terça-feira, 22 de abril de 2014

O Amor e o Ocidente. Denis de Rougemont. «O ‘mito de Tristão e Isolda’ já não será só o Romance, mas o fenómeno que ele ilustra e cuja influência não cessou de se prolongar até aos nossos dias. Paixão da natureza obscura, dinamismo excitado pelo espírito…»

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O Mito de Tristão
«(…) Ora se o quadro desaparece, essa paixão não deixa de subsistir. Ela é sempre igualmente perigosa para a vida da sociedade. Tende sempre para provocar, por parte da sociedade, uma ordenação equivalente. Donde a permanência histórica, não já do mito sob a sua forma primitiva, mas da exigência mítica a que o Romance correspondia. Alargando a nossa definição, passaremos a chamar mito a essa permanência de um tipo de relações e às reacções que provoca. O mito de Tristão e Isolda já não será só o Romance, mas o fenómeno que ele ilustra e cuja influência não cessou de se prolongar até aos nossos dias. Paixão da natureza obscura, dinamismo excitado pelo espírito, possibilidade pré-formada em busca de uma pressão que o exalte, encanto, terror ou ideal: tal é o mito que nos atormenta. Ter ele perdido a sua forma primitiva, eis precisamente o que o torna tão perigoso. Os mitos caídos tornam-se venenosos como as verdades mortas de que fala Nietzsche.

Actualidade do mito; razões da nossa análise
Não é preciso ter-se lido o Tristão de Béroul ou o de Bédier nem ter ouvido a ópera de Wagner para se sofrer na vida quotidiana o domínio nostálgico dum tal mito. Ele trai-se na maior parte dos nossos romances e filmes, no seu êxito junto das massas, nas complacências que desperta no coração dos burgueses, dos poetas, dos mal-casados, das costureiras que sonham com amores miraculosos. O mito age sobretudo onde a paixão é sonhada como um ideal, não temida como uma febre maligna; por toda a parte onde a sua fatalidade é chamada, invocada, imaginada como uma bela e desejável catástrofe e não como uma catástrofe. Vive da própria vida daqueles que acreditam que o amor é um destino (era o filtro do romance) que desaba sobre o homem, impotente e maravilhado, para o consumir num fogo puro; e que é mais forte e mais verdadeiro do que a felicidade, a sociedade e a moral. Vive da própria vida do romantismo em nós; é o grande mistério dessa religião de que os poetas do século passado se fizeram sacerdotes e inspirados.
Dessa influência e da sua natureza mítica, a prova é de resto imediata. O romance de Tristão é-nos sagrado na medida exacta em que se achar que eu cometo um sacrilégio ao tentar analisá-lo. Sem dúvida que essa censura se reveste agora de um sentido bem anódino, se pensarmos que ela se traduzia, nas sociedades primitivas, não por essa repugnância que eu prevejo, mas pela morte do culpado. O sagrado que aqui entra em jogo não é mais que uma sobrevivência obscura e deprimida. Ou simplesmente que os homens de hoje não são menos débeis em suas paixões que nos seus gestos de reprovação? À falta de inimigos declarados, onde estará a coragem que aos escritores se reclama? Será preciso que eles a exerçam contra si próprios? E poder-se-á verdadeiramente travar batalha a não ser com o adversário que trazemos em nós? Confesso que eu próprio senti despeito ao ver um dos comentadores da lenda de Tristão defini-la como uma epopeia do adultério. A fórmula é sem dúvida exacta, se nos limitarmos a considerar os dados do Romance. Não deixa por isso de parecer menos vexatória e prosaicamente restrita. Poder-se-á manter que a falta moral é o verdadeiro assunto da lenda? O Tristão de Wagner, por exemplo, não seria mais que uma ópera do adultério? E o adultério, por fim, não será mais que isso? Uma palavra feia? Uma ruptura de contrato? É também isso; não é mais do que isso em demasiados casos; mas frequentemente é muito mais do que isso: uma atmosfera trágica e apaixonada, para além do bem e do mal, um belo drama ou um drama horrível... Enfim, é um drama, um romance. E romantismo vem de romance...
A primeira é que nós atingimos o ponto de desordem social em que o imoralismo se revela mais extenuante que as morais antigas. O culto do amor-paixão democratizou-se de tal modo que perde as suas virtudes estéticas e o seu valor de tragédia espiritual. Resta um confuso e difuso sofrimento, qualquer coisa de impuro e triste de que não me parece que se perderá coisa alguma em profanar as causas falsamente sagradas: essa literatura da paixão, essa publicidade que lhe fazem, essa voga de aspecto comercial do que foi um segredo religioso... É preciso declararmo-nos contra tudo isso, mesmo que fosse apenas para salvar o mito dos abusos da sua extrema vulgarização. E tanto pior para o sacrilégio. A poesia tem outras hipóteses». In Denis de Rougemont. L’Amour et l’Occident, Librarie Plon, 1938, O Amor e o Ocidente, Vega, Lisboa, 1956.

Cortesia de Vega/JDACT