A Corte de Manuel I
«As casas da terra natal de Damião
de Góis, Alenquer, encarrapitavam-se no cimo dum monte íngreme e brilhavam,
ao sol radioso, numa brancura que cegava os olhos. Chegava-se por estradas
sinuosas ao topo do monte e à igreja da Várzea, onde Damião foi baptizado e onde viria a ser enterrado. Em rapaz talvez
tivesse ido pescar no rio manso ou tivesse gozado da sombra fresca das árvores
das margens. Damião nunca perdeu o
amor à terra onde nasceu, embora tivesse saído de Alenquer aos nove anos para
ir servir de pajem a Manuel I. Para o pequeno Damião a partida para a corte do rei constituiu uma mudança
dramática, de um meio familiar abastado onde vivia com os irmãos e as irmãs,
para o esplendor e fascinação dum palácio rico e para a companhia de príncipes
e de outros cortesãos. Góis teve a
sorte de nascer no Portugal dos Descobrimentos, período de feitos que
não tiveram igual nos séculos que se lhe seguiram. A posteridade deu a Manuel
I, cunhado de João II, o cognome de o
Venturoso, cognome esse que Góis
viria a empregar na crónica que fez do seu reinado. Manuel, como Góis havia de relatar, ascendeu ao
trono de Portugal por um acto da Providência. João II
desejava ter seu filho ilegítimo Jorge por sucessor, pois que o filho
legítimo e outros herdeiros presuntivos já o tinham precedido no túmulo; mas sua
mulher, D. Leonor, que pertencia à poderosa casa portuguesa de Bragança,
desejava naturalmente que o seu próprio irmão fosse herdeiro do trono. Essa
família eminente já estivera implicada na tentativa de impedir a concentração
do poder no soberano. A conspiração tinha ficado gorada, e, em consequência,
alguns dos Braganças tinham sido executados ou banidos.
Após a ascensão do rei Manuel I ao poder, a actividade cultural do país
fez vastos progressos nas artes e nas ciências, culminando mais tarde em 1572 com a grande epopeia de Luís
de Camões, Os Lusíadas. Durante
o reinado de Manuel I, Góis assistiu
a acontecimentos importantes. O jovem ouvia narrativas de marinheiros e
soldados que tinham penetrado nas profundezas de África, contos sobre as
riquezas e as maravilhas da história e da cultura da Índia, histórias das
antigas civilizações da China e do Japão, relatos dos costumes primitivos de
tribos recentemente descobertas no Brasil. O palácio de Manuel I resplandecia
com sedas, brocados, tapeçarias do gosto mais requintado, e com pedras preciosas;
e essa exibição de riqueza era um reflexo da fama do rei, que se estendia por
três continentes. Lisboa, cujos habitantes se ufanavam da sua cidade construída
sobre sete colinas como Roma Eterna, oferecia um panorama grandioso sobre o
vasto oceano. Antes dos Descobrimentos
era uma cidade sonolenta, mas agora que os portugueses tinham penetrado no segredo
do além-mar, Lisboa, como o palácio real, era o espelho dum mundo em permanente
expansão. Nas ruas da cidade apinhavam-se figuras coloridas vindas de terras
distantes; uma nova população de mercadores representava quase todos os países
da Europa. O porto movimentado estava cheio de navios que iam de partida, ou de
caravelas que regressavam de expedições longínquas.
Numa idade facilmente impressionável, Damião integrou-se nessa cidade turbulenta, tão vitalizada pelos
acontecimentos históricos. Dotado de aguda curiosidade, estava
extraordinariamente atento aos acontecimentos em seu redor. Não se satisfazendo
com o papel de observador passivo, Damião
aproveitava todas as oportunidades para conhecer visitantes do estrangeiro e
para se informar sobre terras e gentes que nunca vira. Desde os primeiros
tempos passados no palácio até aos anos de maturidade Gois sentiu-se particularmente estimulado pela conquista da Índia e
pelos estranhos costumes do seu povo. Os elefantes mandados ao monarca Manuel
por príncipes indianos como marca de respeito deixaram nele uma funda
impressão. O alvoroço com que esses animais foram recebidos deve ter sido causado
em parte pela fama dos elefantes de guerra que se tinha
espalhado pelo mundo depois da entrada de Alexandre Magno na Índia. Nos
escritos de maturidade Gois
relembrava muitas vezes a sensação causada por um desfile desses elefantes
pelas ruas de Lisboa, e relatou uma vez um episódio destinado a mostrar a capacidade
de compreensão do elefante, bem como a sua habilidade para comunicar com os
homens. O caso passou-se no porto de Lisboa, onde um barco estava à espera de
um elefante para o transportar para Roma como presente destinado ao Papa.
Dizia-se que o animal, apesar de muito instigado, se recusava a entrar no
barco, mas que, por fim, depois de o rei lhe ter assegurado que a sua
transferência para outra personagem elevada
era da vontade do primitivo dono indiano, o elefante obedeceu com lágrimas nos olhos. Não se
devem pôr de lado como ingénuas ou símplices considerações como estas,
relatadas por Gois em reacção a um
tal espectáculo; o interesse que tinha por uma cena nova e por um comportamento
invulgar era partilhado por muitos». In Elisabeth Feist Hirsch, The Life and Thought of a Portuguese Humanist,
The Hague Netherlands, 1967, Damião de Góis, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa,
2002, ISBN 972-31-0677-9.
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