelo, deslizou até ao chão». In Seomara da Veiga Ferreira, Leonor Teles, ou o Canto da Salamandra, 1998, Editorial Presença, Lisboa, 1999, ISBN 942-23-2347-4.

Cortesia de Presença/JDACT

segunda-feira, 28 de abril de 2014

O Anacronista. Crónicas. Manuel António Pina. «Sabe, ensinou o professor, eu nunca ganhei nada com o PCP, nem o PCP comigo; o nosso casamento não foi, de todo em todo, um casamento de conveniência; se fosse, seria bem fácil dissolvê-lo, mas um casamento de amor, esse não se dissolve com facilidade...»

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O comunismo acabou?
«(…) O espectáculo da derrocada dos partidos comunistas do Leste europeu e os seus mais recentes episódios, em que o PCUS tem sido o personagem principal, geraram entre nós verdadeiras tragicomédias políticas, capazes de dar o golpe de misericórdia nos restos de confiança que algum ingénuo ainda tivesse na espécie humana, sobretudo a do género político. O PCUS caiu, e um imenso coro cacofónico desatou, com o mais suspeito dos júbilos, na TV, nos jornais, no Parlamento, aos gritos de O comunismo acabou! O comunismo acabou! Afinal N… C... e N… B…, o H… M…, toda a indistinta massa de membros do Governo e do partido do Governo com lugar cativo no Telejornal, díspares e ilustres (por assim dizer) dirigentes do PS, dissidentes não menos ilustres do PCP da UDP e do MRPP herdeiros putativos do marcelismo e cristãos-novos da Democracia, têm-se revelado, no meio da gritaria, inesperadas almas gémeas do PCUS de Estaline e de Brejnev: também para eles PCUS e comunismo são, parece, uma e a mesma simples coisa! Alguma nota de bom senso, aqui e ali, não tem chegado para remar contra a histérica corrente anticomunista que os feitos de Boris I diante do Parlamento da Rússia (e atrás de centenas de milhar de manifestantes e de meia dúzia de batalhões de elite do exército e do KGB) geraram, empolgando as brandas consciências portuguesas que, aliás, nunca se evidenciaram por aí além pela seriedade intelectual. Está contente por o comunismo ter acabado?, perguntava, mais ou menos, o Telejornal ao embaixador Guerasimov. Guerasimov quis saber, antes de responder, se o Telejornal já tinha lido O Capital e outros textos teóricos; o Telejornal, evidentemente, não tinha lido; se tivesse lido, lembrou o embaixador, saberia que o comunismo está cheio de generosas ideias de solidariedade, de liberdade e de igualdade que, se tivessem, de facto, acabado, não seria isso certamente motivo para ninguém, nem mesmo o Telejornal, se congratular. E alguém explicava ao omnipresente C… F…, numa rua de Moscovo: os crimes feitos em nome do comunismo (e não são poucos) não destruirão a utopia comunista, como os crimes feitos, ao longo dos séculos, em nome do cristianismo (e não são igualmente poucos) não destruíram, nem eles, a utopia cristã.
Maiakovski matou-se quando o leninismo matou a Revolução de Outubro. Às mãos de Estaline na Sibéria, de Trotsky em Kronstadt, e de muitos outros um pouco por todo o lado, foram os comunistas, é preciso que se recorde, os primeiros a morrer. Este meio século de História foi testemunha de uma imensa carnificina de gente tocada pela utopia igualitária; e, nessa, matança, é preciso também que se recorde, muitos partidos comunistas, pelo menos a Leste, estiveram do lado dos que dispararam (como outros, a Oeste, e designadamente o PCP, estiveram do lado das vítimas). Se tanto sangue comunista não chegou para matar o comunismo, não se afigura provável que N… C…, com um discurso na Assembleia, ou o C… S…, com uma tirada eleitoral, consigam fazer-lhe o enterro, e muito menos a súbita diligência democrática do J… M… e da Z… S… Nunca militei no PCP. Estou talvez, por isso, à vontade para perceber a resposta de A… H…, ainda e sempre ao fogoso Telejornal, quando lhe perguntavam se iria, também ele, abandonar o PCP: Sabe, ensinou o professor, eu nunca ganhei nada com o PCP, nem o PCP comigo; o nosso casamento não foi, de todo em todo, um casamento de conveniência; se fosse, seria bem fácil dissolvê-lo, mas um casamento de amor, esse não se dissolve com facilidade..., Contrariamente às vedetas da dissidência oportuna, H… optou por se afastar discretamente, para, segundo ele, não se misturar com os ratos que abandonam os navios quando lhes cheira a perigo. A lição fez-me lembrar o inestimável M…, mantendo-se na AR, para onde foi eleito com os votos de milhares de portugueses que acreditam no PCP (e para defender o programa concreto do PCP e as soluções concretas com que este se apresentou ao eleitorado), e passando a defender o contrário e a votar contra os votos que o elegeram... Chegámos, parece, a dias em que vale tudo, até arrancar olhos; e, pior, lucrar com isso, como no magalhânico caso (se são lucro os proveitos parlamentares, uns anos mais para a choruda reforma e um lugar elegível no partido mais à mão de semear).
Grave é se os nossos filhos, em vez da lição de H…, aprenderem antes a torpe lição de M… E julgo que, nos tempos sem grandeza que vivemos, esta é certamente uma tarefa que não podemos recusar: fazer com que os nossos filhos possam escapar à infecção da mediocridade, protegendo a frágil flor da sua juventude da terrível sepultura das ideias e dos ideais que tantos agentes funerários, com o sucesso que se sabe, andam por aí a cavar. E, já agora, se possível, ensiná-los, em tempos de confusão, a distinguir as religiões das igrejas, sobretudo quando estas, como o terá feito a igreja comunista (e como o fazem tantas outras igrejas e semi-igrejas de generosos ideários), fundam os seus alicerces sobre o silêncio e sobre a intolerância». In Jornal de Notícias, 18 / 9 / 1991

