terça-feira, 1 de abril de 2014

As Artes de Prometeu. As combinações com as Letras. Memória de tudo. Trabalho criador das Musas. Maria Helena Pereira. «É aqui que se insere o segundo expediente do Titã: roubar o fogo no recesso de uma cana, para o dar aos homens. A esta segunda infracção respondeu Zeus ordenando a Hefestos que criasse a primeira mulher»

Cortesia de wikipedia

«Partimos de dois versos da tragédia Prometeu Agrilhoado, como os classicistas presentes já reconheceram, pertencentes àquelas duas longas tiradas em que o Titã enumera os benefícios que proporcionou à humanidade. Este é o mito, o primeiro inventor, que principia na descoberta do fogo e daí parte para as diversas invenções com que presenteou os homens. Mostra-nos um Prometeu bem diferente do que conhecíamos das duas epopeias conservadas de Hesíodo. Aí ele é sobretudo o embusteiro, ou melhor, o trickster, para usar a palavra consagrada pelos historiadores da religião. Na Teogonia (521-616) o seu primeiro dolo situa-se no tempo da querela entre deuses e homens, que leva à instauração de sacrifícios. É então que o filho de Jápeto prepara um enorme boi, divide-o em duas partes e apresenta-o a Zeus, para que, em nome dos deuses, escolha a que lhes convier. Zeus prefere a que está coberta de gordura, mas que, na verdade, apenas encobre um montão de ossos, pelo que daí em diante será essa a parte das vítimas que os homens hão-de sacrificar às divindades. Hesíodo tem o cuidado de acentuar que Zeus percebeu o engano, o que tem levado os melhores especialistas a supor que teria havido uma versão mais primitiva que punha em causa a omnisciência do deus. Daí resulta que Zeus deixa de enviar o raio sobre os freixos, e de assim proporcionar aos mortais o uso do fogo. É aqui que se insere o segundo expediente do Titã: roubar o fogo no recesso de uma cana, para o dar aos homens. A esta segunda infracção respondeu Zeus ordenando a Hefestos que criasse a primeira mulher. Os traços essenciais deste mito são retomados em Os Trabalhos e Dias (42-105), com mais ênfase na colaboração de todos os deuses, que a enriquecem com os seus dons (de onde o nome de Pandora). É um desses deuses, precisamente Hermes, aquele que também é exemplo de criador de embustes (veja-se o Hino Homérico a ele dedicado), o que infunde no peito da nova criatura mentiras, palavras enganosas, coração ardiloso. As ciladas sucedem-se: Hermes é encarregado de levar essa sedutora figura a Epimeteu, que a recebe como mulher, não obstante o seu irmão Prometeu tê-lo advertido do perigo de aceitar presentes do deus supremo. A esse mal se junta um outro, que é o de Pandora destapar a vasilha (ou jarra de Pandora é habitualmente designada como caixa ou boceta, devido ao facto de Erasmo a ter assim interpretado, certamente pensando na caixa que Psyche abre, apesar de prevenida, em Apuleio, Metamorfoses) que continha todos os males, deixando-os escapar pelo mundo. Como todos sabem, fica dentro apenas a Esperança.
Se demorámos um pouco na referência a este mito tão conhecido, é porque ele tem sido objecto de múltiplas interpretações, desde as fantasias psicanalíticas até às do pós-estruturalismo e às da actual ideologia. Uma das teorias que, essa sim, nos parece ser aplicável neste caso é a de Jung, a qual permite ver aqui um exemplo de um arquétipo que nos ajuda a explicar a razão de histórias semelhantes ocorrerem em mais do que um povo. E, se pode ser verosímil que a origem do mito grego esteja relacionada com o de Atraharsis, que figura na XI tabuinha do poema babilónico de Enuma Elish (à Egiptomania do séc. XIX sucedeu a da Babiloniomania em voga), é sempre difícil esclarecer qual o modo de transmissão. Também é forçoso reconhecer que é das versões gregas, as de Hesíodo e, sobretudo, a do Prometeu Agrilhoado, que descendem as muitas obras literárias (em que se contam nomes tão grandes como Goethe e Shelley), plásticas ou musicais (como a cantata de Carl Orff, no grego original, estreada em 1968). Aqui temos de fazer um parêntesis, porquanto certamente nesta altura já todos repararam que não mencionámos vez nenhuma o nome do autor da famosa tragédia. É que, se os Antigos nunca puseram em dúvida, tanto quanto sabemos, que ela fosse de Ésquilo, a questão levantou-se, em 1929, com Schmid, e reacendeu-se a partir de 1977, com Mark Griffith, The Authenticity of the Prometheus Bound, renovada em 1993 com a de R. Bees, Zur Datierung des Prometheus Desmothes, sem contar que o autor de uma das melhores edições críticas de Ésquilo, West (1990) continua, desde o seu primeiro artigo sobre a matéria, publicado onze anos antes, a negar-lhe a autenticidade, com base na métrica, técnica dramática, vocabulário, sintaxe, estilo.
Não vamos examinar a questão, excepto num único aspecto: saber se o drama em causa é anterior ou posterior ao mito que Platão, no Protágoras, atribui ao sofista homónimo. A grande dificuldade reside, como escreveu Dodds, em decidir com alguma certeza quanto é de Protágoras e quanto é de Platão. E continua: O passo reflecte seguramente não o que Protágoras de facto disse, mas o que Platão pensava que ele poderia ter dito numa determinada situação. Em relação ao filósofo, acrescentaríamos que a questão é semelhante à do discurso de Lísias no Fedro, acerca do qual ainda hoje se discute se é mais um elemento a adicionar ao corpus do célebre orador ático ou uma paródia do seu modo de argumentar e do seu estilo. Ora, já em 1949, Reinhardt, seguido por muitos outros, entendia que esta fala de Prometeu representa uma concepção pré-sofística e marcadamente arcaica, uma vez que não há referência ao modo de produzir alimentos (pastoreio e agricultura) e que certas invenções técnicas atribuídas ao Titã, como a roda do oleiro, nem sequer são mencionadas; ao passo que o mito que se lê no Protágoras nos apresenta Prometeu a corrigir a falta de previdência de seu irmão Epimeteu, por não equipar a raça humana, que os deuses haviam modelado, com as defesas necessárias à sua sobrevivência, tal como havia feito com os animais. É assim que Prometeu decide furtar a Atena e a Hefestos as habilidades técnicas dessas divindades, juntando-lhes o uso do fogo. Porém, estas soluções ainda não são suficientes: isolados, os humanos não conseguiam defender-se dos ataques dos animais, e por isso resolvem reunir-se e fundar cidades. Zeus, que tudo observava, encarrega então Hermes de lhes levar respeito e justiça, sem os quais a vida social não pode ter estabilidade. Daqui o discurso transita para a demonstração, que se propusera fazer, de a virtude ser susceptível de se ensinar». In Maria Helena Rocha Pereira, As Artes de Prometeu, As combinações com as Letras, Memória de tudo, Trabalho criador das Musas, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.

Cortesia da FLUPorto/JDACT