O jovem
«(…) A criança que vimos acompanhando foi, a pouco e pouco, crescendo para
dar lugar ao jovem que necessariamente surgiu moldado no sistema de múltiplas e
contraditórias influências que descrevemos; a personalidade desse jovem foi
assim descrita por Garcia de Resende sendo
muyto moço veo logo a ganhar tanta auctoridade com os povos, com os nobres e com
el-Rey seu pay, que não fazia conselho, nem cousa grande, em que o não metesse,
e tomasse seu parecer. Debrucemo-nos de novo sobre o significado da
formação intelectual, para tentarmos perceber a sua importância neste príncipe,
não perdendo de vista que na formação da personalidade o factor mais determinante é a existência de um ambiente que não só
influencie (...) mas sobretudo responda... No dizer de Luís de Matos
não há dúvida de que os príncipes e infantes
estudaram com maior ou menor aplicação as disciplinas do trívio (gramática latina,
lógica e retórica) e alguns deles as do quadrívio (aritmética, geometria,
astronomia e música). O cronista Garcia de Resende limitou-se a dizer que o
futuro rei João II aprendeu latim.
Elaine Sanceau, embora sem citar fonte, afirmou que o seu interesse ia da Matemática à Medicina, à Geografia, à
Astronomia, à cartografia, à Artilharia e à Construção Naval. Quando, em 1490, Cataldo Parísio Sículo
proferiu a Oração de boas
vindas à princesa D. Isabel, noiva do príncipe Afonso, afirmou de João II: Diz-se que são sete as artes liberais. Este
sapientíssimo rei parece não só conhecer todas sete, mas as nove... Sendo
as sete artes o trívio e o quadrívio, as outras duas serão, de acordo com
Moreira de Sá a oratória e a poesia. Este saber tão vasto de João condiz com a afirmação de Jerónimo
Münzer quando escreveu: O rei João II, é um homem instruidíssimo.
Nenhum destes elementos, contudo, deixa transparecer a sua formação política. É
esse aspecto que iremos tentar abordar. Como já ficou suficientemente documentado,
a corrente cultural de nítida influência em Portugal era de importação
italiana. E embora Pina Martins considere que em Portugal, como é óbvio, o humanismo não reveste formas de tão nobre
altitude espiritual e de tanto interesse histórico e filosófico-teológico como
na Itália (...) apesar das relações havidas entre os humanistas portugueses e
italianos..., nem por isso a sua força deixou de empurrar o que poderíamos
chamar a tendência política nacional. Efectivamente esta época viu Portugal, a
par de todo o ocidente europeu, insistir na modificação das estruturas
materiais e mentais que permitiram à própria Europa avançar na rota do seu extraordinário
destino. Esse destino foi, em Portugal, definitivamente marcado pela escola do
jovem Príncipe D. João. Muito influenciado pelo ideal do seu avô de
quem, como já ficou dito, os amigos e familiares fariam agigantar a imagem de
herói e confrontado com as exigências de um grupo senhorial que procurava
influenciar seu pai de modo a manter e aumentar as próprias prerrogativas, João foi definindo o que reprovava. No
entanto, no fulgor da sua adolescência e juventude, o Príncipe não contestou
nunca a figura de seu pai. Mas os outros, aqueles que rodeavam o soberano, o
influenciavam e aumentavam os próprios réditos à custa do depauperamento do
erário régio, esses sim, figuravam na lista das discordâncias do Príncipe.
Curiosamente eles eram os mesmos que haviam conduzido seu pai a Alfarrobeira,
que o mesmo é dizer, eles eram os que tinham condenado à morte o seu avô,
contribuindo indirectamente para o prematuro desaparecimento de sua mãe. À
medida que crescia no jovem a consciência desta realidade, a sua atitude para
com a facção que simbolizava o outro lado tornou-se cada vez mais
radical. Esta identificação, aliada a uma nova visão de governo e da pessoa do
rei, foram determinantes na opção que o Príncipe fez pela linha política do Regente seu avô. Leituras e
eventuais contactos com homens conhecedores de novos caminhos políticos, bem
como a influência dos italianos presentes na corte de seu pai, terão levado o
jovem a construir o seu próprio projecto de governo. Figuras da Europa mais próxima,
como a de Luis XI em França, seriam por ele admiradas na sua àcção centralizadora. Apesar de se
reconhecer como ultrapassado o Espelho de
Reis de Álvaro Pais, que até ao século anterior fora o manual
indicado para a formação dos príncipes; apesar de ser já corrente a sua
substituiçío por outros considerados mais actuais, como os de Egídio Romano
e de Pier Paolo Vergerio de que já falámos, mesmo assim não era ainda muito
claro o caminho a trilhar pelos monarcas deste final do sec. XV». In
Manuela Mendonça, D. João II, Um Percurso Humano e Político nas Origens da
Modernidade em Portugal, Imprensa Universitária 87, Editorial Estampa, Lisboa,
1991, ISBN 972-33-0789-8.
Cortesia de Estampa/JDACT