sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Moll Flanders no 31. Daniel Defoe. «Quando nos vimos a sós, ele pôs-se a falar com muita sisudez e disse que não me levara ali para me seduzir, já que a sua paixão por mim não lhe permitiria abusar de mim, pois estava decidido a casar-se comigo»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Entrementes, eu tinha bastante astúcia para não dar o menor ensejo para que algum membro da família suspeitasse de mim ou imaginasse que eu tinha a menor ligação com o jovem cavalheiro; quase nunca o olhava em público e, na presença de alguém, só lhe falava em resposta a algo que ele me dissesse; apesar disso, de vez em quando tínhamos uma pequena entrevista, em que não havia tempo senão para a troca de uma ou duas palavras ou, de quando em quando, um beijo, mas nunca surgia boa ocasião para o mal pretendido, sobretudo porquanto ele fazia mais circunlóquios do que seria necessário se lesse os meus pensamentos, e como a empresa lhe parecia difícil, na realidade assim a tornava.
Entretanto, como o diabo é um tentador infatigável, ele nunca deixa de achar oportunidade para o mal com que nos acena, e essa oportunidade surgiu numa tarde em que eu estava no jardim com as duas irmãs mais novas e ele, todos em inocente colóquio, quando ele encontrou um meio de deslizar para a minha mão um bilhete em que dizia que no dia seguinte me pediria, em público, que levasse uma mensagem à cidade para ele e que eu o encontraria em algum ponto do caminho. Assim, no outro dia, depois do almoço, disse-me diante das irmãs, muito sério, senhora Betty, preciso pedir-lhe um favor; o que é?, perguntou a irmã menor; bem, irmã, continuou ele, se não puderem prescindir da senhora Betty hoje, poderá ser em qualquer outro dia; claro que sim, disseram elas, podiam muito bem prescindir de mim, e a irmã desculpou-se por haver perguntado do que se tratava, o que disse ter feito por simples rotina, sem dar àquilo importância alguma; bem, irmão, disse a irmã mais velha, tem de dizer à senhora Betty do que se trata; se for algum assunto particular de que não devemos tomar conhecimento, pode falar-lhe em particular, esteja à vontade; ora, irmã, disse o cavalheiro, com toda a seriedade, o que quer dizer com isso? Só quero pedir que ela vá à uma loja na High Street, e em seguida tirou do bolso um colarinho postiço e contou então uma longa história sobre duas belas gravatas pelas quais tinha feito uma oferta e queria que eu fosse até lá e lhe fizesse o favor de comprar uma gravata para o colarinho que ele mostrava, e se não aceitassem o valor que ele propusera, oferecesse um xelim a mais e regateasse com eles; a seguir, deu-me outras incumbências e pequenas coisas para fazer, de modo que eu passasse muito tempo fora.
Depois de expor todos esses encargos, contou-lhes outra longa história de uma visita que faria, naquela tarde, a uma família que todos conheciam e em cuja residência estariam tais e tais cavalheiros, que ficariam muito satisfeitos com o encontro, e pediu formalmente às irmãs que fossem com ele; com a mesma formalidade, elas declinaram do convite, por causa de visitas que receberiam naquela tarde; diga-se de passagem que ele tramara o ardil justamente por saber disso. Mal acabara de lhes falar e de me explicar as incumbências, seu criado chegou para informar que a sege de sir W… H… chegara à porta, e ele saiu e logo retornou, que pena!, exclamou, lá se vai minha tarde por água abaixo, sir W… mandou a sua sege para me buscar e quer falar comigo sobre um assunto sério; creio que esse sir W… era um cavalheiro que morava a cerca de cinco quilómetros fora da cidade e a quem na véspera ele pedira emprestada a sege para um assunto particular, dizendo-lhe que a enviasse por volta das três horas, como ele fez.
Pediu sua melhor peruca, o chapéu e a espada, ordenando ao criado que fosse à outra casa para apresentar as suas desculpas por não poder ali comparecer, o que era simplesmente um pretexto para afastá-lo, e preparou-se para subir à sege; no momento em que saía, deteve-se um instante e falou-me, em tom circunspecto, do que me pedira, achando oportunidade de dizer à meia-voz, saia depressa, querida, o mais cedo que puder; nada respondi, limitando-me a fazer uma reverência, como se em resposta ao que me dissera em voz alta; daí a cerca de um quarto de hora, saí também; não mudei a roupa que vestia, de modo que não pudesse surgir na casa a menor suspeita, mas levava no bolso um capuz, um véu, um leque e um par de luvas; ele esperava-me na sege numa ruazinha atrás da sua residência, pela qual sabia que eu haveria de passar, e instruíra o cocheiro para onde deveria ir, um lugar chamado Mile-End, onde morava um amigo seu; entramos na casa, e notei que havia ali todas as comodidades do mundo para que pecássemos tanto quanto quiséssemos.