In Manuel António Pina, O Anacronista, Crónicas, Edições Afrontamento, 1994, ISBN 972-36-0323-3.

Cortesia de E. Afrontamento/JDACT

Eleonor na Serra de Pascoaes. António Cândido Franco. «Maís tarde, por várias vezes, voltei à carga. E naquelas luminosas férias que passámos na Foz, na Praia dos Ingleses, muitas vezes Pascoaes me falou de Fernando Pessoa com estima e admiração»

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«(…) Teixeira de Pascoaes deixou por várias e cruciais vezes claramente expresso o interesse que lhe merecia a obra de Fernando Pessoa, em primeiro lugar dando-lhe como director a vez de primeiro articulista da revista A Águia, reconhecendo assim a Fernando Pessoa um talento que talvez não reconhecesse a qualquer outro colaborador da revista, coisa que muito feriu António Sérgio, e tornando-se desse modo o primeiro fernandino do século XX. Esta admiração, que começou em 1912, parece ter sempre acompanhado Pascoaes, que, por volta de 1950, pouco antes de morrer, a confessou a Eugénio de Andrade. Maís tarde, por várias vezes, voltei à carga. E naquelas luminosas férias que passámos na Foz, na Praia dos Ingleses, muitas vezes Pascoaes me falou de Fernando Pessoa com estima e admiração. E a prová-lo aí está, essa discreta homenagem, a citação, num dos poemas dos Últimos Versos, de uma frase tirada de uma carta do autor da Ode Marítima. Ao entregar-me o original, o próprio Pascoaes me chamou a atenção. (in Os Afluentes do Silêncio, 1968).
Depois da Renascença Portuguesa, sobretudo depois da polémica com António Sérgio que teve lugar entre 1913 e 1914, Pascoaes abandona não só praticamente as relações com os seus contemporâneos, isolando-se na sua casa de São João do Gatão, como deixa de escrever e de publicar poesia em verso com a frequência e a intensidade com que o fazia até aí. Repare-se que entre 1895 e 1915, ou seja em vinte anos, Pascoaes publica dezassete livros de poesia, quase um livro por ano, e entre 1915 e o ano da sua morte em 1952, ao longo de trinta e sete anos, Pascoaes publica apenas dez livros de poesia. Dos dez livros publicados entre 1915 e 1952, dois deles, pelo menos, não são inéditos: Sonetos (1925), que faz uma recolha de textos anteriores do poeta e Elegia do Amor que reedita (revisto) um poema (de resto muito importante para se compreender Marânus) já publicado em 1906 em Vida Etérea. Em 1953, meses depois da morte do poeta, saiu um outro importante livro seu de versos, escrito nos últimos anos da sua vida, Últimos Versos.
Por estas duas razões, o afastamento dos centros urbanos e das modas literárias bem como um interesse cada vez maior pela poesia em prosa, e ainda decerto por outras razões que aqui nos escapam, difícil é dizer e saber quem foram verdadeiramente os contemporâneos de Pascoaes desde 1915 até à data da sua morte. As últimas páginas do capítulo VI de Os Poetas Lusíadas apontam alguns nomes, a que seria de justiça acrescentar mais dois ou três (como Guilherme de Faria, Anrique Paço d'Arcos, José Gomes Ferreira ou mesmo Domingos Monteiro, considerado por Pascoaes poeta lusíada), mas o certo é que a partir de determinada altura, que coincide com a dolorosa despedida a António Sérgio, Pascoaes deixou, pelo afastamento, de ter entre nós contemporâneos. As palavras de Sant’Anna Dionísio (e também as de Ilídio Sardoeira) são significativas do isolamento em que o poeta e a sua poesia passaram a viver». In António Cândido Franco, Eleonor na Serra de Pascoaes, Edições Átrio, Lisboa, Colecção o Chão do Touro, 1992, ISBN-972-599-042-0.

