domingo, 6 de abril de 2014

A Trança Feiticeira. Leituras. Henrique Fernandes. «O ‘tun-sam-fu’, justo acentuava a curva da cintura, o redondo saltitante das nádegas, as pernas longas e proporcionais, bem assentes nos pés descalços e chatos. Os baldes balançavam, sem perda de água… A trança grossa bamboleava como um pêndulo»

jdact e wikipedia

«(…) Narraram-se, então, casos de facadas, a arrogância dos a-tâis, dentro das ruelas escuras. Referiram-se ao caso dum português ter-se metido num ajuste de contas, cujo resultado fora uma agressão tão selvagem que lhe partiram a perna, ficando coxo para o resto da vida. Dos autores da proeza nada se apurou.
A desanca no jantar não desanuviou o seu espírito. Era afinal um hipócrita, a desfiar baboseiras, para esconder a vaidade ferida. O queixo, o pescoço fino e, sobretudo, a cabeleira fulgente da rapariga não lhe saíam da retina, mesmo naquela mesa rica. Sentia rebaixada a sua dignidade importar-se com uma serigaita, ignorante e analfabeta, que ganhava a vida, transportando, de casa em casa, baldes de água. Mas o que é certo é que se importava.
Ruminou ideias de vingança. Só assim teria descanso, o amor-próprio restabelecido. De repente, exultou com um plano excelente. A única lição adequada era seduzi-la, dar-lhe o devido correctivo e lançá-la, depois de usada, às urtigas. Aliás, a moça não era peixe podre nenhum, pelo contrário , até muito bonita. Possuía uma trança resplandecente que provocava loucos desejos de afundar nela as mãos. Tal plano não era para badalar pelos cantos. Era um segredo muito seu. A atitude da rapariga era uma mancha para os seus pergaminhos de conquistador. Teria vergonha até de admitir que o seu pensamento se concentrava numa aguadeira, ele que já fora senhor da viúva do Baixo Monte, tão disputada, pela riqueza e pela beleza.
Vestiu-se com apuro, não lhe ocorrendo que tal indumentária não ia impressionar uma proletária, habituada a outros padrões e a outro teor de vida. Pelo contrário, assustá-la-ia ainda mais, com as diferenças de educação, mentalidade e fortuna. Devia evitar o poço, para não suportar o coro das mulheres que por duas vezes se riram dele. Queria-a sozinha. Durante cerca de duas semanas, fez uma batida frustrante. Não a viu, sofrendo decepção sobre decepção. Ele próprio se surpreendia com a sua tenacidade, a perseguir o seu fito. Não se metia com ninguém, palmilhava as vias com devida correcção e não dava azo a qualquer incidente. Até começara a conhecer muitas caras. Sabia-a algures no bairro, só que lhe escapavam os seus movimentos, em horas e momentos desencontrados. Obcecado, prosseguia na sua suprema leviandade.
É claro que A-Leng fora prevenida. O diabo, vagueava pelas ruas, a vasculhar os cantos e recantos. Procurava alguém que o seu instinto dizia ser ela mesma. Aquela pretensão enfureceu-a. O falatório das amigas alterara a sua paz de espírito. Já ouvia piadinhas e insinuações. Agora, quando ia ao poço ou carregava os baldes pelas ruas, olhava para os lados, à espera do homem execrado. Adivinhava que um dia inevitavelmente ficariam frente a frente. Revelou tudo à Abelha-Mestra, aflita num transe em que sentia o seu bom nome ameaçado. A mulher mais idosa aconselhou-lhe calma e a todos os outros que a ouviam. O diabo não molestava ninguém, procedia até com muita compostura. Outras medidas seriam tomadas, caso ele desviasse de atitude. A solução provisória não serenou A-Leng.
Adozindo já cansava da pesquisa, quase acreditando que a moça se mudara do sítio, quando numa tarde, dobrando a Rua Tomaz da Rosa e ladeando o poço, avistou de costas uma silhueta de aguadeira, levando os baldes cheios, em direcção da escadaria. Reconheceu a trança fatal, antes de identificar a jovem, e seguiu-a, sem reparar em mais ninguém. Todo o corpo vigoroso e esbelto se delineou, no ritmo do andar de passos pequeninos. O peso e a necessidade de equilíbrio obrigavam-na a caminha rígida, algo inclinada para a frente. O tun-sam-fu, justo acentuava a curva da cintura, o redondo saltitante das nádegas, as pernas longas e proporcionais, bem assentes nos pés descalços e chatos. Os baldes balançavam, sem perda de água, numa cadência sempre igual. E a trança grossa bamboleava como um pêndulo lascivo. Acompanhou à distância. Ela subiu a escadaria para a Rua Nova à Guia, sem parar nem descansar, o que indicava saúde. Arfou atrás dela, galgando os degraus, mas quando chegou ao alto, ela tinha desaparecido. Não podia ter ido muito longe, entrara nalguma das casas das cercanias. Resolveu aguardá-la, movendo-se de cá para lá. Sentia-se à vontade, ali não devia deparar com ninguém da sua gente. Estava ainda entre chineses. No entanto, esquecia-se da situação da rapariga que era vista pela gente, dela. No seu egoísmo, Adozindo só encarava o seu próprio interesse». In Henrique Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-9440-80-8.

Cortesia da Fundação Oriente/JDACT