Quando nos vimos a sós, ele pôs-se a falar com muita sisudez e disse que não me levara ali para me seduzir, já que a sua paixão por mim não lhe permitiria abusar de mim, pois estava decidido a casar-se comigo logo que entrasse na posse da herança e que, até lá, se eu aceitasse a sua proposta, ele me manteria com toda a honradez; mil vezes professou a sua sinceridade e seu afecto por mim, assegurando que jamais me abandonaria, e, se me é lícito dizer, fez mil vezes mais preâmbulos do que precisava.
Todavia, como insistia para que eu lhe respondesse, eu disse que não tinha motivo algum para duvidar da sinceridade do seu amor por mim, depois de tantas declarações, mas…, e calei-me, como se quisesse que ele adivinhasse o resto; o que é, minha querida?, disse ele, já imagino o que você quer dizer: o que acontecerá se engravidar, não é isso? Ora, cuidarei de si e de todas as suas necessidades, bem como as da criança, e para ver que não estou brincando, fique com isto de presente, e entregou-me uma bolsa de seda com cem guinéus, e lhe darei outra igual, disse, a cada ano, até nos casarmos». In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A vida Amorosa de Moll Flanders, Publicações Europa América, 1998, ISBN 978-972-104-443-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT

No 31. Moll Flanders. Daniel Defoe. «Não há de parecer estranho que eu agora começasse a pensar, mas minhas reflexões eram, ai de mim!, pouquíssimo sólidas, eu tinha uma reserva quase ilimitada de vaidade e orgulho»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Como nos cansássemos desses folguedos, sentamo-nos e ele falou-me durante muito tempo; disse que estava fascinado por mim, que não sossegaria, dia e noite, até que houvesse dito o quanto me amava, que se eu fosse capaz de amá-lo e de fazê-lo feliz eu lhe salvaria a vida, e muitas outras coisas bonitas; da minha parte, disse-lhe pouco, mas a minha postura prontamente revelou que eu não passava de uma tola e não percebia de modo algum o que ele pretendia. Depois ele começou a caminhar pelo quarto e, pegando na minha mão, fez-me passear com ele; pouco a pouco, foi ganhando segurança e em certo momento atirou-me na cama e ali me beijou com muito ardor, mas, a bem da justiça, devo dizer que não usou de rudeza, apenas beijou-me muito, depois, como teve a impressão de que alguém subia a escada, levantou-se da cama, ergueu-me também, professando imenso amor por mim; disse que se tratava de um afecto honesto e que não queria causar-me mal algum, e pondo cinco guinéus na minha mão foi-se escada abaixo.
Eu estava mais confusa com o dinheiro do que estivera antes com o amor, e comecei a sentir tamanha exaltação que mal tomava conhecimento do chão em que pisava; considero muito importante esta parte de minha história porque, se ela vier a ser lida por uma jovem inocente, talvez a instrua a se proteger do mal que lhe pode acarretar a consciência prematura da própria beleza; se uma jovem se julga formosa, nunca duvidará da sinceridade de todos os homem que se disserem apaixonados por ela, pois se ela crê ser encantadora o bastante para cativar o homem, é natural que aceite de bom grado os efeitos dos seus encantos. O jovem cavalheiro inflamara o seu desejo tanto quanto aguilhoara a minha vaidade, e como se percebesse que tivera oportunidade e lamentasse não a ter aproveitado, daí a meia hora, mais ou menos, subiu a escada de novo e retomou seus arroubos comigo, tal como antes, só que com menos prelúdios.