Cortesia de Átrio/JDACT

O Tempo e os Homens. Colecção Universitária. António Borges Coelho. «A existência de filósofos malditos é tão velha como a história do pensamento ocidental. E qualquer artífice sabe que quanto mais variados e complexos forem os instrumentos, maiores possibilidades se abrem à acção»

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Manipulador do tempo. Tempo e Memória
História. Histórias
«(…) No seu trabalho diário, o historiador opera uma gama variada de produtos: colectâneas documentais como os Portugaliae Monumenta Historica de Alexandre Herculano ou os Monumenta Henricina de Dias Dinis; Histórias Universal, de Portugal, da França, de Lisboa; Histórias regionais ou locais; monografias sobre História das Ideias, História Económica, Social, Mental, Arte, Quotidiano, Biografias, etc., etc. Noutras alturas produz discursos sob e sobre o fogo vivo dos acontecimentos. Estes relatos-testemunhos, necessários, por vezes preciosos, alcandoram-se frequentemente ao discurso mais perene da História. Noutro plano, independentemente da originalidade, os produtos acabados revestem linguagens diferenciadas: a do cerzir de acontecimentos e de ideias; a metalinguagem que conceptualiza os dados empíricos; a metalinguagem que navega sobre conceitos mas deixa à vista os fundamentos empíricos; a metalinguagem… Por outro lado, certos produtos voltam-se para a análise, a pesquisa e o escalpelizar de um problema ou tema limitado; outros ousam as grandes sínteses. O artesão manipulador do tempo marca o produto com a sua mente e a sua mão mas é extremamente dependente; dependente das informações, dependente do trabalho dos homens e mulheres que organizam a informação conservada nos arquivos, bibliotecas e museus, dependente das ideias e da carpintaria dos autores que o antecederam, dependente de toda a sociedade no pensar, no milagre diário de existir. E é no plano final, no movimento das palavras até se fixarem nestes caracteres e não noutros, que as marcas do artesão identificam e valorizam o produto genuíno.

Textos e Sociedade no Garbe Al-Andaluz
Tanto a verdade histórica como o mito se incorporam nas representações que dão sentido aos passos que agora mesmo renovamos. Os mitos captam o real profundo mas tem sido com o pensamento lógico que a Humanidade vem aumentando o conhecer e o poder, desenvolvendo e ameaçando a própria vida na Terra. No campo historiográfico, práticas de diferentes escolas e sistemas, confundindo o real e o lógico, coisificando os modelos, anulando a indeterminação do real, indeterminação acrescida nas sociedades humanas pelo factor a que os teólogos e os filósofos chamaram livre-arbítrio, têm levado muitos autores a refugiarem-se na procura necessária e sempre incompleta de informações novas, esquecendo que conhecer é relacionar. Há mesmo quem minimize e desconfie da compreensão em História e, a pretexto de perigo ideológico, recuse, afinal por preconceito; ideológicos, ferramentas conceptuais e expulse do território da teoria contributos de autores considerados indesejáveis.
A existência de filósofos malditos é tão velha como a história do pensamento ocidental. E qualquer artífice sabe que quanto mais variados e complexos forem os instrumentos, maiores possibilidades se abrem à acção. Necessário é dominar bem as ferramentas até para as rejeitar e afinar e saber quando, onde e como manejá-1as. Hoje insistem em todos os tons que as ideologias morreram, tocam-se as trombetas do Juízo Final da História como se fosse possível viver sem representações do mundo e sem conflitos, isto precisamente num tempo em que se reacendem na própria Europa velhíssimas guerras de bandeira religiosa que há muito se julgavam desaparecidas. Ao constante movimento e transformação do mundo, a razão responde imobilizando na ideia o que se move. Daí a necessidade de rectificação constante, daí a urgência de encontrar novas relações e mecanismos lógicos que envolvam não só a prova como até a ilusão do movimento. Por mais asséptica que seja a nossa postura e linguagem, por mais que congelemos a objectividade e expulsemos e anatemizemos as ideologias, o tempo social, económico, cultural e político concreto marca a actividade do historiador e do arqueólogo. E é bem um sinal de tristes tempos, esta necessidade de sublinhar o óbvio, de reafirmar o sobejamente verificado, demonstrado». In António Borges Coelho, O Tempo e os Homens, Questionar a História III, Editorial Caminho, Colecção Universitária, Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1076-4.

Cortesia Caminho/JDACT

Lionor. Lionor. A Paixão da Memória. Seomara Veiga Ferreira. «… desde a juventude que não me vi velha, a face rasgada por sulcos, pálida, sem vida, macerada como a de um pergaminho reutilizado, a face desesperada da morte, a distante, sempre igual e triste, das monjas qualquer que seja a sua idade»

