E Todos os Caminhos levam ao Falcão da Luz de Maio
«(…) O rei não se divorciou de Isabel de Lencastre, portanto, após
a morre do Infante, apesar de até teólogos e letrados terem sido chamados a
depor contra a indefesa rapariguinha de dezassete anos que casara com o rei de
Portugal. Afonso V mandou a esposa vir para Lisboa e foi recebê-la ao caminho
com todas as provas de amor e alegria. Isto pouco tempo depois de
Alfarrobeira. E a vida continuou. Nesse ano a ralé de Lisboa criou
problemas aos judeus, no mês de Dezembro. Tudo começou no mercado do peixe com
um grupo de rapazio estouvado e mal-intencionado que levantou a população,
atacando todos os judeus que encontrou e depois a judiaria onde roubou, feriu e
espoliou os judeus.
Se não fosse o conde de Monsanto, com a guarda, pôr cobro ao desacato,
teria havido um lamentável mar de sangue e um incontrolável massacre. Mesmo
assim, a mulher de mestre Tadeu morreu disso pois um dos populares que a
encontrou no mercado bateu-lhe com um ferro no peito. Meses depois, a mama do
lado direito começou a inchar, o bico a arrochear e a purgar, depois
recolheu... e ela morreu de cancro como a imperatriz Teodora. Era a frase que
ele me dizia, mais tarde, no seu scriptorium
junto da chaminé onde destilava o mercúrio:
Foi assim com Teodora, sabes?
A morte iguala-nos a todos. As Rainhas e as pobres judias que os cristãos matam
há séculos. Os cristãos e os outros... Todos somos fracos, irmão, fracos e
cobardes, mas eles são-no mais ainda que nós porque usam a violência, a brutalidade,
o mal e servem as ocultas forças de Satã. Que desde a minha infância se
transformou numa espécie de pedra angular do edifício da minha alma, o que
devia ser uma verdade insofismável em todos nós. Será que terei tempo para falar dele, de todos eles, de mim, de
Ruth, de todos nós? Ó meu Deus, dai-me forças! Fazei-me merecedor de
alguma coisa, por última que seja, da tua força! Apesar de tudo. Apesar de tudo
o que tu sabes, apesar das minhas dúvidas já, sobre o meu destino e a tua
sabedoria! Foi por essa altura que Afonso
contratou como pintor régio, um tal Nuno Gonçalves, que começou a
trabalhar primeiro numa sala do Paço da Alcáçova e, depois, na igreja de Santa
Cruz e até em casa própria. Começou por fazer cartões e desenhos para
tapeçarias que o rei mandava confeccionar na Flandres. Mais tarde foi ele quem
desenhou aquela obra belíssima onde se lia em tons de ouro, azul, verde e
vermelho a conquista de Arzila e que o rei colocou na grande sala de audiências
do Paço. Mas Afonso teve assuntos
prementes a tratar porque a morre do sogro trouxe-lhe um mar de tremendas
recriminações em todo o mundo, da Corte papal às reais e principescas. A
duquesa de Borgonha, acertadamente, queixou-se ao Papa da morte ultrajante do
irmão, verdadeiro assassínio, para ela, perpetrado a frio. Como poderia ela,
como cristã, celebrar exéquias condignas a seu irmão, homem de bem e fama e como convinha a um Príncipe de tamanhos
merecimentos? O Sumo Pontífice, que também não gostara do procedimento
do rei de Portugal, dirigiu uma epístola aos bispos de Tournai, Salamanca e
Leão para que fizessem saber do seu desagrado e admoestassem fidalgos, príncipes,
reis ou outras quaisquer pessoas, até mesmo bispos ou arcebispos, que fossem
culpados da ocultação do corpo do desditoso Infante, para que indicassem o seu
paradeiro sob pena de excomunhão.
Dava o tempo máximo de trinta dias
para que o corpo fosse entregue às pessoas que a duquesa de Borgonha enviaria
para esse efeito ao Reino de Portugal. A duquesa de Coimbra, do seu recanto
claustral de Santa Clara, alertara a consciência de muita gente através de
recados enviados em segredo, à cunhada. De resto, nem necessário fora esse
expediente porque a mulher de Filipe de Borgonha adorava aquele irmão belo, inteligente,
exímio diplomata e excelente homem de cultura e humanidades. A Isabel
de Borgonha foi conferida a autoridade de publicar a bula papal em todo
o território português e o duque, seu marido, enviou a Afonso V o deão Vergi,
como embaixador que informou o Rei que deveria dar sepultura ao tio e sogro no
Mosteiro chamado de Santa Maria da Vitória, como seu avô decidira e que não
negasse, sob qualquer pressão dos inimigos de Pedro, a piedade e o amparo que a mulher, filhos, criados e
servidores do Infante mereciam». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida
d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN
972-23-1942-6.
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