terça-feira, 22 de abril de 2014

Cântico dos Cânticos. Tradução do hebraico. Tolentino Mendonça. «Mas a correspondência que significa? Relação, cortejo, dependência, conhecimento? Ou o contrário disso? Ou outra coisa além de tudo isso? Assim, parece-nos muito importante cruzar o Cântico dos Cânticos com as literaturas vizinhas»

Cortesia de ildadavid, jdact

Introdução
«Há uma promessa judaica que garante: no fim dos tempos, quando assomar o Filho do Homem em toda a sua glória, ele esclarecera, não apenas o sentido escondido das palavras da Escritura, mas também o do espaço em branco que existe entre elas. Talvez, porque a global apreensão de um sentido nos remeta sempre para essa escatologia, dos grandes textos da nossa cultura, o Cântico dos Cânticos, colocando-se entre os mais obstinadamente lidos e comentados, não deixou de ser nunca um território inapreensível, um corpo obscuro. É verdade que explorando os fenómenos de intertextualidade se descobrem os segredos fechados das correspondências. Mas a correspondência que significa? Relação, cortejo, dependência, conhecimento? Ou o contrário disso? Ou outra coisa além de tudo isso? Assim, parece-nos muito importante cruzar o Cântico dos Cânticos com as literaturas vizinhas. Do Egipto, como recomendam numerosos exegetas desde Teodoro de Mopsuéstia. E dois documentos ofuscam-nos com similitudes perturbantes: os textos contidos no Papiro Harris 500, publicados por Maspero em 1883, e os Cantos da grande alegria do coração, do Papiro Chester Beatty I publicado, já neste século, por Gardiner. Derivará, por isso, o nosso livro das canções de divertimento egípcias? Teodoro de Mopsuéstia tinha razão quando o descrevia como encenação literária das núpcias de Salomão com uma filha do faraó?
[…]

Só muito tarde se permitiu considerá-lo naquilo que ele é: epitalâmio, canto de admiração e de amor trocado por uma mulher e por um homem, sussurro de amantes. Mapa instável, sempre a ser refeito, cartografia de um grande amor desencontrado, da solidão que os amores muito grandes proporcionam, do assalto violento ou, afinal, ténue ou do assombro ténue e, depois, e logo depois, turbulento, terrífico do amor. Só muito tarde se leu a noite e o desejo, o corpo nomeado, perseguido, suplicado, o jardim entreaberto, a prece atendida. É este o sentido natural do Cântico dos Cânticos. E, porque não se teme enunciar o sentido das palavras, é que nos podemos abrir à revelação escatológica do silêncio guardado entre elas. (Texto original hebraico, e que acompanha a tradução, é o fixado na 3.ª edição da Bíblia Hebraica Stuttgartensia, de 1987)».


Cântico dos Cânticos de Salomão
beije-me com os beijos da sua boca
melhores tuas carícias do que vinho     o aroma dos teus perfumes é melhor
tua fama é odor que se derrama     por isso as raparigas amam-te
arrasta-me atrás de ti corramos     fez-me entrar o rei em sua penumbra
folgaremos e alegrar-nos-emos contigo     lembrar-nos-emos de teus amores
mais que do vinho
com razão as raparigas amam-te.

In José Tolentino Mendonça, Cântico dos Cânticos, tradução do hebraico, Edições Cotovia, Lisboa, 1997, ISBN 972-8028-68-7.

Cortesia de Cotovia/JDACT