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«Vinde, frei Juan, sentai-vos. Se tiverdes tempo, porque eu o tenho todo, assim Deus o quis, vamos ter uma longa noite. Agradeço-vos por terdes aceitado estar aqui comigo, com a última rainha de Portugal, a mãe da rainha de Castela. Olhai este fim de tarde, todo luz, todo oiro, da cor dos frutos maduros, esta Primavera que começa a cortar a secura fria do Inverno que este ano, não foi tão agreste como o do ano passado. Pelos muros desta pequena cela de monja, já escurecida pelo fumo das velas de profundas vigílias, a água punha pérolas azuladas translúcidas, às vezes nacaradas e opalescentes, quando o Sol poente as tocava no seu bailado final, leve e terno, como uma despedida apaixonada, que caíam, perto da janela, no mosaico do chão. Lembravam-me as pedras-da-Lua com que ornamentavam o ouro dos anéis. Essa pedra de Junho que, antes, pertenceu à deusa Juno, foi uma das minhas preferidas, em tempos. Diziam que nos trazia a sorte... Pois, frei Juan de Aranda, acercai-vos da luz que nos resta, antes que aquela monja que vos fez entrar venha acender esse grosso círio e espevitar o pavio da candeia. Aproveitai e usufruí desta calma que tem sido a única companhia de meus dias. Minto. A memória também sulcou a meu lado, como uma irmã caridosa, a sua presença apaziguadora e firme. Falemos então da memória.
Eu que já tive tudo, agora nem posso dizer que esta pequena cela de monja me pertence. Apenas preencho parte do seu reduzido espaço enquanto meu genro, o frágil, pequenino, achacoso e pálido rei de Castela o desejar. Não é a minha casa. Deixei de ter casa e aqui, eu que sempre detestei a cidade de Lisboa pela crueza injusta com que me tratou, recordo-a com saudade, e aos seus Paços, que frequentei, onde vivi, amei, e decidi algumas coisas do meu destino. Embora me sentisse melhor em Alenquer, em Évora, em Coimbra, em Santarém, aqui nem sempre, recordo Lisboa, os Paços a par de São Martinho onde pela primeira vez falei com Fernando. Por lá ficou certamente algum resquício da minha antiga presença, do meu sentir, dos meus sonhos porque as casas contêm algo da nossa alma, do nosso cheiro, das nossas virtudes e defeitos, porque pertencemos a elas, nos refugiamos dentro das suas paredes, no abrigo de seus braços maternais.
Não vou chegar a velha e sinto-me feliz por isso. Os velhos, geralmente, tornam-se egoístas, daquela espécie de egoísmo que é maleita, insensíveis, como se a sua alma, ao longo do caminho que os anos traçaram, tivesse perdido a qualidade divina, a sua origem celeste. Não são todos, perdoai-me, frei Juan, vós que já sois avançado em idade!, mas prometi a mim própria ser sincera e honesta, no entanto a grande parte deles é assim. Sei que não vou chegar a velha. Vede como eu estou, débil, esgotada, perdido o fogo do meu olhar que tantos homens admiraram. Ontem, descobri três cabelos brancos na minha fronte, como se tivessem, de repente, nascido durante a noite. Sei que não vou chegar a velha e agora que também percorri um caminho endurecido por escolhos e vicissitudes, por ódios terríveis e mesquinharias, sinto-me feliz e liberta por poder olhá-lo de frente, sem subterfúgios, na posse integral das minhas faculdades, imensamente consciente do que resta do meu destino à face de Deus e dos homens.
Não vos espanteis, meu bom amigo. Ao longo destes anos ouvistes-me em confissão. Conheceis perfeitamente o retrato secreto da minha alma de penitente, mas existem verdades tão escondidas que só em certos momentos da nossa vida as podemos traduzir  por palavras que toda a gente usa. Falei-vos da velhice. Como já percebestes ela não me atemoriza como a outras pessoas, sobretudo belas mulheres como eu fui, que vivem o suplício do envelhecimento como o do horror da peste maligna. Não. Confesso-vos, frei Juan, desde a juventude que não me vi velha, a face rasgada por sulcos, pálida, sem vida, macerada como a de um pergaminho reutilizado, a face desesperada da morte, a distante, sempre igual e triste, das monjas qualquer que seja a sua idade. Isso talvez porque a minha mãe morreu muito jovem, como o meu pai, assassinado pelos esbirros de Pedro, o Cruel, de Castela, em tempos de meu sogro, e algumas pessoas mais da minha família. Vi a velhice ao longe como uma noite, escura, é certo, uma terra de medos secretos, onde ondulavam as copas das árvores da floresta varridas pelo vento». In Seomara da Veiga Ferreira, Leonor Teles, ou o Canto da Salamandra, 1998, Editorial Presença, Lisboa, 1999, ISBN 942-23-2347-4.

Cortesia de Presença/JDACT

Rumor Branco. Almeida Faria. «… contudo ficou-lhes a raiva na garganta quando cantam às noites na parada praça: ó moças nã querom casar com ganhões nã ganhom avondo pra comprar botões, ganhões…»

