«(…) Entraram a coberto de sombras no palácio, rodearam guardas e
indiscretos, foram-se a uma câmara onde Maria esperava mortificada pela
ansiedade da demora. - Porras, carugo!. Que tardavam! Júlio nem se incomodou,
meteu as mãos na princesa, passou-lhe a língua pelos beiços, foi-se a ela como
à aia, rapaz valente este Júlio e de potências infinitas. Maria sossegou-se
nesta desinquietação calmante. E, finalmente sossegada, declarou o que lhe
queria, e o que queria era levá-lo com ela, que ia casar-se e por isso ficaria muito
só. Júlio estremeceu. Abandonar assim
a boa farra de uma corte que tanto apreciava os seus favores?! Mas,
cuidando bem na proposta, que paraíso
não estaria do lado de lá das fronteiras? Decerto, em esse novo e
estranho reino onde faria morada, muitas novas damas haveria a consolar... Findou-lhe
de súbito a preocupação, disse: - Irei. Maria, em resposta,
esbugalhou-se de sorrisos. - Assim é que é falar, carago, porras! Para festejo,
Maria ficou com Júlio a tarde inteira, e o trovador saiu mais tarde, já a noute
caía, muito reduzido de energias e a pensar que futuro seria o seu daí por
diante.
João, aquele que se dizia pola ley e pola grey sendo mais
de ley se fosse a sua, a quem o
povo apelidara o Príncipe Perfeito, rei primo e cunhado de El-Rei, deixara
escrito em testamento, pela mão sábia do redactor frei João da Póvoa, um desejo
muito desejado: - Minha sepultura
quero que seja em o Mosteiro de Santa Maria da Vitória no lugar e pela maneira
que mais conveniente parecer a meu testamenteiro. El-Rei andava
mortificado com a coisa. O tal João
permanecia sepulto onde não queria, numa jazida humilde e muito fora de mão. Sonhava
El-Rei, também, que aquele João, que
lhe aparecia em sonhos a perguntar então quando é que me mudas, ó sensaborão, quando é que
cumpres meus desejos, ó calaceiro?,
sonhava que o tal João se alevantava
do túmulo que não era seu definitivo, para lhe encher de varizes as pernas,
para o perseguir... El-Rei, fazendo face, aprontou grande fausto. Convocou
todos os bispos do reino e todos os grandes fidalgos da corte e mandou a maior
procissão de cortejo jamais reunida até ali, ao lugar onde João restava. Iriam levá-lo, a seu desejo, a sepultar no dito mosteiro
a que também chamavam da Batalha. Foi-se a procissão buscar o morto.
Reuniram-se à volta da urna em muitas rezas, e depois abriram-na para
retirar ossadas e fazer a trasladação. Para grande assombro, o corpo estava
intacto. João estava assim como que
apenas adormecido, alguns temeram que se levantasse logo dali para dizer muito
que não queriam ouvir. Milagre, disseram uns. É santo, gritaram outros. Pelo
meio de muitas rezas, puseram o tal João
num ataúde novo, forrado de brocado carmesim e colocaram-no num carro tirado
por cavalos cobertos de panos de veludo preto. Foi o cortejo mais solene que
alguma vez se viu, e o mais silencioso e temente. Iam o arcebispo, os bispos
todos, o cardeal, oitenta capelães, revestidos dos seus mais preciosos
paramentos, e muitos fidalgos e cavaleiros a marchar a pé atrás do féretro. Muitos
tremiam de medo, quase todos de dúvidas.
Iam andando e parando em cada vila, e em cada vila fazia-se procissão
local até à igreja da terra, e depois de rezada missa, e deixados, para
assinalar, um paramento em seda e um cálice de prata em cada lugar, o cortejo continuava
à vila próxima e de pronto o povo inteirava-se do sucesso e ficava igualmente
amedrontado e em espanto, sem saber-se se ali levavam rei morto, posto ou vivo,
se uma mensagem divina de que há lembranças impossíveis de apagar... Marcha
lenta e muito solene, fatigante e demorada, até que finalmente o ataúde entrou
no mosteiro, definitiva morada, e ia aos ombros agora da melhor nobreza, a
mesma que ele derrubara por todos os processos, para que não fizesse frente, em
orgulho e insolência, a rei algum digno desse título». In Alexandre Honrado, Os
Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.
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