A Decisão pela Filosofia
Natureza do impulso para a Ciência
«A visão retrospectiva é introduzida por um paradoxo:
Na minha formação científica, que
começou pelas necessidades mais subordinadas dos homens, tinha de ser impelido
para a Ciência.
O trânsito do estádio reflexivo anterior para a Filosofia, como
sistema, devia processar-se em obediência a uma pressão interna do próprio
desenvolvimento científico, como resposta a dificuldades e lacunas que nessa formação
se lhe depararam, pois essa fase agora posta em causa não corresponde a uma
posição pré-filosófica, mas já do âmbito reflexivo. Esta deficiente iniciação
ao saber científico, o contexto o mostra, tem a ver com a necessidade superior
que, através dela, não alcança nem consegue justificar. É assim indicada uma
insuficiência ao nível dos fundamentos do ponto de partida da reflexão. Que
essa passagem, tornada necessária, de um momento de preparação para uma
instalação plena no plano científico, assume a forma de uma contestação radical
e veemente do modo kantiano de estabelecer o estatuto da cientificidade do
saber filosófico, demonstrar-se-á subsequentemente. De forma mais directa,
é-nos dito que o ponto de partida para a Filosofia foi uma reflexão sobre as necessidades mais subordinadas dos homens.
O progresso para a Ciência surge, deste modo, como a relativização de um pensar
ocupado privilegiadamente com as esferas religiosa e política, como
subordinação destas à necessidade superior, hegemonizante, à Ciência.
Recorrendo Hegel ao conceito de necessidade,
carência,
um conceito típico da Aufklärung, sublinha por essa via a dimensão prática
determinante do movimento. O motor da reflexão reside na ordem prática; é
uma motivação ética que preside à instauração do pensar e que desencadeia o
processo de maturação científica. A Ciência como exigência superior é a
forma suprema da práxis, é o sistema, a consecução da satisfação plena; a
necessidade em que todas as necessidades se resolvem e que resolve todas as
necessidades é a razão. Um outro elemento centralíssimo nesta análise
descritiva é a insistência renovada, e os termos em que a formula, numa mudança
imperativa:
O ideal da juventude tinha de
transformar-se, ao mesmo tempo, na forma da reflexão, num sistema.
A conversão à Filosofia está intimamente articulada com a crise do ideal
da juventude: provocando essa crise,
reflectindo-a ou sendo apenas mera resultante? Imediatamente, nada
permite precisar melhor os contornos de tal crise nem avançar na compreensão da
necessidade que lhe é inerente. Há, porém, no condensado da expressão, uma
leitura equívoca a evitar desde já: a transformação do ideal da juventude na
forma da reflexão não pode significar a permanência desse ideal com um novo
conteúdo, como se o sistema fosse o ideal
da maturidade. Não estamos perante uma simples alteração do objectivo visado,
mantendo-se idêntica a atitude, mas de uma nova posição da dinâmica existencial
e do próprio pensar, não mais passível de ser traduzida em termos de ideal, dinâmica essa que ganha a
consistência de uma tarefa, a realidade de um trabalho, a verdadeira dignidade
do científico.
Levanta-se naturalmente a questão de saber se essa transformação é algo
fundamentalmente ainda em curso no momento em que se explicita a tomada de
consciência da viragem ou se o presente é a conclusão de um processo em grande
parte já percorrido e de que se poderiam apontar, como marcos mais evidentes,
remotamente os assim designados Materiais
para uma Filosofia do Espírito Subjectivo, como pretende Kimmerle, ainda
do período de Berna, ou o Mais Antigo
Programa de Sistema do Idealismo Alemão, dos primeiros tempos de
Francoforte e, muito mais próximo, o Fragmento
de sistema de 1800, onde estão reunidos os temas capitais da reflexão
posterior e os pressupostos estruturais do método.
A carta refere ainda a vontade de retomar trabalhos principiados e estudos, cuja identificação desenharia
melhor os contornos das ocupações intelectuais de Hegel, no momento da passagem para Iena. De facto, vemo-lo
terminar a estada em Francoforte com uma nova redacção da introdução ao escrito
sobre a Positividade da Religião
Cristã e um estudo crítico da geometria de Euclides; nos dois
primeiros anos de Iena, retoma, em novas versões, os trabalhos sobre a Constituição
da Alemanha, o que representa da sua parte o reconhecimento de que o
material até então produzido era susceptível de vir a integrar-se em novas
sínteses. Sobre os estudos a que a carta também se refere, não temos outro meio
de estabelecer com maior precisão o seu conteúdo senão atender ao seu resultado:
o escrito sobre a Diferença dos Sistemas da Filosofia de Fichte e de
Schelling, concluído em Julho de 1801,
trabalho que não se improvisa e que representa a primeira realização conseguida
do programa sistemático anunciado, cuja introdução temática pode bem ser lida
como um comentário dos pontos essenciais enunciados na carta em análise. Uma
última informação interessante de relevar é a curiosidade manifestada pelo
catolicismo:
[...] preferiria uma cidade
católica a uma protestante; quero ver de perto, por uma vez, essa religião.
Associar-se-á à consciência da transformação entretanto operada uma atitude
especialmente crítica em face do luteranismo, manifestação religiosa do espírito do Norte, incarnado também no sistema kantiano e no idealismo seu
herdeiro? A questão ficará em aberto na ausência de outros elementos». In Manuel
Carmo Ferreira, Hegel, E A Justificação da Filosofia (Iena, 1801-1807), Estudos
Gerais, Série Universitária, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992,
ISBN 972-27-0516-4.
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