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II Fragmento
«(…) Pilhando perus, patos e galinhas, além das alfaias tidas no frascal e na ucharia, malteses que armam armadilhas aos coelhos bravos e pescam arrãs para vender na vila a tostão o par, par de pernas brancas como de mulher, malteses que evitam andar à foice jogados e ao rabo de arado pela tutimeia ao fim e ao cabo que não dá para mais que quase nada, e o velho Custódio explode em ódio: queria era saber quem foram os gajos, os grandes cab… cos hê-de caçári, faço uma batida nesses morraçais, mas se os cobrem os gajos cá da casa? Já tudo se aguarda destes revoltados, melhor é buscar o cabo da guarda, a gente havemos de lhes ir aos quitos ou ê rachos. E os homens de São Marcos afastaram-se, Daniel João ouvia ainda suas falas, depois a noite vencia a resistência das palavras, com um surdo baque dominava as belgas secas e cheias de sede que as chuvas outonais viriam saciar, quando as pedras tinham já esquecido toda a sombra numa tarde sem ar que recolhera aves e homens enfrentando um sol impiedoso tombavam trespassados de sono de cansaço suando em cada póro de cada vida imóvel e as vozes vinham desde os brancos montes baixos e campos cor de cinza sem uma pinga de água, quando tudo aguardava a sua vinda, ela chegou enfim, a tempestade, e bátegas tombaram durante longos dias e houve grandes bandos voando para longe e logo era a madrugada crescendo das funduras da terra fecunda e escura na ténue luz azul e aguada em que Maria da Pureza o aguardava no pinhal e quando o viu correu para ele, abraçou-o, contou aquela aventura (nessa mesma noite o pai, os guardas, os criados toparam por atalhos ao pé da vila com um galego carregando um saco às costas e agarraram-no e levava criação já morta, saltou-lhe Custódio em cima e quis saber ao certo quantos gatunos eram e quando se viu que ia sozinho mais o pai se irritou por vir com tantos homens e isso deve-o ter sentido o vivo do ratinho que se mostrou valente e lhe atirou à cara palavras verdadeiras ao que Custódio pra se impor quis responder a toque do vergalho torcido e o outro testa-erguida sem sequer tentar fugir até que o pai turvou e lhe arrumou na cabeça com força junto à fonte e dessa é que ele tremeu e tombou morto mas Custódio disse que era fita e deu-lhe com mais força sem ver que o tinha matado e quando percebeu não queria crer porque não tinha querido aquilo), aquela história de homens de além-do-Tejo, homens de olhar fechado e demorada fala, de terra entranhada nas mãos curvas não podendo abrir-se de tanto agarrar sacho e enxada, homens que nunca se revoltaram de verdade, contudo ficou-lhes a raiva na garganta quando cantam às noites na parada praça: ó moças nã querom casar com ganhões nã ganhom avondo pra comprar botões, ganhões que Daniel João encontrava, cruzava, em quem dava encontrões, mal reparando neles como naquele velho cego de guitarra às esquinas cantando o seu fadito com olhos tão vazios e vacilante cabeça atenta à espera e bengala cansada encostada ao lado e côncavas órbitas escancaradas sem sequer o disfarce de óculos fumados, alto ossudo magro, a força em potência na rigidez dos membros aguardando a acção nunca vinda, na veloz viragem da cabeça ao mais subtil ruído, no bater regular dos pés nas pedras da calçada, mas já passara há séculos pelo cego e continuava caminhando através da manhã da vila e ia ter com ela. Ele estava anos antes no cinema, ao lado uma rapariga atraente sem idade vendo Subitamente no Verão Passado e tocou-lhe na perna e ela não se moveu e ele deixou a sua unida, surpresa angustiada, e logo estavam abraçados, numa mistura de obrigação e ternura a apalpava, braços mamas coxas ancas, o filme evoluía mais insólito, um homem ao som alucinante duma banda de latas era morto, por um vago medo agarraram-se as mãos, apertaram-nas muito, sentiu que a dela era rugosa e fria, teve um estremecimento, quase nada a princípio, mais intenso depois até que estava já tremendo todo, largou-lhe a mão e ela olhou-o, deve tê-lo olhado, não sabia, ele não olhou mas viu-lhe o olhar admirado e depois decerto ela voltou a cara com vergonha dele ou dela ou talvez de ambos e ele tremia sempre, e escutava vagas palavras, e o sentido das imagens lhe escapava começou a beliscar as próprias pernas, agarrava entre os dedos a pele e apertava ate fazer doer, apertava até que a dor não existia mais porque lhe ultrapassara já a margem, ficava uma sensação vaga que aos poucos, ao fim dum tempo lento, serenava, perdia intensidade, terminava, de longe em longe ainda um brusco estremeção por todo o tronco como quando criança a seguir a chorar, até que enfim acalmou e o filme acabou, ela levantou-se devagar caminhou para a porta no meio da multidão, ele saiu logo atrás dela que desceu as escadas ignorando-o, alguém entretanto meteu-se adiante, perdeu-a de vista, virou à direita, não a viu, correu, descobriu-a alguns metros à frente, prosseguiu depressa, afinal não era, ficou parado frustrado como quem apanhou no chapéu a borboleta bela e foi a vê-la ela fugiu e era feia mas queria conhecê-la, retê-la ao menos um momento, saber como, quem era, olhou ainda à volta, desistiu em seguida e com fúria insofrida começou a subir a avenida». In Almeida Faria, Rumor Branco, Editorial Caminho, 4ª edição, Lisboa, 1992, ISBN 972-21-0746-1.

