domingo, 6 de abril de 2014

A Trança Feiticeira. Leituras. Henrique Fernandes. «Então, ainda a trabalhar a estas horas? Não adiantou mais. ‘A-Leng’, furiosa, com um movimento rápido, desatou as cordas do varapau que se tornou um cacete minaz nas suas mãos. Adozindo esboçou o gesto para a acalmar, mas ela vibrou o golpe…»

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«(…) Por fim, ela apareceu. Viu-o, logo que transpôs a porta da casa, onde fora levar a água. Não duvidou um segundo que estivesse ali, por sua causa. Era um descaramento! Que conceito fazia dela? Que diriam as pessoas da rua e dos casebres, quando a vissem com um kuai-lou. Enleou-a a vergonha, misturada de raiva. Já a importunara muito, com intenções que não podiam ser honestas. Não recuou, não tremeu de medo. Desde o momento que ele não abrisse a boca, tudo estaria bem. Só agiria quando ele interrompesse o seu caminho. Veio directa para a escadaria, com o varapau aos ombros e os baldes vazios. Adozindo preparara a frase inicial, armando o melhor sorriso castigador. Disse: - Então, ainda a trabalhar a estas horas? Não adiantou mais. A-Leng, furiosa, com um movimento rápido, desatou as cordas do varapau que se tornou um cacete minaz nas suas mãos. Adozindo esboçou o gesto para a acalmar, mas ela vibrou o golpe que silvou no vácuo. O rapaz tropeçou para trás, em salto instintivo, enquanto ela levantava outra vez o varapau. Se demorasse mais um segundo, a arma atingi-lo-ia em cima.
Virou-se e debandou. Ouviu outro silvo ameaçador e o embate violento no chão. A rapariga, toda nervosa e animada da vitória, perseguiu-o aos pulos pela escadaria de pedra e malhá-lo-ia, sem piedade, se não aumentasse a velocidade das pernas. Isto tudo, assistido por testemunhas que davam palmas e apoiavam a agressora. Orçou a primeira esquina, com o coração pulsando às catadupas. Só parou, quando deixou de escutar os passos, agora, apenas imaginados. Encostou-se à parede e respirou fundo, a camisa molhada pela transpirarão. Assim se reduzira o Belo Adozindo, escorraçado por uma aguadeira que não ligava importância alguma à sua beleza, à sua fortuna e ao seu donjuanismo.
Em casa, assustaram-se com a sua palidez. Desculpou-se com uma súbita indisposição. Deram-lhe cordeal, para beber e, como isto não bastasse, a prima Catarina preparou-lhe uma mezinha caseira. Gostaria de contar a verdade, mas não podia. Fugira duma mulher, como um sendeiro em pânico. Ainda bem que não houvera testemunha conhecida, para espalhar o fracasso da aventura. O Belo Adozindo, com o rabo entre as pernas, escapulindo duma mocita abaixo de criada! Que prato para a má língua, toda a sua reputação de conquistador irresistível em frangalhos! Agora já não podia tocar os pés no Cheok Chai Un. Fora visto por muita gente que já não lhe teria respeito. Rir-se-iam na cara, o medricas trémulo, de calças borradas. Não suportava tamanho vexame. Que ideia também de meter-se com a escória da sociedade! Arriscara-se também a ter uma perna partida. A desordeira ficaria como um rotundo fracasso, o primeiro nos seus pergaminhos de conquistador. Paciência, o que ainda lhe valia, era a sua gente não saber.
Se pudesse penetrar no Cheok Chai Un, naquela noite, mais sentiria a sua humilhação. A-Leng foi festejada e exaltada. Teve que repetir a história várias vezes a ouvidos extasiados. A Abelha-Mestra, de contente, ofereceu-lhe uma ceia de caranguejos, com as amigas todas convidadas. Era a princesa do bairro, um espírito varonil defendendo a sua honra. E tendo infringido uma lição ao abusador do kuai-lou, o evento era, de facto, para celebrar. Ao recolher-se no leito duro, A-Leng entregou-se ao sono merecido duma alma outra vez, em paz e sossego. O diabo, desaparecera para nunca mais.

Careceu-lhe a coragem de se arriscar a um quarto desaire. Uma nódoa esborratara a sua fama e espantava-se com a resistência insólita, a aversão tão claramente demonstrada. Fora um enxovalho de todo tamanho. Durante algum tempo, andou inquieto, o ouvido aguçado, para surpreender alguma insinuação a recordar o infeliz evento. Mas nada transparecera entre a sua gente, concluiu aliviado. Evitou o Cheok Chai Un e, quando saía de casa, descia a Calçada do Gaio e prudentemente tomava um riquechó. Vieram os rigores do inverno, os meses húmidos de Fevereiro, a Abril e o verão chegou em Maio, com o seu calor e as suas cigarras e andorinhas. Nesse interregno, manteve os seus pergaminhos. Conquistou finalmente uma inglesa que vinha aos sábados e partia às segundas-feiras e hospedava-se no Hotel Bela Vista, não aquela que avistara na varanda do Riviera, mas uma outra, mais deliciosa ainda, toda rosadinha e cabelos da cor de ouro velho. Ao mesmo tempo, manteve as relações com a viúva do Baixo Monte, que agora se tornara incomodativa, pois achava-se com direito a casar-se. Era um partidão, com a sólida fortuna deixada pelo marido, zeloso dos seus réditos, e qualquer outro, menos exigente e menos leviano, assentar-se-ia satisfeito com ela. Dava-lhe momentos indescritíveis de arroubo, mas logo, acalmado o fogo, gemia chorosa, chorrilhando queixas ou já explosões de ira súbita, perguntando quando se decidia, pois não conseguia calar o falatório, por muito mais tempo, toda a sua reputação de viúva inconsolável em jogo». In Henrique Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-9440-80-8.

Cortesia da Fundação Oriente/JDACT