quarta-feira, 23 de abril de 2014

Menina e Moça. O seu mau signo. De Meca a Freixo de Espada à Cinta. Aquilino. «Quem adquiria um exemplar de obras deste género conservava-o como se conserva um objecto de sumptuária, um quadro por exemplo, pois custava caro. A censura expurgou, e fê-lo em hora de excessivo zelo…»

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Menina e Moça e o seu mau signo
«(…) D. Grácia Mendes era nobre dama em tudo, poderosa de teres e com dotes de inteligência e de coração que a tornavam venerada pelos da sua raça como uma rainha. Embalde fizera sacrifícios de toda a ordem com o fim de estorvar que a Inquisição (maldita) se estabelecesse em Portugal. Em Ferrara protegia foragidos e proscritos, dando-lhes a mão no mais generoso e prestante concurso. Foi a ela que Samuel Usque dedicou o livro Consolação às Tribulações de Israel, editado em 1553 na oficina de que era associado com o irmão, igualmente abalizadíssimo cultor das letras. O livro que pelo acento patético, pelo descritivo pitoresco e naturalista, pelo adequado das alegorias, pelo próprio estilo cuidado e elegante é do melhor que produziram as letras portuguesas do seu tempo, muitos graus acima da Menina e Moça, saía na língua que bebera com o leite. Ele mesmo confessa que o fez por essa razão, a qual se pode desdobrar nas seguintes: ser a língua, que melhor manuseava, de jeito a permitir-lhe dar forma às lucubrações do espírito, e porventura ser a falada pelas pessoas a quem tinha em mente dirigir-se. Uma destas era D. Grácia. Da dedicatória poderá até inferir-se que se trata duma encomenda: Nesta parte não me cega afeição em ser eu, Ilustríssima Senhora, vossa feitura, a quem desejo por obras, escritos e feitos satisfazer e mostrar-me em parte grato das muitas mercês que de vossa larga mão tenho recebido. Decerto o envite não está explícito, nem é necessário que esteja para que assim se compreenda, mas a sugestão entreluz naquelas palavras e nestoutras finais: Pelo que lhe peço, como acostumada é de me fazer mercês benignamente, aceite este pequeno serviço...
Dir-se-á: a Consolação dirigia-se a uma dúzia de indivíduos que falavam o português. Pagava a pena fazer a estampa para tão restrito público? As edições eram duma tiragem limitadíssima, algumas dezenas de exemplares. O trabalho dos prelos, todo manual, não aliviava, em proporção da quantidade como nas impressões de hoje, o preço de custo de cada exemplar. O mais oneroso, decerto, era a composição. Mas a mão-de-obra era barata. Sem embargo, os livros impressos eram incomparavelmente muito mais caros do que na actualidade. Livros taxados em nove tostões como a Anacephalaeoses ou em um cruzado como os Lusíadas, a quanto não reviriam hoje, observadas as diferenças monetárias? Uma exorbitância, tornando o livro acessível apenas a endinheirados. Mesmo assim, o livro impresso, em despeito das tiragens limitadas, sempre ficava mais em conta do que o livro manuscrito por um calígrafo de profissão. Oferecia ainda a vantagem da sua melhor legibilidade. Era, depois, moda que fossem estampados. Sempre o snobismo foi bom pagador.
Quanto à Consolação, basta que D. Grácia fosse o Mecenas, como sem dúvida foi, para justificar o seu aparecimento em Ferrara com uma tiragem diminutíssima. Isso se tem feito modernamente por timbre de bibliófilo ou capricho de autor. A Menina e Moça veio a lume na mesma oficina dos Usques, um ano depois da Consolação, se bem que nesta se sinta a influência de Bernardim, sobretudo no que respeita a processos. Averiguou-se existirem três exemplares, e a raridade compreende-se em face da tiragem sucinta, que não por uma acidental apreensão à ordem do Desembargo ou do Santo Ofício (maldito). Quem adquiria um exemplar de obras deste género conservava-o como se conserva um objecto de sumptuária, um quadro por exemplo, pois custava caro. A censura expurgou, e fê-lo em hora de excessivo zelo, uma ou duas passagens, aliás anódinas, da obra e deixou correr. Deixou correr e podia fazê-lo de ânimo sossegado que, salvo a alcovitaria de Enis preconizando o adultério como método de resolver o problema sentimental dos dois amantes contrariados em seus amores, libertinagem muito ao gosto dos romances de cavalaria, se bem que sob outras roupagens, era inócua no capítulo dos bons costumes e da moral corrente». In Aquilino Ribeiro, De Meca a Freixo de Espada à Cinta, Ensaios Ocasionais, Menina e Moça e o seu mau signo, Livraria Bertrand, Lisboa, 1960.

Cortesia de LBertrand/JDACT