Menina e Moça e o seu mau signo
«(…) D. Grácia Mendes era nobre dama em tudo, poderosa de teres
e com dotes de inteligência e de coração que a tornavam venerada pelos da sua
raça como uma rainha. Embalde fizera sacrifícios de toda a ordem com o fim de
estorvar que a Inquisição (maldita) se
estabelecesse em Portugal. Em Ferrara protegia foragidos e proscritos,
dando-lhes a mão no mais generoso e prestante concurso. Foi a ela que Samuel
Usque dedicou o livro Consolação às Tribulações
de Israel, editado em 1553
na oficina de que era associado com o irmão, igualmente abalizadíssimo cultor
das letras. O livro que pelo acento patético, pelo descritivo pitoresco e naturalista,
pelo adequado das alegorias, pelo próprio estilo cuidado e elegante é do melhor
que produziram as letras portuguesas do seu tempo, muitos graus acima da Menina
e Moça, saía na língua que bebera com o leite. Ele mesmo confessa que o
fez por essa razão, a qual se pode desdobrar nas seguintes: ser a língua, que
melhor manuseava, de jeito a permitir-lhe dar forma às lucubrações do espírito,
e porventura ser a falada pelas pessoas a quem tinha em mente dirigir-se. Uma
destas era D. Grácia. Da dedicatória poderá até inferir-se que se trata duma
encomenda: Nesta parte não me cega
afeição em ser eu, Ilustríssima Senhora, vossa feitura, a quem desejo por
obras, escritos e feitos satisfazer e mostrar-me em parte grato das muitas mercês
que de vossa larga mão tenho recebido. Decerto o envite não está explícito,
nem é necessário que esteja para que assim se compreenda, mas a sugestão entreluz
naquelas palavras e nestoutras finais: Pelo
que lhe peço, como acostumada é de me fazer mercês benignamente, aceite este
pequeno serviço...
Dir-se-á: a Consolação
dirigia-se a uma dúzia de indivíduos que falavam o português. Pagava a pena fazer a estampa para tão
restrito público? As edições eram duma tiragem limitadíssima, algumas
dezenas de exemplares. O trabalho dos prelos, todo manual, não aliviava, em
proporção da quantidade como nas impressões de hoje, o preço de custo de cada
exemplar. O mais oneroso, decerto, era a composição. Mas a mão-de-obra era barata.
Sem embargo, os livros impressos eram incomparavelmente muito mais caros do que
na actualidade. Livros taxados em nove tostões como a Anacephalaeoses ou em um cruzado como os Lusíadas,
a quanto não reviriam hoje, observadas
as diferenças monetárias? Uma exorbitância, tornando o livro acessível
apenas a endinheirados. Mesmo assim, o livro impresso, em despeito das tiragens
limitadas, sempre ficava mais em conta do que o livro manuscrito por um calígrafo
de profissão. Oferecia ainda a vantagem da sua melhor legibilidade. Era, depois,
moda que fossem estampados. Sempre o snobismo foi bom pagador.
Quanto à Consolação,
basta que D. Grácia fosse o Mecenas, como sem dúvida foi, para
justificar o seu aparecimento em Ferrara com uma tiragem diminutíssima.
Isso se tem feito modernamente por timbre de bibliófilo ou capricho de autor. A Menina
e Moça veio a lume na mesma oficina dos Usques, um ano depois da Consolação, se bem que nesta se sinta
a influência de Bernardim, sobretudo no que respeita a processos.
Averiguou-se existirem três exemplares, e a raridade compreende-se em face da
tiragem sucinta, que não por uma acidental apreensão à ordem do Desembargo ou do
Santo Ofício (maldito). Quem adquiria
um exemplar de obras deste género conservava-o como se conserva um objecto de
sumptuária, um quadro por exemplo, pois custava caro. A censura
expurgou, e fê-lo em hora de excessivo zelo, uma ou duas passagens, aliás
anódinas, da obra e deixou correr. Deixou correr e podia fazê-lo de ânimo
sossegado que, salvo a alcovitaria de Enis preconizando o adultério como
método de resolver o problema sentimental dos dois amantes contrariados em seus
amores, libertinagem muito ao gosto dos romances de cavalaria, se bem que sob
outras roupagens, era inócua no capítulo dos bons costumes e da moral corrente».
In
Aquilino Ribeiro, De Meca a Freixo de Espada à Cinta, Ensaios Ocasionais, Menina
e Moça e o seu mau signo, Livraria Bertrand, Lisboa, 1960.
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