«(…) Nessa noite, que tantas as vezes observei da janela da casa onde nasci,
nas agrestes montanhas do Norte, na de meus tios que me criaram, eu colocava
como num desenho, em tons negros ou cinzentos, a dor da velhice, os seus
terrores, como eles existiam sob as copas e os troncos, onde se acoitavam
malfeitores na loucura da sua violência fratricida. A noite amedrontou-me
sempre, é certo, com a sua face obscura, secreta, implacável. E à treva
associei o envelhecimento, a tristeza, a desilusão, a ameaça pertinente e
invencível da dissolução de outros rostos, como a já vira devastar os de
mulheres e homens que me rodearam na meninice e comigo conviveram. Vi-a durante
os últimos anos destruir o rosto de Fernando,
a sua face pura, belíssima, o seu nariz direito, fino, que no fim traduzia a transparência
das asas de certos insectos, os seus olhos cor de mel, quase fulvos, risonhos,
onde crepitava, numa alegria de embriaguez controlada, o ouro e o Sol, o seu
poderoso corpo esbelto, forte, que continha, como um vinho precioso, a força do
desejo e a ilusão do prazer eterno, as grandes forças da terra e da luz que,
unidas, são a origem da vida e o nosso sonho de eternidade que se repete sempre
em cada ser e em cada geração. Mas a ideia da velhice está muito longe de nós, em
certos momentos da nossa existência, mesmo quando observamos o seu insidioso
caminho na face dos que sofrem a sua transmutação. A velhice. Nunca a pensei
instalada no frágil alicerce de meu corpo, nos meus tempos áureos dos Paços,
com o amor obcecado e confuso de Fernando,
o amor cego, infantil, ingénuo, de quem não sabe amar...
Quando a senti pela primeira
vez? Quando? Em Santarém, em Coimbra, em Elvas?
Não.
Foi em Lisboa, naquela desgraçada noite em que o Mal começou a vingar-se de mim
para não mais me larga; o Mal, a traição, a cobardia dos homens. Aquela
terrível noite nos Paços, que se seguiu à morte do infeliz João Fernandes. Foi
nessa noite, porque, apesar de a idade não o justificar, percebi que começara a
perder a partida. Apenas fazia parte, e a parte menor, da intriga urdida por
todos, meu melífluo cunhado, ambicioso, cobarde e velhaco, sequioso do poder,
esfaimado de honras onde poderia esquecer a sua bastardia que nunca perdoou; os
ingleses, que já nessa altura, secretamente, o apoiavam e, tenho a certeza, lhe
ordenaram a morte do conde de Andeiro, de cujos serviços já não necessitavam,
porque a rainha viúva de Portugal deixara de centrar na sua pessoa o interesse político
que antes detinha e preferiam apoiar o pretendente espúrio que vivia em
Portugal (já que o outro estava detido em Castela, meu cunhado, filho de D.
Inês) e que os homens de negócios de Lisboa desejavam, manobrando a
arraia-miúda a seu bel-prazer, como se a canalha das ruas tivesse opinião
política fosse sobre o que fosse. Antes o bastardo que a fraqueza de uma mulher
que permitisse a Castela tomar o Reino pela mão da jovem D. Beatriz, minha
filha. Só que não era assim. O tratado fora muito claro e Fernando defendeu, como pôde, a independência do Reino. John of Gaunt,
que teve fundas pretensões ao trono de Castela, ainda não as perdera e
impediria por todos os meios que Castela engolisse Portugal antes de ele
próprio ser rei, por questões estratégicas e políticas, evidentemente, mesmo
que por direito adquirido no casamento. Apenas por isso, apoiou o discreto e
aparentemente submisso Mestre de Avis que aceitaria
qualquer apoio, viesse de onde viesse, para ser rei.
A velhice instalou-se comigo em Tordesilhas nestes últimos dois anos.
Tenho
trinta e seis anos e estou velha, desiludida. Sei que ainda não morri
porque meu estúpido genro, tão escravo de protocolos, mesquinho e vingativo,
apesar de tudo e do ódio que me tem, não se atreve a dar-me o golpe final, bem
ao estilo da família dele que mata os irmãos à punhalada, por causa de minha
filha, Beatriz. Mas sabeis que até
ela me odeia e me abandonou. É apenas uma criança que ele domina.
Ah, frei Juan! Esse olhar azul! Não esqueço a vossa ascendência borgonhesa.
Tendes uns olhos compreensivos, leais, carinhosos. O Cambridge tinha-os
menos profundos mas sempre frios e perscrutadores. O Cambridge...
Voltemos então à nossa história, meu amigo. Àquilo por que vos pedi para virdes
estar comigo. Quando olho por esta janela já nem sequer fico triste. E a partir
de ontem muito menos. Conheceis a
lenda da Pedra-que-chora? Contaram-ma quando aqui entrei. A pedra
existe, aqui, no velho pátio mourisco do edifício. Dizem, não sei se é
verdade, que ela se humedece quando está para morrer alguém coroado… E a
pedra dos desígnios, uma espécie de pedra do destino. Pois bem, ela ontem
chorou. A água, confessou-me a jovem monja oriunda de Toledo, de uma velha
família ainda aparentada com a minha, começou a correr, em fio. Um fio
transparente e brilhante como prata líquida. Minutos depois, outro fio de água,
paralelo, deslizou até ao chão». In Seomara da Veiga Ferreira, Leonor Teles,
ou o Canto da Salamandra, 1998, Editorial Presença, Lisboa, 1999, ISBN
942-23-2347-4.
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