quinta-feira, 3 de abril de 2014

As Máscaras do Passado. Maria de Fátima Marinho. «A culpa era de Orlando, talvez; mas, apesar de tudo, poderemos censurar Orlando? A época era a elisabetana, a sua moralidade não era a nossa; nem os seus poetas; nem o seu clima; nem mesmo os seus legumes. Tudo era diferente»

Cortesia de wikipedia

«Na Idade Média, o passado não era sentido como diferente e as personagens de outras eras eram visionadas como anjos ou demónios e os seus actos explicados através do sobrenatural. Ainda no século XVI, Luís de Camões, em Os Lusíadas, se limita, pela boca de Vasco da Gama, a enaltecer os feitos heróicos ou amorosos, não havendo qualquer análise mais detalhada dos movimentos históricos ou das mentalidades das personagens em jogo. A sucessão dos reis e suas façanhas anula a relativização da heroicidade e do discurso encomiástico que os textos devedores da estratégia do poder nos transmitiram. Só a partir de meados do século XVIII se começa a ter uma noção, embora ainda ténue, da real diferença entre as épocas. As frases de Orlando, de Virgínia Woolf, a seguir citadas, são reveladoras da diferença de mentalidades e de costumes. Nem o século XIX, como veremos, tem uma noção tão nítida da diferença:

A culpa era de Orlando, talvez; mas, apesar de tudo, poderemos censurar Orlando? A época era a elisabetana, a sua moralidade não era a nossa; nem os seus poetas; nem o seu clima; nem mesmo os seus legumes. Tudo era diferente. Mesmo o tempo, o calor e o frio do Verão e do Inverno, eram, podemos acreditar, absolutamente de outra qualidade.

Na realidade, o século XIX marca o início dos estudos da História científica e rigorosa. Herdeiros dos enciclopedistas do século anterior, os intelectuais oitocentistas perceberam que era necessário estudar convenientemente o passado, para argumentar a favor de uma nacionalidade em perigo e de uma camada social que ainda não tivera tempo de assimilar os valores culturais legitimadores de uma identidade. Compreende-se assim o papel de Alexandre Herculano, ao escrever Eurico o Presbítero, O Bobo e O Monge de Cister, cuja acção se situa, respectivamente, no século VIII, aquando da invasão árabe e da correspondente ofensiva da Reconquista cristã, no tempo de Afonso Henriques e no de João I, logo a seguir a Aljubarrota.
Os momentos-chave para a consolidação da nação conjugam-se com pormenores que destacam a topografia dos lugares, as vestes das personagens, consoante a sua classe social, crença religiosa ou nacionalidade, as manifestações culturais ou bélicas. Pretendiam os românticos reconstituir fielmente o passado, na mira de ensinar à nova burguesia emergente os valores ancestrais, criando-lhes laços com a tradição. Acreditavam então que bastava estudar os documentos antigos para se ter um conhecimento completo e irrecusável de outros tempos e que estes, uma vez estudados, eram imutáveis e completos. A par desta crença inabalável na fiabilidade dos textos antigos, havia ainda a ignorância absoluta dos modos de ser e agir dos seres do passado, criando-se uma fundamental anacronia, na medida em que, e apesar de adereços de época, as atitudes, sentimentos e acções, não condizem com o século em que parecem situar-se. Personagens românticas, idênticas às dos romances situados no tempo da escrita, movem-se em cenários que não lhes são estranhos. Aliada a esta singular debilidade, está também a importância e relatividade do ensino da História. É difícil aprender História em textos onde os dados objectivos são inegavelmente de segundo plano e onde os enredos, só exteriormente e em detalhes desinteressantes, têm a ver como passado. Razão tinha Manzoni quando assumia a descrença no papel didáctico do romance e razão tinha Camilo Castelo Branco, quando descurava essa intenção didáctica, usando e abusando da ironia, em ambos os sentidos:

Sabeis demasiado o que foi a revolução francesa, essa tempestade de sangue, vaticinada nos reinados de Luís XIV e Luís XV, e cumprida como a profecia indestrutível de uma lógica de ferro, em que vemos um rei pagar com a cabeça os desatinos que lhe vieram, em herança dos reis passados. Se não conheceis os pormenores dessa luta, cuja história contrista e horroriza, nem por isso vos obrigo a estudá-la como preparatório para a inteligência deste romance. Vós prescindis, naturalmente, de tudo que são acessórios, e eu também prescindo de fazer-vos meu auditório numa pesada prelecção dos sucessos decorridos entre 1789 e 1806. (Camilo 1971);  e o seguimento deste capítulo ameaça enfados e razoáveis espreguiçamentos. Livre-se dele o leitor, se quiser. Eu é que não posso, (…) esquecer-me de que sou, neste caso, historiador, e exorcizo e abomino as execráveis tentações do romancista.
(Camilo 1987)»

In Maria de Fátima Marinho, As Máscaras do Passado, Universidade do Porto, Revista Limite, nº 2, 2008, ISSN 1888-4067.

Cortesia da UPorto/JDACT