domingo, 27 de abril de 2014

Viriato. O nosso avô. Príncipes de Portugal. Suas grandezas e misérias. Aquilino. «Os povoados alcandoravam-se nos altos desabridos, e compreende-se. O primeiro requisito que o homem exigia do seu tugúrio era a de situação desassombrada: vista larga, terra escampa, caminhos descobertos»

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Viriato. O nosso avô
«(…) É provável que nas encostas e chãs começassem a cultivar de sachola o centeio e outros cereais rústicos, e que a vinha, mais ou menos selvagem, rubescesse ao Sol das escarpas, e pisassem a uva nas lagaretas, talhadas a picão na rocha viva das penhas. Mas o principal da alimentação consistia na caça, alguma coisa na pesca, sem falar no provimento subsidiário de currais e pocilgas, reservado como hoje aos privilegiados. Sem embargo, não será temerário supor, pelos sinais que se enxergam nas ruínas neolíticas e mesmo proto-históricas, como sejam os olhais perfurados no lajedo, que o mais pária possuísse a sua cabrinha e até uma vaca. Forneciam-lhe o leite, e ele iria apascentá-las pelas rampas, presas por um vencilho de giesta ou de palha, ao passo que as guardava tão bem do lobo e do urso como do salteador. Reza Estrabão que a carne de cabra era uma das suas comidas predilectas. Presume-se com muitas probabilidades de acerto que não fosse nada pestinheiro em matéria de boca, e que tanto lhe servisse o cabrito como o borrego, a lebre ou qualquer bicho do monte. As aves de capoeira seriam manjar de mulher parida. A era dos Vitélios estava ainda para amanhecer para lá de muitas rotações dos astros.
Os povoados alcandoravam-se nos altos desabridos, e compreende-se. O primeiro requisito que o homem exigia do seu tugúrio era a de situação desassombrada: vista larga, terra escampa, caminhos descobertos. Aqueles nossos longínquos antepassados, quando não andavam a ferro e a fogo, viviam em guerra lassa uns com os outros. Para Trás-os-Montes existe um castro chamado de Mau Vizinho, que pode ter-se como paradigma. Em verdade todos tinham maus vizinhos no seu próximo. Se alguma vez as tribos se concertavam entre si, era quando o inimigo externo acampava já nos eidos e estava iminente o extermínio. Assim, os povos celtibéricos, na resistência a Roma, apenas se uniram aos lusitanos à hora extrema e quando já não havia salvação possível. São provas deste instinto de rixa e de irredutibilidade os ódios, malquerenças, brigas, que se dão ainda hoje entre aldeias sertanejas limítrofes, nutrindo-se às vezes do mesmo rio e do mesmo monte. Olim, o rapto das Sabinas constituiria porventura o vulgar casus belli entre as tribos. Hoje só por retorno atávico de rancores tão específicos se explica a latente animosidade.
Este estado de beligerância entre os nossos avós vinha de resto de longe, de sempre, que lá estão a atestá-lo certos dólmenes a céu aberto com seu cemitério de maxilares partidos, crânios arrombados, dentes em astilhas, devido a outros agentes que não à compressão natural do terreno. Os castros, que se afigura nada terem que ver com a arte de construção militar romana, eram lugares de defesa civil e compunham-se de grossas muralhas, por vezes duas e três, concêntricas à cividade propriamente dita. Um primeiro ândito tinha em mira proporcionar refúgio imediato, mal soasse o alarme, a rebanhos e pessoas surpreendidas fora do campo entrincheirado. A parte residencial era por assim dizer o último reduto com suas casotas circulares, a fonte, e os celeiros que deviam ser escassos. A citânia de Besteiros e de modo mais complexo a citânia do Monte de Santa Tecla elucidam-nos sobre estes particulares. A Cava de Viriato, subjacente ao morro em que assenta a Viseu antiga, em vez de acampamento militar, formaria um imenso redil para os rebanhos em caso de emergência». In Aquilino Ribeiro, Príncipes de Portugal, Suas grandezas e misérias, Livros do Brasil, Lisboa, 1952.

Cortesia de LB/JDACT