Se isto é um
homem
Vós que viveis tranquilos
nas vossas casas aquecidas,
vós que encontrais regressando à noite
comida quente e rostos amigos:
considerai se isto é um homem
quem trabalha na lama
quem não conhece paz
quem luta por meio pão
quem morre por um sim ou por um não.
[…]
No Fundo
«(…) Isto é o Inferno. Hoje, nos nossos dias, o
Inferno deve ser assim, um local grande e vazio, e nós, cansados de estar de
pé, com uma torneira a pingar água que não se pode beber, esperamos algo sem
dúvida terrível e nada acontece e continua a não acontecer nada. Como pensar? Já não se pode
pensar, é como estar já morto. Alguns sentam-se no chão. O tempo passa gota
após gota. Não estamos mortos; a porta abriu-se e entrou um SS, a fumar. Olha
para nós sem pressa: Wer Kann Deutsch?, avança um de nós que nunca vi, chama-se
Flesch; será o nosso intérprete. O SS fala demorada e pacatamente: o intérprete
traduz. Temos de dispor-nos em filas de cinco, a intervalos de dois metros
entre um e outro; a seguir, temos de nos despir e embrulhar a roupa de uma
certa maneira, a de lã de um lado, o resto de outro, tirar os sapatos, mas tendo
muito cuidado para não os deixar roubar. Quem
poderia roubá-los?, porque é que deveriam roubar-nos os sapatos?, e os nossos documentos, as poucas
coisas que temos nos bolsos, os
relógios? Todos olhámos para o intérprete, o intérprete interrogou o alemão,
o alemão fumava e olhou para ele trespassando-o, como se fosse transparente,
como se ninguém tivesse falado. Nunca vira antes homens de idade nus. O senhor
Bergmann trazia a cinta hernial, perguntou ao intérprete se tinha de a tirar, o
intérprete hesitou. Mas o alemão percebeu e falou seriamente com o intérprete
apontando para uma pessoa; vimos o intérprete engolir, depois disse: - O
sargento diz que tire a cinta, que lhe vão dar a do senhor Coen. - Viam-se as
palavras sair amargas da boca de Flesch, era esta a maneira de se rir do
alemão.
A seguir aparece outro alemão, manda-nos pôr os
sapatos num determinado ângulo, e nós pomo-los, porque já está, tudo acabado, sentimo-nos
fora do mundo e não nos resta mais do que obedecer. Aparece um tipo com uma
vassoura e varre todos os sapatos, para fora da porta, num monte. Está louco,
está, a misturá-los todos, noventa e seis pares, depois estarão trocados. A
porta abre-se para o exterior, entra um vento gelado e nós estamos nus e tapamos
o ventre com os braços. O vento bate e volta a fechar a porta; o alemão vai
reabri-la e fica a ver com ar atento como nos contorcemos para nos taparmos do
frio uns atrás dos outros; depois vai-se embora e volta a fechar a porta. Agora,
começa o segundo acto. Entram com violência quatro tipos com navalhas, pincéis
e máquinas de tosquiar, vestem calças e casacos às riscas, com um número cosido
no peito; devem ser da mesma espécie dos outros desta noite (esta noite ou ontem à noite?);
mas estes são robustos e prósperos. Nós fazemos muitas perguntas, mas eles
agarram-nos e num ápice encontramo-nos barbeados e rapados. Que caras ridículas
temos sem cabelos! Os quatro falam uma língua que não parece deste mundo, sem
dúvida não é alemão, porque eu percebo um pouco de alemão.
Finalmente, abre-se outra porta: agora, estamos todos fechados, nus,
rapados e em pé, com os pés dentro de água; é uma sala de duches. Estamos sós;
pouco a pouco, o pasmo dissolve-se e começamos a falar, todos perguntam e
ninguém responde. Se estamos nus numa sala de duches, quer dizer que vamos
tomar duche. Se vamos tomar duche, é porque ainda não nos vão matar. Então,
porque é que nos obrigam a permanecer de pé, não nos dão água para beber,
ninguém nos explica nada, não temos sapatos nem roupa, mas estamos todos nus
com os pés na água, faz frio, viajámos durante cinco dias e nem podemos sequer sentar-nos? E as nossas mulheres? O
engenheiro Levi pergunta-me se acho
que também as nossas mulheres estarão assim como nós neste momento, onde
estarão e se voltaremos a vê-las. Respondo-lhe que sim, porque ele é casado e
tem uma filha; com certeza iremos vê-las de novo. Mas a minha ideia agora é que
tudo isto é uma grande máquina para se rirem de nós e nos vilipendiarem, depois
está claro que nos irão matar, quem pensa sobreviver está louco, quer dizer que
caiu no jogo deles; eu não, eu percebi que cedo estará tudo acabado, talvez neste
mesmo local, quando se aborrecerem de nos verem nus, passar de um pé para o
outro, e experimentarem de vez em quando sentar-nos no chão, mas o chão está
coberto por três dedos de água fria e não podemos sentar-nos». In
Primo Levi, Se Questo è um Uomo, Einaudi, Turim, 1958, Se Isto é um Homem,
1998, Tradução de Simonetta Neto, 10ª edição, 2013, Teorema, ISBN
978-972-695-945-8.
Em memória do Fernando José. Que estejas em paz.
Cortesia de Teorema/JDACT