Os muros absurdos
(…) Ainda uma vez, tudo
isso já foi dito e redito. Limito-me a fazer aqui uma classificação rápida e a
indicar esses temas evidentes. Eles circulam através de todas as literaturas e
todas as filosofias. A conversa de todos os dias se nutre deles. Não se trata
de reinventá-los. Mas é preciso certificar-se dessas evidências para poder se interrogar,
em seguida, sobre a questão primordial. O que me interessa, faço questão de
repetir, não são tanto as descobertas absurdas. São suas consequências. Se nos
certificarmos desses factos, o que será preciso concluir, até onde ir para deixar de pesquisar? Será preciso morrer
voluntariamente ou, apesar de tudo, esperar?
É necessário, antes, fazer o mesmo recenseamento rápido no plano da
inteligência. O primeiro procedimento do espírito é distinguir o que é
verdadeiro do que é falso. No entanto, desde que o pensamento reflecte sobre ele
mesmo o que descobre é, inicialmente, uma contradição. É inútil esforçar-se
para ser convincente a esse respeito. Durante séculos ninguém tratou o caso com
uma demonstração mais clara e mais elegante que a de Aristóteles: A consequência frequentemente ridicularizada
dessas opiniões é que elas se destroem por si mesmas. Porque, afirmando que
tudo é verdadeiro, afirmamos a verdade da afirmação oposta e, consequentemente,
a falsidade da nossa própria tese (pois a afirmação oposta não admite que ela possa
ser verdadeira). E, se dizemos que tudo é falso, também esta afirmação se torna
falsa. Se declaramos que só é falsa a afirmação oposta à nossa, nos vemos não
obstante forçados a admitir um número infinito de julgamentos verdadeiros ou
falsos. Porquanto, quem emite uma afirmação verdadeira declara ao mesmo tempo que
ela é verdadeira, e assim por diante até o infinito.
Esse círculo vicioso é
só o primeiro de uma série em que o espírito que se inclina sobre si mesmo se
perde num torvelinho vertiginoso. A própria simplicidade desses paradoxos leva
a que sejam irredutíveis. Sejam quais
forem os trocadilhos e as acrobacias da lógica, compreender é, antes de
tudo, unificar. O desejo profundo do próprio espírito em seus procedimentos
mais evoluídos vai ao encontro da sensação inconsciente do homem diante do
universo: ele exige familiaridade, tem
fome de clareza. Para um homem, compreender o mundo é reduzi-lo ao
humano, marcá-lo com o seu selo. O universo do gato não é o universo do
formigueiro. O truísmo de que todo
pensamento é antropomórfico não tem outro sentido. Assim também o
espírito que procura compreender a realidade só se pode considerar satisfeito
se a reduz em termos de pensamento. Se o homem reconhecesse que também
o universo pode amar e sofrer, ele estaria reconciliado. Se o pensamento descobrisse
nos espelhos cambiantes fenómenos, relações eternas que pudessem resumi-los e
se resumirem elas próprias num princípio único, se poderia falar de uma
felicidade do espírito de que o mito dos bem-aventurados seria apenas um ridículo
arremedo. Essa nostalgia da unidade; esse apetite de absoluto ilustra o
movimento essencial do drama humano. Mas que essa nostalgia seja um facto não
significa que deva ser imediatamente apaziguada. Porque, se acaso transpondo o
abismo que separa o desejo da conquista, afirmamos com Parménides a realidade
do Um (seja lá o que ele for),
caímos na ridícula contradição de um espírito que afirma a unidade total e com
a própria afirmação prova a sua diferença e a diversidade que pretendia
resolver. Basta esse novo círculo vicioso para sufocar as nossas esperanças». In
Albert Camus, O Mito de Sísifo, Ensaio sobre o Absurdo, Livros do Brasil, ISBN
978-972-38-2759-0.
Cortesia de
LBrasil/JDACT