Cortesia de Caminho/JDACT

domingo, 27 de abril de 2014

Nuno Tristão. O Escudeiro mareante como protótipo dos primeiros tempos da Expansão portuguesa. Luís Albuquerque. «… num discurso que a Crónica reproduz (ou, mais provavelmente, Azurara reinventou), propôs aos seus companheiros que saltassem em terra e fizessem por obter os primeiros cativos; com essa acção alcançavam-se dois fins»

Nuno Tristão foi um dos mais próximos colaboradores do Infante, ultrapassando o cabo Branco e atingindo a ilha de Arguim
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O Escudeiro mareante
«O que se sabe acerca da vida de Nuno Tristão, e em especial a respeito das suas viagens à costa ocidental africana, onde veio a ser morto, é-nos transmitido, com alguns pormenores de interesse, pela Crónica da Guiné de Gomes Eanes de Azurara. Foi reunindo as informações dispersas do cronista que urdimos o presente relato. Quando se iniciou nas navegações, em 1441 ou 1442, provavelmente ainda bastante jovem (mas desconhece-se o ano do seu nascimento), Nuno Tristão tinha já recebido a honra de cavaleiro; a Crónica diz dele, e não custa acreditá-la, que se tratava de um homem destemido e de boa decisão; e sem dúvida era também da inteira confiança do infante Henrique, pois fora criado desde baixa idade na câmara deste príncipe.
Sobre os motivos determinantes da sua primeira viagem, se a Crónica os não declarasse de modo expresso, era possível tecer algumas conjecturas. Podia admitir-se, por exemplo, que Nuno Tristão fosse atraído para uma possível aquisição de escravos, por compra ou por assaltos a pequenos povoados ribeirinhos. Foi através deste último procedimento que por esse tempo se iniciou a obtenção de escravos negros, acção que, de resto, havia de continuar mesmo depois de seriamente reprovada pelo infante Henrique, via gorarem-se desse modo os seus planos de estabelecer com os Africanos linhas de comércio; com os ataques repetidos, as populações da orla marítima abandonavam as suas aldeias próximas do mar, para se refugiarem no interior, deixando a costa deserta; e sem interlocutores não é possível negociar.
Seria também de supor, e com igual probabilidade, o êxito da viagem também ficaria assegurado por essa via, que o objectivo que de início a ditara fosse antes carregar o seu navio de peles e gordura de lobos-marinhos, que existiam então em grande abundância no Rio do Ouro, e já em viagens anteriores tinham sido caçados e produzido um apreciável lucro. Esta segunda alternativa podia parecer-nos a mais plausível, porque Nuno Tristão foi encontrar-se com Antão Gonçalves exactamente no Rio do Ouro; a este último capitão, que era guarda-roupa do Infante e partira do Algarve pouco tempo antes de Tristão, tinha o Infante dado a incumbência, expressa e única, de carregar aquele navio de coirama e azeite, nos dizeres de Azurara, ou seja, de peles e óleo. Acrescente-se, porém, e ainda dando crédito ao cronista, que Antão Gonçalves, depois de ter carregado o seu navio, como lhe fora ordenado, não ficara muito satisfeito por se ver limitado a uma tarefa sem relevo militar ou cavaleiresco; ele ambicionava, certamente, ascender na escala social, e não era a caçar lobos-marinhos que podia atingir esse objectivo. Por isso, num discurso que a Crónica reproduz (ou, mais provavelmente, Azurara reinventou), propôs aos seus companheiros que saltassem em terra e fizessem por obter os primeiros cativos; com essa acção alcançavam-se dois fins: o lucro adveniente da venda como escravos daqueles que pudessem capturar; e de algum ou de alguns deles o infante Henrique vir a ter conhecimento da natureza daquela terra e quantos eram os moradores dela. O que foi posto em prática, aliás com um desanimador resultado na primeira tentativa.
Estas suposições, que ajudam a situar Tristão no clima que rodeava os navegadores daquele tempo, são, em parte, rectificadas pela Crónica. Azurara afirma, de facto, que a Tristão fora entregue uma caravela armada com o especial mandado do Infante de passar além da Pedra da Galé o mais longe que pudesse, e que, além disso, procurasse capturar gente, por qualquer maneira que melhor pudesse. A viagem tinha portanto, e seguramente, dois objectivos bem definidos: prosseguir a exploração da costa ocidental africana e cativar mouros ou negros (assim se refere sempre Azurara aos prisioneiros). É possível que existisse também uma não expressa incumbência de recolher informações sobre as áreas para o interior das costas navegadas; pelo menos Tristão levava consigo um intérprete, e que pouco serviu, pelo menos nos primeiros contactos, pois não pôde entender os dois cativos que Antão Gonçalves tinha em seu poder quando os dois navegadores se encontraram; tão-pouco pôde falar com os prisioneiros que os dois capitães fizeram em conjunto. O intérprete de Tristão falava árabe, e os cativos azenegue ou sauri, à excepção de um cavaleiro nobre que estava entre eles, porventura islamizado e que, falando também árabe, se pôde entender com o língua de Tristão». In Luís de Albuquerque, Navegadores, Viajantes, Aventureiros Portugueses, Séculos XV e XVI, Nuno Tristão, Editorial Caminho, Lisboa, 1987.