Para começar, ao entrar no quarto, virou-se e, fechando a porta, disse, senhora Betty, antes pareceu-me que alguém subia a escada, mas não era verdade; se eu for visto neste quarto com você, não me surpreenderão a beijá-la, e respondi que não fazia ideia de quem poderia subir pela escada, pois acreditava que não havia mais ninguém na casa além da cozinheira e da outra criada, que nunca estavam por ali; minha querida, disse, em todo caso é melhor nos garantirmos, e com isso ele sentou-se e começamos a conversar, e agora, ainda que eu continuasse inflamada devido à sua primeira visita e pouco falasse, ele, por assim dizer, pôs palavras em minha boca, falando da paixão com que me amava e que, embora não pudesse mencionar tal desejo antes de entrar na posse do seu património, estava decidido a fazer-me feliz e também a sê-lo; disse que queria casar-se comigo e muitas outras palavras românticas, cuja verdadeira finalidade eu, pobre néscia, não compreendia, tendo-me portado como se não houvesse outra espécie de amor senão o que conduz ao matrimónio, e ao ouvi-lo falar de núpcias, não encontrava oportunidade nem me sentia com forças para dizer que não, se bem que ainda não houvéssemos chegado a esse ponto.
Não fazia muito tempo que conversávamos quando ele se pôs de pé e, deixando-me quase sem ar com os seus beijos, jogou-me na cama de novo; como ambos estivéssemos então bastante estimulados, ele foi mais longe do que a decência me permite referir, mas se ele houvesse tomado mais familiaridades do que quis, não estaria em meu poder negar-lhe alguma coisa naquele momento. Todavia, conquanto tenha tomado essas liberdades comigo, não chegou ao que chamam de último favor, o que, para lhe fazer justiça, ele nem tentou; essa renúncia voluntária serviu-lhe de pretexto para todas as liberdades em outras ocasiões depois dessa; findo o nosso encontro, ele pôs em minha mão quase um punhado de moedas de ouro e me deixou, fazendo mil protestos de paixão e afirmando amar-me mais do que a todas as mulheres do mundo.
Não há de parecer estranho que eu agora começasse a pensar, mas minhas reflexões eram, ai de mim!, pouquíssimo sólidas, eu tinha uma reserva quase ilimitada de vaidade e orgulho, e pouca reserva de virtude; é verdade que, uma vez por outra, perguntava-me o que meu senhor pretendia, porém não pensava em nada além das belas palavras e do ouro; se queria casar-se comigo ou não, parecia-me assunto de pouca importância, nem os meus pensamentos chegaram a sugerir a necessidade de tentar algum acordo em meu benefício, até que ele veio a fazer-me uma espécie de proposta formal. Assim, pois, abandonei-me sem o menor cuidado à possibilidade de me arruinar, e sou bom exemplo para todas as jovenzinhas cuja vaidade prevalece sobre a virtude; jamais se viu maior parvoíce por parte de duas pessoas, se eu tivesse procedido como devia e resistido, como impõem a virtude e a honra, o cavalheiro haveria desistido dos seus avanços ao ver que não tinha possibilidade alguma de alcançar os seus desígnios, ou teria feito propostas de casamento sérias e formais, e nesse caso quem o reprovasse não teria como reprovar a mim; em suma, se ele me conhecesse e tivesse percebido como era fácil conseguir a ninharia a que aspirava, não teria precisado quebrar tanto a cabeça, bastaria dar-me quatro ou cinco guinéus e teria se deitado comigo da próxima vez que viesse; se eu me tivesse dado conta dos seus desígnios e de como ele supunha ser difícil ganhar-me, poderia ter imposto as minhas próprias condições; e se eu não houvesse transigido em favor de um casamento imediato, poderia tê-lo feito em troca de uma manutenção até às núpcias e teria o que quisesse: ele já era mais do que rico, além do que viria ainda a herdar; eu parecia ter posto inteiramente de lado todos os pensamentos dessa espécie e só me deixava levar pelo orgulho de minha beleza e de saber-me amada por tal cavalheiro; quanto ao ouro, passava horas e horas a contemplá-lo, contava os guinéus inúmeras vezes, mais de mil por dia; nunca pobre criatura assim vaidosa esteve tão mergulhada em falsidade, sem atentar ao que me aguardava e que a ruína já quase batia à porta; na verdade, acredito que desejasse aquela ruína, uma vez que nada fazia para evitá-la». In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A vida Amorosa de Moll Flanders, Publicações Europa América, 1998, ISBN 978-972-104-443-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT

Sociedades Secretas no 31. Philip Gardiner. «Eles apontam para significados ocultos a respeito de guerras nucleares e ditadores do Médio Oriente como se eles próprios tivessem recebido uma espécie de revelação divina»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Sem o trabalho árduo desses historiadores teria sido impossível escrever um livro como este, ainda que as suas conclusões estejam em flagrante contraste com a visão aceita. Devemos lembrar-nos de que muitos dos livros de história que hoje lemos foram escritos ou, no mínimo, os seus assuntos foram pesquisados durante uma Era Vitoriana de elevado Cristianismo, período em que qualquer teoria ou facto se inclinava a um ponto de vista cristão. Por exemplo, quando se descobriu que existiram antigos deuses crucificados anteriores a Cristo, eles foram ocultados, destruídos ou mesmo considerados prova de um conhecimento dado por Deus da futura crucificação de Cristo. Isso, com certeza, é um disparate completo, vindo de uma religião que foi, ela mesma, fruto de antigos cultos. Também precisamos compreender que muitos historiadores, artistas, construtores, políticos, religiosos e leigos quiseram passar a verdade adiante, mas não conseguiram. Elaboraram, então, criptogramas, códigos e simbolismos para que os seus pares e as futuras gerações decifrassem. A beleza de muitos desses símbolos está no facto de que a maioria já era conhecida e possuía significados ortodoxos, de modo que o sentido oculto poderia ser disfarçado com facilidade na religiosidade dominante.
