quarta-feira, 16 de abril de 2014

O Livro Negro. Hilary Mantel. «Portanto já vedes, diz Jane aos irmãos, nós, senhoras, não passamos o nosso tempo em calúnias e escândalos vãos. Embora Deus saiba que temos mexericos que chegavam para uma cidade inteira de mulheres. Falamos sobre quem está apaixonado pela rainha»

Cortesia de wikipedia e jdact

Falcões. Wiltshire, Setembro de 1535
«(…) Ele olha para Jane Seymour, como o pai dela indica. Conhece-a bem da corte, dado que ela era dama de companhia de Catarina, a anterior rainha, e de Anne, a que é rainha agora; é uma rapariga recatada com uma palidez de prata, o hábito do silêncio e uma maneira peculiar de olhar para os homens como se representassem uma surpresa desagradável. Está a usar pérolas e um vestido de brocado branco bordado com raminhos de cravos muito tesos. Ele reconhece uma despesa considerável sem contar com as pérolas, ninguém se apresenta assim por muito menos de trinta libras. Não admira que se mexa com uma preocupação cautelosa, como uma criança a quem foi recomendado que não entorne nada em cima de si. - Jane, agora que te encontramos em casa com a tua gente, estais menos tímida?, pergunta o rei, tomando-lhe a mão pequenina na sua ampla mão. - Na corte nunca lhe ouvimos uma palavra. Jane levanta os olhos para ele, corando do pescoço à raiz dos cabelos. – Alguma vez viram um rubor assim?, pergunta Henry. - Nunca, só numa miúda de doze anos. - Não posso pretender ter doze anos - diz Jane.
À ceia, o rei senta-se ao lado de Lady Margery, a anfitriã. No seu tempo, foi uma beldade e, pela requintada atenção do rei, pensar-se-ia que ainda o é agora; teve dez filhos e seis deles ainda são vivos e três estão nesta sala. Edward Seymour, o herdeiro, tem uma cabeça comprida, uma expressão séria, um fero perfil bem definido: um belo homem. Tem instrução, embora não seja um estudioso, aplica-se com sabedoria em qualquer cargo que lhe seja atribuído; esteve na guerra e, enquanto espera por tornar a combater, desempenha bem o seu papel na caça e nos torneios. O cardeal, no seu tempo, marcara-o como acima do normal na linhagem dos Seymour; e ele próprio, Thomas Cromwell, sondou-o e achou-o um homem do rei em todos os aspectos. Tom Seymour, o irmão mais novo de Edward, é ruidoso e turbulento e de mais interesse para as mulheres; quando entra numa sala há risinhos nas virgens e as jovens matronas baixam as cabeças e examinam-no por debaixo das pestanas. O velho Sir John é um homem com um espírito de família duvidoso. Dois, três anos antes, só se falava na corte de como tinha montado a mulher do filho, não uma vez no calor da paixão mas repetidamente, desde que era noiva. A rainha e as suas confidentes tinham espalhado a história pela corte. Calculámos que umas 120 vezes, tinha dito Anne num frouxo de riso. Bem, quem calculou foi Thomas Cromwell e ele tem boa cabeça para os números. Supomos que se abstiveram um domingo em nome do pudor e abrandaram na Páscoa.
A mulher traidora deu à luz dois rapazes e, quando a conduta dela veio a lume, Edward declarou que não os aceitaria como seus herdeiros visto não poder ter a certeza se eram seus filhos ou seus meios-irmãos. A adúltera foi fechada num convento e depressa lhe fez o favor de morrer; tem agora uma nova mulher, que cultiva uns modos altaneiros e traz no bolso um estilete para o caso de o sogro se chegar perto de mais. Mas está perdoado, está perdoado. A carne é frágil. Esta visita real sela o perdão do velho. John Seymour possui 525 hectares, incluindo o seu parque de veados, a maior parte do resto para ovelhas e valendo dois xelins por hectare por ano, proporcionando-lhe um rendimento de uns vinte e cinco por cento apenas do que a mesma área lhe daria sob o arado. As ovelhas são animais de focinho escuro cruzados com casta galesa da montanha, má carne mas lã bastante boa. Quando, à chegada, o rei (na sua veia bucólica) pergunta: - Cromwell, quanto pesará aquele animal? - Onze quilos, Senhor - responde ele, sem o sopesar. - O senhor Cromwell já foi tosquiador. Não deve estar enganado, comenta Francis Weston, um jovem cortesão, com ar trocista.
- Aqui em Wolf Hall somos todos grandes caçadores, gaba-se Sir John, incluindo as minhas filhas, Jane parece-vos tímida mas é pô-la em cima de um cavalo e garanto-vos, senhores, que é a deusa Diana em pessoa. Nunca incomodei as minhas raparigas com aulas, sabem. Aqui Sir James ensinou-lhes tudo o que precisavam. O padre ao fundo da mesa assente, satisfeito: um velho parvo com cabelos brancos, olhos turvos. Não é incomum que as filhas de uma família da cidade aprendam as suas letras e um pouco mais além disso, diz Edward Seymour. Podíeis tê-las querido num escritório de contabilidade. Já se ouviu falar. Ajudava-as a arranjar bons maridos, uma família de mercadores apreciaria essa preparação. - Imaginem as filhas do senhor Cromwell, diz Weston. – Eu nem me atrevo. Duvido que um escritório de contabilidade as pudesse conter. É de calcular que teriam uma mão certa para o machado. Bastaria deitar-lhes um olhar para qualquer homem sentir o chão fugir-lhe debaixo dos pés. E não quero dizer com isto que fossem fulminados pelo amor.
Portanto já vedes, diz Jane aos irmãos, nós, senhoras, não passamos o nosso tempo em calúnias e escândalos vãos. Embora Deus saiba que temos mexericos que chegavam para uma cidade inteira de mulheres. - Ah tendes?, diz ele. Falamos sobre quem está apaixonado pela rainha. Quem lhe escreve versos. - Baixa os olhos. - Quero dizer, quem está apaixonado por todas nós. Este ou aquele fidalgo. Conhecemos todos os nossos pretendentes e fazemos o seu inventário dos pés à cabeça, corariam se soubessem. Dizemos que terras têm e quanto recebem por ano e depois decidimos se os deixaremos escrever-nos um soneto. Se pensamos que não nos podem manter em grande estilo desdenharemos das suas rimas. É cruel, já vos digo. Ele diz, com certo desconforto, que não há mal em escrever versos a senhoras, mesmo às casadas, na corte é habitual». In Hilary Mantel, Bring Up the Bodies, 2012, O Livro Negro, Civilização Editora, Porto, 2013, ISBN 978-972-26-3594-3.

Cortesia de Civilização/JDACT