«Na Idade Média, o passado não
era sentido como diferente e as personagens de outras eras eram visionadas como
anjos ou demónios e os seus actos explicados através do sobrenatural. Ainda no
século XVI, Luís de Camões, em Os Lusíadas, se limita, pela
boca de Vasco da Gama, a enaltecer os feitos heróicos ou amorosos, não
havendo qualquer análise mais detalhada dos movimentos históricos ou das mentalidades
das personagens em jogo. A sucessão dos reis e suas façanhas anula a
relativização da heroicidade e do discurso encomiástico que os textos devedores
da estratégia do poder nos transmitiram. Só a partir de meados do século XVIII
se começa a ter uma noção, embora ainda ténue, da real diferença entre as
épocas. As frases de Orlando, de Virgínia Woolf, a seguir
citadas, são reveladoras da diferença de mentalidades e de costumes. Nem o
século XIX, como veremos, tem uma noção tão nítida da diferença:
A
culpa era de Orlando, talvez; mas, apesar de tudo, poderemos censurar Orlando?
A época era a elisabetana, a sua moralidade não era a nossa; nem os seus
poetas; nem o seu clima; nem mesmo os seus legumes. Tudo era diferente. Mesmo o
tempo, o calor e o frio do Verão e do Inverno, eram, podemos acreditar, absolutamente
de outra qualidade.
Na realidade, o século XIX marca
o início dos estudos da História científica e rigorosa. Herdeiros dos
enciclopedistas do século anterior, os intelectuais oitocentistas perceberam
que era necessário estudar convenientemente o passado, para argumentar a favor
de uma nacionalidade em perigo e de uma camada social que ainda não tivera
tempo de assimilar os valores culturais legitimadores de uma identidade.
Compreende-se assim o papel de Alexandre Herculano, ao escrever Eurico o
Presbítero, O Bobo e O Monge de Cister,
cuja acção se situa, respectivamente, no século VIII, aquando da invasão árabe
e da correspondente ofensiva da Reconquista cristã, no tempo de Afonso
Henriques e no de João I, logo a seguir a Aljubarrota.
Os momentos-chave para a
consolidação da nação conjugam-se com pormenores que destacam a topografia dos
lugares, as vestes das personagens, consoante a sua classe social, crença religiosa
ou nacionalidade, as manifestações culturais ou bélicas. Pretendiam os românticos
reconstituir fielmente o passado, na mira de ensinar à nova burguesia emergente
os valores ancestrais, criando-lhes laços com a tradição. Acreditavam então que
bastava estudar os documentos antigos para se ter um conhecimento completo e
irrecusável de outros tempos e que estes, uma vez estudados, eram imutáveis e
completos. A par desta crença inabalável na fiabilidade dos textos antigos,
havia ainda a ignorância absoluta dos modos de ser e agir dos seres do passado,
criando-se uma fundamental anacronia, na medida em que, e apesar de adereços de
época, as atitudes, sentimentos e acções, não condizem com o século em que
parecem situar-se. Personagens românticas, idênticas às dos romances situados no
tempo da escrita, movem-se em cenários que não lhes são estranhos. Aliada a
esta singular debilidade, está também a importância e relatividade do ensino da
História. É difícil aprender História em textos onde os dados objectivos são
inegavelmente de segundo plano e onde os enredos, só exteriormente e em
detalhes desinteressantes, têm a ver como passado. Razão tinha Manzoni quando
assumia a descrença no papel didáctico do romance e razão tinha Camilo
Castelo Branco, quando descurava essa intenção didáctica, usando e abusando
da ironia, em ambos os sentidos:
Sabeis
demasiado o que foi a revolução francesa, essa tempestade de sangue, vaticinada
nos reinados de Luís XIV e Luís XV, e cumprida como a profecia indestrutível de
uma lógica de ferro, em que vemos um rei pagar com a cabeça os desatinos que lhe
vieram, em herança dos reis passados. Se não conheceis os pormenores dessa
luta, cuja história contrista e horroriza, nem por isso vos obrigo a estudá-la
como preparatório para a inteligência deste romance. Vós prescindis,
naturalmente, de tudo que são acessórios, e eu também prescindo de fazer-vos
meu auditório numa pesada prelecção dos sucessos decorridos entre 1789 e 1806. (Camilo 1971); e o
seguimento deste capítulo ameaça enfados e razoáveis espreguiçamentos. Livre-se
dele o leitor, se quiser. Eu é que não posso, (…) esquecer-me de que sou, neste
caso, historiador, e exorcizo e abomino as execráveis tentações do romancista.
(Camilo
1987)»
In
Maria
de Fátima Marinho, As Máscaras do Passado, Universidade do Porto, Revista Limite, nº 2, 2008, ISSN
1888-4067.
Cortesia
da UPorto/JDACT