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de wikipedia
Resumo
O
presente ensaio estabelece a importância da presença da História nos textos literários,
desde a Idade Média até ao presente. Começando por estudar a ausência de
sentido histórico e a inevitável anacronia daí decorrente, debruça-se em
seguida sobre as mudanças operadas no século XIX, a fim de melhor se poderem
compreender a subversão e transgressão que se verificam a partir do fim dos
anos 70 de novecentos. Nos romances pós-modernos, acentua-se a importância da
máscara e do duplo, no tratamento que sofrem os factos concretos, a biografia e
autobiografia (fictícia) de personagens do passado, a confusão e invenção dos
tempos, a memória e o próprio significado conceptual de acontecimentos e
atitudes.
«A oposição primária entre
História e Literatura tem proporcionado o aparecimento de mal-entendidos que,
se por um lado, se esquivam a desvendar as evidentes relações entre as duas,
por outro, tendem a encontrar pontos de contacto só aceitáveis se esquecermos
as abissais diferenças. A incomodidade, provocada pela proximidade indesejada e
pelo afastamento voluntário, tem como consequência uma ambiguidade produtiva
que se manifesta, simultaneamente, nas produções literárias desde os tempos
mais antigos e nos estudos históricos, que se assumem irremediavelmente como
construção narrativa, sob pena de se tornarem numa sequência de datas e de
factos sem interpretação. Aliás, a ousadia ocidental de reproduzir o real e os
problemas daí decorrentes são magistralmente significados num recente romance do
Nobel da literatura turco, Orhan Pamuk, O Meu Nome é Vermelho,
quando uma personagem explica a razão do perigo da mimese:
Segundo
ele, nós teríamos representado no último desenho o rosto de um mortal de acordo
com as regras do Ocidente, isto é, dando a impressão, não de uma imagem, mas da
realidade, de maneira que esta obra incita os que a contemplam a prosternarse perante
ela, como numa igreja. (Pamuk 2007)
A ilusão, que parece estar
tacitamente presente em toda a representação do real, implica a desconstrução
do conceito de imitação e a tentativa, vã, de fixar num momento ideal, a vida e
a sua reduplicação. É assim que outra personagem resume o dilema da arte e faz
lembrar Óscar Wilde, em The Picture of Dorian Gray:
O
meu filho Orhan, que é pouco subtil de pensamento ao ponto de seguir sempre a
lógica, explica-me há vários anos que, por um lado, os mestres eternos de Herat
não poderiam pintar-me como eu sou, e que, por outro lado, os pintores da
Europa, que não param de pintar crianças com as mães, são incapazes de parar o tempo:
e que, por isso, a minha felicidade nunca poderá ser posta em pintura. (Pamuk 2007)
A incapacidade de reprodução do
real, seja ele o do presente ou o do passado, a consciência de que as
palavras não exprimem nunca o conflito, mas o seu fantasma (Bessa-Luís 1988) e de que a
literatura (…) é uma experiência apenas virtual, que não pode ser utilizada de
modo efectivo (Gersão
1984),
condicionam a interacção entre História e Literatura, porque uma sabe não poder
viver sem a outra, mas sabe também os inevitáveis conflitos que se geram entre
a tentativa de estudar e compreender o passado e a tentativa de o fazer
interagir, numa perspectiva dinâmica, com o presente e o futuro: (…) é
necessário ir criando espaço para o passado que mais convém ao nosso futuro
(Macedo
2000),
como diria Hélder Macedo no romance Vícios e Virtudes. Há,
pois, a vontade de recuperar o texto perdido da História, na convicção plena de
que A
realidade é um estorvo para os criadores (Bessa-Luís 1988) e de que o
modelo e o retrato nunca coincidem, como escreve José Saramago em Manual
de Pintura e Caligrafia:
Na
verdade, se qualquer retratado pudesse, ou soubesse, ou quisesse, analisar a
espessura pastosa, informe, dos pensamentos e emoções que o habitam, e tendo
analisado encontrasse as palavras (…) saberíamos que ele, aquele seu retrato é
como se tivesse existido sempre, um outro-ele mais fiel do que o-ele de ontem (…).
Mal vai porém ao pintor, ou dizendo mais rigorosamente, pior vai porém ao
pintor, se, tendo de pintar um retrato, descobre que tudo quanto lançou à tela
é cor anárquica e desenho louco, e que o conjunto de manchas só reproduz do modelo
uma semelhança que a este satisfaz, mas ao pintor não. (Saramago 1985)
In
Maria
de Fátima Marinho, As Máscaras do Passado, Universidade do Porto, Revista Limite, nº 2, 2008, ISSN
1888-4067.
Cortesia
da UPorto/JDACT