«Quando Isócrates,
no Panegírico, critica a facilidade com que os Atenienses se deixam
comover pelas ficções dos poetas, ao passo que se mostram insensíveis perante as
desgraças reais em que a Hélade se encontra, refere um dos efeitos que Aristóteles
dará como característico da Tragédia, compaixão. A censura pressupõe o reconhecimento
da força emocional da Poesia, uma ideia com fundas raízes na tradição grega
desde Homero, mas para cuja teorização estética muito contribuiu o
surgimento e evolução do teatro trágico no séc. V em Atenas. Era nele,
provavelmente, que Isócrates pensava, ao dizer estas palavras, não só
porque a poesia dramática continuou a gozar de um enorme prestígio, dentro e
fora de Atenas, ao longo do séc. IV, muitas vezes com a reposição de peças dos
grandes trágicos entretanto desaparecidos; mas também porque, em termos de
efeitos emocionais, a tragédia ganhava a palma aos outros géneros literários. No
século do seu florescimento, a especificidade desta nova forma de expressão poética,
diferente da Narrativa e da Lírica que até então haviam preenchido
o espaço daquilo a que os Gregos chamavam as artes das Musas (Mousikê),
veio abrir novas vias de reflexão à polémica já antiga acerca do valor da
Poesia enquanto discurso didáctico no contexto da pólis. Com o teatro
tornava-se possível, se não ultrapassar completamente, pelo menos questionar a
validade da aplicação ética da dicotomia verdade / falsidade
às apreciações sobre a criação dos poetas que, desde Hesíodo, se
instituíra como principal critério para a aferição da melhor poesia. O teatro
partia do pressuposto óbvio e assumido de que a representação era isso mesmo, representação, falsidade, portanto.
Isso, porém, não significava qualquer demissão dos poetas relativamente ao seu
ancestral papel pedagógico na pólis. Nunca a Poesia deixou de afirmar o seu
valor intrínseco, enquanto saber formativo de um ideal de homem que, como muito
bem demonstrou Jaeger, foi sempre o objectivo último da Paideia
grega.
A comédia As Rãs de Aristófanes,
do final do séc. V, é um eloquente testemunho, ainda que caricatural, de que
esse desígnio didáctico, na perspectiva de dois dos maiores representantes do
género trágico, Ésquilo e Eurípides, continuava a ser sentido como a verdadeira
missão do poeta. E os ataques de Platão à Poesia na República mais não são do que a proposta de
substituição desse anterior modelo pedagógico, assente na aprendizagem dos
poetas, por um outro, em que a Filosofia
deveria assumir-se como discurso dominante. Os fundamentos éticos
usados por Platão na sua diatribe contra os poetas, evidenciam o seu
alinhamento crítico com todos aqueles que, a começar pelos próprios artífices da
poesia, atacaram os seus colegas de ofício, acusando-os de mentirem (Hesíodo,
Sólon). Assim se demarca daqueles outros que, por seu lado, vinham
defendendo, ainda que de forma muito incipiente, a aplicação de juízos
exclusivamente estéticos à crítica dos poetas. É o caso do sofista Górgias,
por exemplo (segundo o testemunho de Plutarco, Górgias teria afirmado
que, no teatro, quem engana é mais
justo do que quem não engana, e quem é enganado é mais sábio do que quem não é.
Quem engana é mais justo porque fez o que havia prometido, e quem é enganado é mais
sábio, porque não falta sensibilidade a quem se deixa levar pelo prazer das
palavras), ou do autor anónimo do tratado intitulado Dissoi Logoi (na tragédia como na pintura, quem quer
que seja melhor a enganar, criando coisas semelhantes às verdadeiras, esse é o
mais excelente. E mais à frente esclarece: Nas artes não há o justo e o injusto. E os poetas não compõem os
seus poemas com vista à verdade, mas aos prazeres dos homens) que
insistem na necessidade de se excluir o critério de verdade das apreciações
acerca da poesia em geral, e da tragédia em particular. É, pois, a própria
pertinência da utilização do conceito de verdade como categoria estética que
começa a ser posta em causa, num processo que conduzirá à sua posterior substituição
pelo conceito de probabilidade ou verosimilhança, o eikos em Aristóteles. A este processo
reflexivo não foi alheia aquela disciplina que também o séc. V viu nascer e que
alguns proeminentes Sofistas
se encarregaram de aprofundar e difundir, a retórica, ou, como os Gregos lhe
preferiam chamar nesta época, a arte das palavras. De resto, não é
ocasional a semelhança dos argumentos usados por Platão para censurar
ambas as artes, a Poesia e a Retórica.
Mas não é apenas a
falsidade dos poetas que mobiliza a voz crítica de Platão. No seu afã
racionalista (aqui está o que tínhamos
a dizer, ao lembrarmos de novo a poesia, por, justificadamente, excluirmos da cidade
uma arte desta espécie. Era a razão que a isso nos impelia), o filósofo
ateniense ataca especificamente a poesia dramática, aquela que é
toda de imitação, como ele próprio a define, com base nos perigos que
representam, para a cidade, as emoções que ela tem o poder de suscitar. É que,
para Platão, as emoções estimulam a parte mais baixa da alma, destruindo
a inteligência dos ouvintes e
impedindo-os de alcançarem a verdade. Deste modo atribui exclusivamente à razão o
estatuto de via para a Justiça e para o Bem que deviam ser o objectivo
de todos os que governam a cidade, nesta aceitando apenas, de acordo com tal
ideia, composições poéticas de inquestionável utilidade social, isto é, aquelas
que veiculassem valores morais para os cidadãos». In Marta Várgeas, A Poética da
Tragédia Sofocliana, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009, ISBN
978-972-8932-42-8.
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