A Dialéctica das Antropologias. Gomes Eanes de Zurara e o nascimento do
discurso historiográfico de transição
«O conjunto das unidades discursivas de Gomes Eanes de Zurara forma um
lugar cultural de extrema complexidade no outono da medievalidade portuguesa. A Crónica
da Guiné é, sem dúvida, uma obra de dominante escrita medieval, mas é
também, e ao mesmo tempo, um campo teórico onde uma dominada forma nova de
escrever e pensar a História flui subterraneamente por entre os tradicionais
enunciados. Lugar do paradoxo onde se conjugam alguns dos primeiros enunciados
renascentistas da Cultura portuguesa com toda uma forma e limite tradicional de
pensar a realidade natural e social. o discurso historiográfico de Zurara marca em Portugal o nascimento
da transição lenta/gradativa e jamais linear, da historiografia medieval para a
historiografia renascentista. Transição que vai desde os meados do seculo XV
até às décadas de 1520 / 1530, altura em que Lopes de Castanheda e João
de Barros começam a escrever os seus renascentistas discursos. Transição
que vai de Zurara a Duarte Galvão (1445-1517), passando por Rui de
Pina (1460?-1522) e Garcia de Resende (1470-1536), transição que
corresponde no seu todo, à historiografia do primeiro andamento do Renascimento
português, isto é, ao período em que as categorias do ser e pensar herdado da
medievalidade são ainda, não apenas dominantes, mas mesmo determinantes em toda
a lógica e ordem do discurso. Transição gradativa entre o outono da medievalidade
e o nascimento do Renascimento português que levará Pedro de Mariz, em 1594, nos seus Diálogos de Vária História a chamar cronista a Rui de
Pina e historiador a João de Barros, mostrando a diferença que une /
separa ao mesmo tempo estes dois momentos.
Sujeito e Unidade Discursiva
Zurara (1410?-1474) nasceu no Ribatejo
e viveu desde muito cedo na Corte em estreita relação com o centro do poder
político estatal de Quatrocentos. No reinado de Duarte I exerceu funções administrativas
numa secretaria ou arquivo régio. Com Afonso V inicia a sua carreira historiográfica
ao ser nomeado cronista em substituição de Fernão Lopes, no ano de 1448. O quadro administrativo-político
agora em funções predominantemente intelectuais vai subindo na hierarquia
social e ao longo de 1451 / 1452 torna-se cavaleiro da
Casa Real, comendador da Ordem de Cristo e encarregado da livraria régia. A
partir de 6 de Junho de 1454,
acumula um novo cargo intelectual-burocrático, o de guarda-mor da Torre do Tombo,
que lhe duplica o confortável rendimento anual, então de 12 000 réis. As suas obrigações
de intelectual orgânico do poder político estatal não lhe impedem actividades
privadas como a de procurador do Mosteiro de Almoster e a de cronista de feitos
privados da mais alta nobreza que o levam a Marrocos entre 1467 e Agosto de 1468 em
missão de recolha documental.
Estas breves notas biográficas sobre Zurara servem-nos para o situarmos como tipologia intelectual.
Estamos frente a um quadro administrativo estatal que se intelectualiza cada
vez mais, vindo a restringir as actividades mais burocráticas em virtude do seu
estatuto de historiador. Tal evolução de quadro mais prático a teórico, de escriturário a escritor, está bem
documentada nas palavras de mestre Mateus Pisano em 1460: … era ele já homem
feito e de letras nada tinha ainda aprendido; mas ardia em tal desejo de saber,
que em breve veio a ser um bom gramático, notável astrólogo e grande cronista.
O conjunto das unidades discursivas de Zurara
distribui-se por quatro crónicas. A primeira é a Crónica da Tomada de Ceuta por El-Rei
D. João I, concluída em Silves a 25 de Março de 1450, e que foi deixada em adiantado estado por Fernão Lopes
e apenas retomada por Zurara ao
longo de 1449 e 1450. Por volta de 1453-1454, começou a Crónica
da Guiné, que só acabaria cerca de 1464.
Em 1458 inicia a Crónica
de D. Pedro de Meneses, terminada em 1463. Em 1464 começa a Crónica
de D. Duarte de Meneses, que acaba nos finais de 1468 ou inícios de 1469.
A Crónica de Guiné é, certamente, o escrito de Zurara que maiores problemas eruditos levanta. O manuscrito mais
antigo, de finais do século XV inícios do XVI, foi revelado por Ferdinand
Denis em 1893 e editado em Paris
/ 1841 pelo visconde de Santarém com o título de Crónica do Descobrimento e Conquista
da Guiné».
In Luís Filipe Barreto, Descobrimentos e Renascimentos, Formas
de Ser e de Pensar nos séculos XV e XVI, Temas Portugueses, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1983.
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