Os muros absurdos
(…) Da mesma forma, e ao
longo de todos os dias de uma vida sem brilho, o tempo nos carrega. Mas sempre
chega um momento em que é preciso carregá-lo. Vivemos para o futuro: amanhã, mais tarde, quando
tiveres uma situação, com o
tempo vai compreender. Essas inconsequências são admiráveis porque, afinal,
se trata de morrer. Mas chega um dia e o homem verifica ou diz que tem trinta
anos. Afirma assim sua juventude. Mas, nesse mesmo desenlace, se situa com
relação ao tempo. Ocupa ali seu lugar. Reconhece que está num dado momento de
uma curva que confessa ter de percorrer. Ele pertence ao tempo e, nesse horror que
o agarra, reconhece nele seu pior inimigo. Amanhã, ele queria tanto amanhã,
quando ele próprio deveria ter-se recusado inteiramente a isso. Essa revolta da
carne é o absurdo. Um degrau
mais abaixo e eis a estranheza: dar-se conta de que o mundo é espesso, entrever até que ponto
uma pedra é estranha, nos é irredutível, e com que intensidade a natureza ou
uma paisagem pode nos negar. No fundo de toda a beleza jaz alguma coisa de
inumano e essas colinas, a doçura do céu, esses desenhos das árvores, eis que
no mesmo instante perdem o sentido ilusório de que os revestimos, doravante
mais longínquos que um paraíso perdido. A primitiva hostilidade do mundo,
através dos milénios, se levanta de novo contra nós.
Por um segundo, não a compreendemos
mais, porque durante séculos só compreendemos nela as figuras e os desenhos com
que previamente a representávamos, e porque doravante nos faltam forças para
nos valermos desse artifício. O mundo nos escapa porque volta a ser ele mesmo.
Esses cenários mascarados pelo hábito tornam a ser o que são. E se afastam de
nós. Assim como há certas horas em que sob o rosto familiar de uma mulher se
redescobre como uma estranha aquela que se amara há meses ou há anos, talvez cheguemos
até a desejar o que nos torna subitamente tão sós. Mas ainda não é chegada a
hora. Só há uma coisa: essa espessura e essa
estranheza do mundo é o absurdo. Os homens também destilam um tanto
do inumano. Em certas horas de lucidez, o aspecto mecânico de seus gestos, sua pantomima
destituída de sentido faz ficar estúpido tudo aquilo que os rodeia. Um homem
fala no telefone por trás de uma divisória envidraçada; não é ouvido, mas se vê
sua mímica inalcançável: e se pergunta por que ele vive. Esse desconforto
diante da inumanidade do próprio homem, essa queda incalculável diante a imagem
do que nós somos, essa náusea como a
denomina um autor dos nossos dias, é também o absurdo. De igual modo o estranho
que em determinados momentos vem ao nosso encontro num espelho, o irmão
familiar e no entanto inquietante que reencontramos em nossas próprias
fotografias, é ainda o absurdo.
Daí eu chego finalmente
à morte e à sensação que temos dela. Sobre esse ponto já se disse tudo e é
decente evitar o patético. Mas nunca nos espantaremos suficientemente com o que
todo mundo vive como se ninguém o soubesse.
É que, na realidade, não existe experiência da morte. Num sentido estrito, só é
experimentado o que foi vivido e se tornou consciente. Com isso, é indiscutível
que se pode falar da experiência da morte dos outros. É um sucedâneo, uma visão
do espírito, e jamais ficamos muito convencidos dela. Essa convenção
melancólica não pode ser persuasiva. Na realidade, o horror provém do lado
matemático do acontecimento. Se o tempo nos assusta, é que ele faz sua
demonstração. A solução poderá vir em seguida. Todos os belos discursos sobre a
alma terão aqui, ao menos por algum tempo, uma prova dos nove de seu
oposto. Nesse corpo inerte, em que uma bofetada não se distingue mais,
a alma desapareceu. Este lado elementar e definitivo da aventura torna absurdo
o conteúdo do sentimento. Sob a iluminação mortal desse destino, aparece a
inutilidade. Nenhuma moral, nenhum esforço são a priori justificados
ante as sangrentas matemáticas (dos políticos actuais) que organizam a
nossa condição». In Albert Camus, O Mito de Sísifo, Ensaio sobre o Absurdo, Livros do
Brasil, ISBN 978-972-38-2759-0.
Cortesia de
LBrasil/JDACT