terça-feira, 29 de abril de 2014

El rei João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Dava o tempo máximo de trinta dias para que o corpo fosse entregue às pessoas que a duquesa de Borgonha enviaria para esse efeito ao Reino de Portugal. A duquesa de Coimbra, do seu recanto claustral de Santa Clara, alertara a consciência de muita gente…»

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E Todos os Caminhos levam ao Falcão da Luz de Maio
«(…) O rei não se divorciou de Isabel de Lencastre, portanto, após a morre do Infante, apesar de até teólogos e letrados terem sido chamados a depor contra a indefesa rapariguinha de dezassete anos que casara com o rei de Portugal. Afonso V mandou a esposa vir para Lisboa e foi recebê-la ao caminho com todas as provas de amor e alegria. Isto pouco tempo depois de Alfarrobeira. E a vida continuou. Nesse ano a ralé de Lisboa criou problemas aos judeus, no mês de Dezembro. Tudo começou no mercado do peixe com um grupo de rapazio estouvado e mal-intencionado que levantou a população, atacando todos os judeus que encontrou e depois a judiaria onde roubou, feriu e espoliou os judeus.
Se não fosse o conde de Monsanto, com a guarda, pôr cobro ao desacato, teria havido um lamentável mar de sangue e um incontrolável massacre. Mesmo assim, a mulher de mestre Tadeu morreu disso pois um dos populares que a encontrou no mercado bateu-lhe com um ferro no peito. Meses depois, a mama do lado direito começou a inchar, o bico a arrochear e a purgar, depois recolheu... e ela morreu de cancro como a imperatriz Teodora. Era a frase que ele me dizia, mais tarde, no seu scriptorium junto da chaminé onde destilava o mercúrio:
Foi assim com Teodora, sabes? A morte iguala-nos a todos. As Rainhas e as pobres judias que os cristãos matam há séculos. Os cristãos e os outros... Todos somos fracos, irmão, fracos e cobardes, mas eles são-no mais ainda que nós porque usam a violência, a brutalidade, o mal e servem as ocultas forças de Satã. Que desde a minha infância se transformou numa espécie de pedra angular do edifício da minha alma, o que devia ser uma verdade insofismável em todos nós. Será que terei tempo para falar dele, de todos eles, de mim, de Ruth, de todos nós? Ó meu Deus, dai-me forças! Fazei-me merecedor de alguma coisa, por última que seja, da tua força! Apesar de tudo. Apesar de tudo o que tu sabes, apesar das minhas dúvidas já, sobre o meu destino e a tua sabedoria! Foi por essa altura que Afonso contratou como pintor régio, um tal Nuno Gonçalves, que começou a trabalhar primeiro numa sala do Paço da Alcáçova e, depois, na igreja de Santa Cruz e até em casa própria. Começou por fazer cartões e desenhos para tapeçarias que o rei mandava confeccionar na Flandres. Mais tarde foi ele quem desenhou aquela obra belíssima onde se lia em tons de ouro, azul, verde e vermelho a conquista de Arzila e que o rei colocou na grande sala de audiências do Paço. Mas Afonso teve assuntos prementes a tratar porque a morre do sogro trouxe-lhe um mar de tremendas recriminações em todo o mundo, da Corte papal às reais e principescas. A duquesa de Borgonha, acertadamente, queixou-se ao Papa da morte ultrajante do irmão, verdadeiro assassínio, para ela, perpetrado a frio. Como poderia ela, como cristã, celebrar exéquias condignas a seu irmão, homem de bem e fama e como convinha a um Príncipe de tamanhos merecimentos? O Sumo Pontífice, que também não gostara do procedimento do rei de Portugal, dirigiu uma epístola aos bispos de Tournai, Salamanca e Leão para que fizessem saber do seu desagrado e admoestassem fidalgos, príncipes, reis ou outras quaisquer pessoas, até mesmo bispos ou arcebispos, que fossem culpados da ocultação do corpo do desditoso Infante, para que indicassem o seu paradeiro sob pena de excomunhão.
Dava o tempo máximo de trinta dias para que o corpo fosse entregue às pessoas que a duquesa de Borgonha enviaria para esse efeito ao Reino de Portugal. A duquesa de Coimbra, do seu recanto claustral de Santa Clara, alertara a consciência de muita gente através de recados enviados em segredo, à cunhada. De resto, nem necessário fora esse expediente porque a mulher de Filipe de Borgonha adorava aquele irmão belo, inteligente, exímio diplomata e excelente homem de cultura e humanidades. A Isabel de Borgonha foi conferida a autoridade de publicar a bula papal em todo o território português e o duque, seu marido, enviou a Afonso V o deão Vergi, como embaixador que informou o Rei que deveria dar sepultura ao tio e sogro no Mosteiro chamado de Santa Maria da Vitória, como seu avô decidira e que não negasse, sob qualquer pressão dos inimigos de Pedro, a piedade e o amparo que a mulher, filhos, criados e servidores do Infante mereciam». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

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