«(…) Por fim, ela apareceu. Viu-o, logo que transpôs a porta da casa,
onde fora levar a água. Não duvidou um segundo que estivesse ali, por sua
causa. Era um descaramento! Que
conceito fazia dela? Que diriam as pessoas da rua e dos casebres,
quando a vissem com um kuai-lou. Enleou-a a vergonha,
misturada de raiva. Já a importunara muito, com intenções que não podiam ser
honestas. Não recuou, não tremeu de medo. Desde o momento que ele não abrisse a
boca, tudo estaria bem. Só agiria quando ele interrompesse o seu caminho. Veio
directa para a escadaria, com o varapau aos ombros e os baldes vazios. Adozindo
preparara a frase inicial, armando o melhor sorriso castigador. Disse: - Então, ainda a trabalhar a estas horas?
Não adiantou mais. A-Leng, furiosa,
com um movimento rápido, desatou as cordas do varapau que se tornou um cacete
minaz nas suas mãos. Adozindo esboçou o gesto para a acalmar, mas ela vibrou o golpe
que silvou no vácuo. O rapaz tropeçou para trás, em salto instintivo, enquanto
ela levantava outra vez o varapau. Se demorasse mais um segundo, a arma atingi-lo-ia
em cima.
Virou-se e debandou. Ouviu outro silvo ameaçador e o embate violento no
chão. A rapariga, toda nervosa e animada da vitória, perseguiu-o aos pulos pela
escadaria de pedra e malhá-lo-ia, sem piedade, se não aumentasse a velocidade
das pernas. Isto tudo, assistido por testemunhas que davam palmas e apoiavam a
agressora. Orçou a primeira esquina, com o coração pulsando às catadupas. Só
parou, quando deixou de escutar os passos, agora, apenas imaginados.
Encostou-se à parede e respirou fundo, a camisa molhada pela transpirarão.
Assim se reduzira o Belo Adozindo, escorraçado por uma aguadeira que não
ligava importância alguma à sua beleza, à sua fortuna e ao seu donjuanismo.
Em casa, assustaram-se com a sua palidez. Desculpou-se com uma súbita
indisposição. Deram-lhe cordeal, para
beber e, como isto não bastasse, a prima Catarina preparou-lhe uma mezinha
caseira. Gostaria de contar a verdade, mas não podia. Fugira duma mulher, como um
sendeiro em pânico. Ainda bem que não houvera testemunha conhecida, para
espalhar o fracasso da aventura. O Belo Adozindo, com o rabo entre as
pernas, escapulindo duma mocita abaixo de criada! Que prato para a má língua,
toda a sua reputação de conquistador irresistível em frangalhos! Agora já não
podia tocar os pés no Cheok Chai Un. Fora visto por muita
gente que já não lhe teria respeito. Rir-se-iam na cara, o medricas trémulo, de
calças borradas. Não suportava tamanho vexame. Que ideia também de meter-se com
a escória da sociedade! Arriscara-se também a ter uma perna partida. A
desordeira ficaria como um rotundo fracasso, o primeiro nos seus pergaminhos de
conquistador. Paciência, o que ainda lhe valia, era a sua gente não saber.
Se pudesse penetrar no Cheok Chai Un, naquela noite, mais
sentiria a sua humilhação. A-Leng
foi festejada e exaltada. Teve que repetir a história várias vezes a ouvidos
extasiados. A Abelha-Mestra,
de contente, ofereceu-lhe uma ceia de caranguejos, com as amigas todas convidadas.
Era a princesa do bairro, um espírito varonil defendendo a sua honra. E tendo infringido
uma lição ao abusador do kuai-lou, o evento era, de facto,
para celebrar. Ao recolher-se no leito duro, A-Leng entregou-se ao sono merecido duma alma outra vez, em paz e
sossego. O diabo, desaparecera
para nunca mais.
Careceu-lhe a coragem de se arriscar a um quarto desaire. Uma nódoa
esborratara a sua fama e espantava-se com a resistência insólita, a aversão tão
claramente demonstrada. Fora um enxovalho de todo tamanho. Durante algum tempo,
andou inquieto, o ouvido aguçado, para surpreender alguma insinuação a recordar
o infeliz evento. Mas nada transparecera entre a sua gente, concluiu aliviado. Evitou o Cheok Chai Un e, quando
saía de casa, descia a Calçada do Gaio e prudentemente tomava um riquechó.
Vieram os rigores do inverno, os meses húmidos de Fevereiro, a Abril e o verão
chegou em Maio, com o seu calor e as suas cigarras e andorinhas. Nesse
interregno, manteve os seus pergaminhos. Conquistou finalmente uma inglesa que
vinha aos sábados e partia às segundas-feiras e hospedava-se no Hotel Bela
Vista, não aquela que avistara na varanda do Riviera, mas uma outra, mais deliciosa
ainda, toda rosadinha e cabelos da cor de ouro velho. Ao mesmo tempo, manteve
as relações com a viúva do Baixo Monte, que agora se tornara incomodativa, pois
achava-se com direito a casar-se. Era um partidão, com a sólida fortuna deixada
pelo marido, zeloso dos seus réditos, e qualquer outro, menos exigente e menos leviano,
assentar-se-ia satisfeito com ela. Dava-lhe momentos indescritíveis de arroubo,
mas logo, acalmado o fogo, gemia chorosa, chorrilhando queixas ou já explosões de
ira súbita, perguntando quando se decidia, pois não conseguia calar o
falatório, por muito mais tempo, toda a sua reputação de viúva inconsolável em
jogo». In Henrique Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998,
ISBN 972-9440-80-8.
Cortesia da Fundação Oriente/JDACT