Cortesia de Caminho/JDACT

Viriato. O nosso avô. Príncipes de Portugal. Suas grandezas e misérias. Aquilino. «Os povoados alcandoravam-se nos altos desabridos, e compreende-se. O primeiro requisito que o homem exigia do seu tugúrio era a de situação desassombrada: vista larga, terra escampa, caminhos descobertos»

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Viriato. O nosso avô
«(…) É provável que nas encostas e chãs começassem a cultivar de sachola o centeio e outros cereais rústicos, e que a vinha, mais ou menos selvagem, rubescesse ao Sol das escarpas, e pisassem a uva nas lagaretas, talhadas a picão na rocha viva das penhas. Mas o principal da alimentação consistia na caça, alguma coisa na pesca, sem falar no provimento subsidiário de currais e pocilgas, reservado como hoje aos privilegiados. Sem embargo, não será temerário supor, pelos sinais que se enxergam nas ruínas neolíticas e mesmo proto-históricas, como sejam os olhais perfurados no lajedo, que o mais pária possuísse a sua cabrinha e até uma vaca. Forneciam-lhe o leite, e ele iria apascentá-las pelas rampas, presas por um vencilho de giesta ou de palha, ao passo que as guardava tão bem do lobo e do urso como do salteador. Reza Estrabão que a carne de cabra era uma das suas comidas predilectas. Presume-se com muitas probabilidades de acerto que não fosse nada pestinheiro em matéria de boca, e que tanto lhe servisse o cabrito como o borrego, a lebre ou qualquer bicho do monte. As aves de capoeira seriam manjar de mulher parida. A era dos Vitélios estava ainda para amanhecer para lá de muitas rotações dos astros.
Os povoados alcandoravam-se nos altos desabridos, e compreende-se. O primeiro requisito que o homem exigia do seu tugúrio era a de situação desassombrada: vista larga, terra escampa, caminhos descobertos. Aqueles nossos longínquos antepassados, quando não andavam a ferro e a fogo, viviam em guerra lassa uns com os outros. Para Trás-os-Montes existe um castro chamado de Mau Vizinho, que pode ter-se como paradigma. Em verdade todos tinham maus vizinhos no seu próximo. Se alguma vez as tribos se concertavam entre si, era quando o inimigo externo acampava já nos eidos e estava iminente o extermínio. Assim, os povos celtibéricos, na resistência a Roma, apenas se uniram aos lusitanos à hora extrema e quando já não havia salvação possível. São provas deste instinto de rixa e de irredutibilidade os ódios, malquerenças, brigas, que se dão ainda hoje entre aldeias sertanejas limítrofes, nutrindo-se às vezes do mesmo rio e do mesmo monte. Olim, o rapto das Sabinas constituiria porventura o vulgar casus belli entre as tribos. Hoje só por retorno atávico de rancores tão específicos se explica a latente animosidade.
Este estado de beligerância entre os nossos avós vinha de resto de longe, de sempre, que lá estão a atestá-lo certos dólmenes a céu aberto com seu cemitério de maxilares partidos, crânios arrombados, dentes em astilhas, devido a outros agentes que não à compressão natural do terreno. Os castros, que se afigura nada terem que ver com a arte de construção militar romana, eram lugares de defesa civil e compunham-se de grossas muralhas, por vezes duas e três, concêntricas à cividade propriamente dita. Um primeiro ândito tinha em mira proporcionar refúgio imediato, mal soasse o alarme, a rebanhos e pessoas surpreendidas fora do campo entrincheirado. A parte residencial era por assim dizer o último reduto com suas casotas circulares, a fonte, e os celeiros que deviam ser escassos. A citânia de Besteiros e de modo mais complexo a citânia do Monte de Santa Tecla elucidam-nos sobre estes particulares. A Cava de Viriato, subjacente ao morro em que assenta a Viseu antiga, em vez de acampamento militar, formaria um imenso redil para os rebanhos em caso de emergência». In Aquilino Ribeiro, Príncipes de Portugal, Suas grandezas e misérias, Livros do Brasil, Lisboa, 1952.

Cortesia de LB/JDACT

sábado, 26 de abril de 2014

O Malhadinhas. Mina de Diamantes. Aquilino. «Guar-te de homem que não fala e de cão que não ladra, por isso eu sempre falei, falo e falarei franco até morrer, pois se nós o temos no pensamento, acautelá-lo da boca só por ronha ou cobardia»

