segunda-feira, 21 de abril de 2014

Romance Histórico no Romantismo Português. Castelo Branco Chaves. «… Parece-nos que nesta cousa chamada hoje romance-histórico há mais histórias do que nos graves e inteiriçados escritos dos historiadores. Nesta breve nota encontra-se estabelecido o cânone do romance histórico tal como o concebeu e praticou»

jdact e wikipedia

O romance histórico no primeiro romantismo português
Herculano
«(…) Respondendo a críticas que o increpavam por haver alterado a verdade histórica nas suas crónicas-romances publicadas no Panorama, Herculano respondia nas colunas da mesma revista: Nós procuramos desentranhar do esquecimento a poesia nacional e popular dos nossos maiores: trabalhamos por ser historiadores da vida íntima de uma grande e nobre, e generosa nação, que houve no mundo, chamada Nação Portuguesa. Termina a sua resposta: Alargámo-nos nesta nota, porque alguém nos increpou de havermos alterado a história em várias crónicas-romances que temos publicado, principalmente no Mestre Gil e na Abóbada; era-nos lícito fazê-lo; mas cremos que não o fizemos em cousa essencial; nisto demos crónica, no vestuário com que o enfeitámos demos romance. Não confundamos ideias; o extra-histórico não é contra-histórico. Vivem acaso naquelas duas… novelas, se quiserem, as épocas a que aludem? Não teremos tanto orgulho, que sem receio, o afirmemos. Mas se com efeito aparece, em uma o modo de existir português, do tempo de João II, noutro o crer e sentir robustíssimo do reinado de João I, diremos sem hesitar que saímos com o nosso intento. Preso por mil, preso por mil e quinhentos, diz o velho adágio. Vá aqui mais uma humilde opinião nossa. Parece-nos que nesta cousa chamada hoje romance-histórico há mais histórias do que nos graves e inteiriçados escritos dos historiadores. Nesta breve nota encontra-se estabelecido o cânone do romance histórico tal como o concebeu e praticou Herculano:
  • Revivescência da poesia nacional e popular; 
  • Representação, com base erudita, da vida íntima das épocas passadas; 
  • Ressurreição estética da vida social da época histórica em que decorre a acção novelística, expressando o modo de sentir e existir do povo.
Este cânone é, mutatis mutandis, aquele que se pode deduzir da leitura dos romances de Scott. Mas a lição que Herculano recebeu do grande novelista escocês não foi apenas a que assim se pode esquematizar. Também nas obras de Scott apreendeu Herculano o princípio da não apresentar as figuras com existência histórica como personagens centrais do enredo. O romance histórico não comporta heróis que tivessem tido existência histórica, com destaque singular, sob pena de impossibilitar a representação social múltipla e vária que necessariamente há-de compor o quadro histórico em que se insere a acção imaginada. Não é possível saber se o interesse de Herculano pelos estudos históricos e sua consagração a eles, proveio da leitura apaixonada que fez dos romances de Scott. Houve já quem conjecturasse, não me recordo quem, que a vocação de Herculano para os estudos de natureza histórica se revelara no tempo em que ele frequentara a aula de diplomática, antecedentemente ao exílio.
É muito verosímil; mas se não foi Scott quem nele despertou o interesse por tais estudos, foi ele certamente quem lhe revelou o que eles têm de sedutor. Estava-se então numa época em que o interesse pela História constituía não só o fundo da cultura mas também um dos mais vastos e ricos recursos ao divertimento dos espíritos. Em quase todas as épocas da história se verifica, em cada uma delas, a criação da sua utopia própria, geralmente prospectiva. A utopia romântica teve a particularidade de se projectar sobre o passado, de ser uma utopia retrospectiva. Toda a utopia se cria como uma compensação das realidades presentes; os românticos, porém, antes de a visionarem no futuro, fizeram-na transitar pelo passado, e esse foi o toque de genialidade de Scott e a verdadeira causa da quase universal aceitação da sua obra. Augustin Thierry, na sexta das suas Lettres sur l’Histoire de France escreve: A leitura dos romances de Scott fez voltar muitas imaginações para a Idade Média, a qual, anteriormente, por menosprezo, era desconhecida; e se presentemente se está realizando uma revolução na maneira de ler e escrever a história, isso se deve principalmente à leitura dessas composições aparentemente frívolas.
Herculano parece ter considerado a História e a novela histórica como dois elementos de actuação convergente. Mais: no entusiasmo pelo romance histórico, na admiração pela obra de Scott, modelo e desesperação de todos os romancistas, equiparava a História ao ficcionismo da história ao escrever no Panorama: Novela ou História qual destas duas causas é a mais verdadeira? Nenhuma, se o afirmarmos absolutamente de qualquer delas». In Castelo Branco Chaves, O Romance Histórico no Romantismo Português, Instituto de Cultura Português, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, 1980.

Cortesia do Instituto Camões/JDACT