quarta-feira, 23 de abril de 2014

Menina e Moça. O seu mau signo. De Meca a Freixo de Espada à Cinta. Aquilino. «Esta perseguição da Igreja Romana contra o judaísmo, equivalente dentro da ideia monoteísta, na esfera das reacções, à da pernada contra o tronco, do verbo contra o logos, é um dos casos mais estupendos e absurdos da história humana»

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Menina e Moça e o seu mau signo
«À volta do segundo para o terceiro quartel do século XVI, Ferrara era um lugar de confluência dos judeus emigrados de Portugal e de Espanha. Portos de abrigo chamaram a certas cidades de Itália como Pesaro e Yeneza. Ferrara compartiu por algum tempo desta boa fama. Aquele ducado estava regido por instituições de todo autocráticas, mas que apenas nutriam preocupações de ordem temporal. O religioso e por via de regra o filosófico quedavam em zona neutra. Falava-se da duquesa Renata de França como mantendo correspondência com os grandes homens do seu tempo, pertencentes à vanguarda humanista tanto pelo pensamento literário como social. Didacus Pyrrhus Lusitanus consagra-lhe este trocadilho ditirâmbico nos Carmina: De Renata Herculis Ferrariae Inaictissimi Ducis uxore. Dum tenet Alcida cutn conjuge sceptra Renata, Aurea saturni secla renata putes.
Os judeus, a fugir aos cárceres e autos-de-fé do Santo Ofício (maldito), acolhiam-se ali. Bem sabiam eles que o fisco dos duques de Este lhes arrancava coiro e cabelo. Mas, baldeados de Herodes para Pilatos, já se davam por contentes, ficando nus, porém escapos à fogueira. Era a tábua de salvação imediata e agarravam-se a ela. Mais tarde, tocado pela intolerância dos Estados Pontifícios e ainda por motivos de ordem política, Ércole II acabou por ceder à vesânia geral, perseguindo de vários modos os proscritos. Até essa altura, Ferrara foi um oásis de paz, e Israel pôde pendurar nos salgueiros do Pó liras gratulatorias.
Contando simplesmente os nomes que se encontram mencionados nas Centurias de João Rodrigues, de seu nome científico Amatus Lusitanus, e nos Carmina do misterioso Pyrrhus, em Portugal Diogo Pires, verificamos que a colónia era densa e no geral viri doctissimi. A sua profissão comum o magistério, medicina ou banca. Os que exerciam a praxis ou o professorado das línguas acumulavam com o exercício das letras. Tais, além dos supracitados, Salusque Lusitano que traduziu Petrarca para espanhol, Abraão Usque que verteu do hebraico a Bíblia Sagrada, Leão Hebreu, filho de Isaac Abarbanel, autor dos Dialogi di amore, e outros igualmente de origem portuguesa. O declínio do sobrenaturalismo no Ocidente foi obra indirecta destes e dos da sua progénie. Os títulos que davam aos trabalhos literários, nada mais que em virtude do contraste que exibiam relativamente às designações em voga, herméticas e estapafurdiamente pedantes: de Amato Lusitano, Curationunt, Medicinalium Centuriae; de Rodrigo de Castro, De uniaersa mulierum medicina; de Isaac Ben-Solimão, De febris, etc. revelam eloquentemente pela sua elementaridade a clareza de inteligência e precisão nas ideias que de sempre foram apanágio da raça hebraica. Eles só é quanto chega para nos dar a conhecer a dose de bom senso que estes homens silenciosos e nómadas acabaram por imprimir ao curso das ciências e letras na Europa com manifesto eclipse do misticismo milagreiro. Muitos anos andados ainda Bacon dava a lume o Leão verde, uma das suas obras decantadas aos quatro ventos.
Pelo combate que no campo das ciências aplicadas, em particular, davam à superstição e à medicina sobrenatural, como aposição de relíquias e de ferros santos, intercessão dos bem-aventurados, a cada um deles competindo determinada zona anatómica ou espécie zoológica, assim a Santa Luzia os olhos, a Santo Amaro as pernas e braços, a Santo Avelino os dentes, a Santo Antão os porcos, etc., concitavam contra si os elementos de rotina e de conservação. Para o vulgo os físicos judeus eram hereges e sequazes do Diabo, com o qual tinham pacto. Queimava-se no Entrudo o judeu de estopa e alcatrão, como o judeu de carne e osso na Praça da Ribeira.
Esta perseguição da Igreja Romana contra o judaísmo, equivalente dentro da ideia monoteísta, na esfera das reacções, à da pernada contra o tronco, do verbo contra o logos, de Deus Padre contra Jeová, de Cristo contra Moisés, é um dos casos mais estupendos e absurdos da história humana. E seria para duvidar uma vez para sempre da razão, se não soubéssemos que pirâmides duma lógica desconcertadora se edificam sobre a bexiga oca duma premissa. O trânsito do género humano através das idades está semeado de crimes igualmente revoltantes e insensatos, e haverá sempre quem os justifique e advogue a sua prática.
Entre os judeus portugueses que, depois de vagarem pelo Levante, haviam acabado por derivar para Ferrara, destacava uma senhora, Grácia Mendes Násci ou Beatriz de Luna, viúva dum banqueiro da praça de Lisboa, com filiais em França e na Flandres. Inquietada, encarcerada mesmo, pelo que Solimão II chegara a intervir junto dos seus algozes, viera dar em Itália àquele dos raros enclaves onde raiava uma liberdade, como fica dito mais fortuita que constitucional». In Aquilino Ribeiro, De Meca a Freixo de Espada à Cinta, Ensaios Ocasionais, Menina e Moça e o seu mau signo, Livraria Bertrand, Lisboa, 1960.

Cortesia de LBertrand/JDACT