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«Que a minha língua era ponteira como a faca que trazia à cinta, murmuravam as bocas do mundo mal consideradas. Cantigas, ó Rosa! A faquinha, assim Deus me salve, tinha uma função e não mais, cortar a côdea, o queijo, a febra do presunto, quando andava de jornada. Algumas vezes, também, arremediava-me a consertar os atafais do macho se o Demo queria que estoirassem. Quando, por grande acaso, se apartava desta pacífica missão, é que a minha vida corria perigo e trazer eu a peito defendê-la, pois se Deus ma deu, tantas vezes o tenho dito , a Deus tenho obrigação de a restituir, mas só quando ele for servido e mais ninguém. Quanto à língua, cortaram-me a trave ao nascer; mas nunca levantei falsos testemunhos, nem acoimei de curta mulher honrada, nem de cornel sujeito que não tivesse testa para marrar. Guar-te de homem que não fala e de cão que não ladra, por isso eu sempre falei, falo e falarei franco até morrer, pois se nós o temos no pensamento, acautelá-lo da boca só por ronha ou cobardia.
Mas onde eu punha epitáfio, caía mais certo que os nabos no advento. Onde cortava nos podres é que os podres buliam com Deus e com os homens. Às vezes valia mais que lancetar um leicenço. Valia! Eu lhes conto um passo assucedido, pelo qual, se o Pai do céu se não esqueceu de o apontar no livro da glória e a remissão é certa, do pecado mais taludo estou quite, ainda que me não morda nenhum de monta. Pois oiçam, meus fidalgos: … um entrudo, quinta-feira mesmo das comadres, à boca da noite, o Bisagra desafiou-me na venda do Zé Pinto para jogar uma partida de chincalhão. Vossorias sabem: o Bisagra era senhor duma destas galhaduras, mais formosas, compridas e retorcidas como não há memória que andasse armada a testa dum serrano. Mais abundante nem paliteiro com os palitos, e assim falada nem a porca de Murça. Tão coitadinho, que seria caridade dizer-lhe ao passar um portal baixa que marras! A mulher era fêmea de alto lá com ela, sempre mais frescal que alface, requestada de fidalgo e de padre-cura.
Pegámos das cartas e o ladrão com a felícia toda, o sortalhão que dizem próprio daqueles a quem sobra o que falta às cabras mochas! Na cova da mão, sempre o cinco de oiros, a espadilha, o cinco de paus, levantou-me em catréfia seguida quatro quartilhos e um bolo. Paguei, mas bufei, que à mandinga da sua condição e não a jeito nem à sorte honesta atribuí eu, e comigo todos quantos ali estavam, aquele desaforo a ganhar. E, maneira de desforço, fui chasqueando nesta voz pausada que Deus me deu, pela qual alguns mequetrefes, nas minhas costas, me comparam à bezerrinha mansa que em todas as vacas mama: - Este Manuel é o que se chama um regalão. Bem comido, bem bebido, mais fresco nem o nosso abade! Pois olhem, é do mesmo ano que eu, mas ninguém o há-de dizer Os trabalhinhos estragam mais que o tempo! Sempre a arrotar pescada, a este felizardo só falta cartola e bengala. As fêmeas é que dão cabo dele. Raios o partam, com uma mulher daquelas, tudo o que há de mais liró, e não tem nojo de ir à Preciosa! Não te basta a Claudina, maganão? Ah Cristo, eu, se pilhasse uma mulher assim, estava-me ninando para as mais! Também estou velho, lá na Brízida dou um beijo quando dou...
O Bisagra ria, muito ancho da canada que me bebera e das palavras que eu proferia, e lhe sabiam tão bem como o vinho, e a roda estava maluca de alegria com o entremez e o ver-me com cara de asno, que é sempre a cara do pagante. Mas vai senão quando, o Bisagra saiu fora satisfazer as necessidades ou a revessar a vinhaça, e eu virei de folha: - Cem cães o comam para chavelhudo! Vai à bostiqueira da Preciosa porque a Claudina lhe diz tó-ruça; guarda-se para os outros, para os figuros, para quem ela quer. Cornambana do inferno! Se fosse a mim, ia-me a ela, e, ó menina, ou és minha mulher a valer ou te pico aqui a barriga como à cebola para o refogado...» In Aquilino Ribeiro, O Malhadinhas, Mina de Diamantes, Assembleia da República, 2007, Bertrand Editora, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-25-1631-0.

Cortesia Bertrand/JDACT

A Bela Poesia. Natália Correia. «Temos fantasmas tão educados que adormecemos no seu ombro, somos vazios despovoados de personagens de assombro. Dão-nos a capa do evangelho e um pacote de tabaco. Dão-nos um pente e um espelho pra pentearmos um macaco»

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Bilhete para o Amigo Ausente
Lembrar teus carinhos induz
a ter existido um pomar
intangíveis laranjas de luz
laranjas que apetece roubar.

Teu luar de ontem na cintura
é ainda o vestido que trago
seda imaterial seda pura
de criança afogada no lago.

Os motores que entre nós aceleram
os vazios comboios do sonho
das mulheres que estão à espera
são o único luto que ponho.


Do Sentimento Trágico da Vida
Não há revolta no homem
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.

Aquilo que nele mente
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.

Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.

Rebeldia é o que põe
na nossa mão um punhal
para vibrar naquela morte
que nos mata devagar.

E só depois de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.


Queixa das almas jovens censuradas
Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola.

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade.

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência.

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro.

Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós.

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo.
[…]

Poemas de Natália Correia

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