Os símbolos estão escondidos ao nosso redor como uma sequência de pistas que levam a um tesouro. Entramos em contacto com eles em qualquer lugar a que formos, desde a arquitectura simbólica e os vitrais pintados das igrejas medievais até, por exemplo, o logotipo de uma empresa… O logo da minha própria empresa simbolizava a Transição de Fase, a mudança de uma substância noutra. Para uma empresa de marketing, era o ideal. Contudo, somente as pessoas que sabiam de tais coisas poderiam ver isso. Outras veriam apenas uma seta com uma linha ondulada. Ocultei uma figura simbólica num logotipo de uma empresa que, do contrário, parece comum. A humanidade usa essa linguagem subtil há milhares de anos. A cada geração, essa forma alternativa de comunicação desenvolveu-se e ficou cada vez mais complexa, tornando-se mais difícil de ser decifrada. O único meio de descobrir os segredos do simbolismo é separar, em cada pintura, edificação ou texto, todo e qualquer significado possível, bem como considerar tanto o povo que criou tais artefactos quanto a época em que viveram. Esses achados devem ser examinados, então, com base em factos históricos conhecidos, tais como informações arqueológicas.
Uma das maiores obras de simbolismo, em todos os aspectos, é a Bíblia. Para o estudioso que conhece os significados alternativos de alguns dos textos do Apocalipse, é óbvio, há muito tempo, que neles existem verdades escondidas. Para muitos outros, o princípio subjacente ao livro inteiro é astrológico-teológico, Jesus como o Sol, Maria como a Lua, e os 12 apóstolos são, assim, signos do Zodíaco. Mas existem tantas camadas ocultas mostrando que quaisquer números de significados são possíveis que é necessário nos lembrarmos de que mentiras também são ocultadas em códigos. É claro que, para acrescentar, existem centenas de textos e de assim chamados Evangelhos, escritos no mesmo período em que a Bíblia, que simplesmente nunca passaram no teste dos primeiros activistas cristãos e foram afastados da liturgia. Esses textos são válidos, da mesma forma, agora, para a história do homem; caso contrário, estaremos, mais uma vez, susceptíveis à manipulação dos que escolheram os conteúdos da Bíblia no passado.
É preciso também que tenhamos cuidado para não inferir demais dos textos, pois correríamos o risco de vê-los à luz da nossa própria sociedade moderna. Existem muitos exemplos recentes de livros nos quais estruturas e textos antigos são considerados evidências de visitas extraterrestres. Independentemente de qualquer outra interpretação mais terrena e de uma imensa falta de compreensão das tradições religiosas e culturais da época, essas evidências são eivadas por ideias ou teorias predeterminadas. Outro exemplo disso é como os modernos evangélicos utilizam o Livro do Apocalipse como prova do retorno iminente do Senhor. Eles apontam para significados ocultos a respeito de guerras nucleares e ditadores do Médio Oriente como se eles próprios tivessem recebido uma espécie de revelação divina. A verdade é que, como qualquer historiador lhe dirá, todas as gerações, desde que o Apocalipse foi escrito, afirmaram que o fim estava muito próximo. Isso é, em parte, da essência do Evangelho solar cíclico, completamente mal interpretado, como sempre. Todas essas falsas interpretações dificultam a interpretação do código em factos». In Philip Gardiner, Sociedades Secretas, colecção Millenium, Publicações Europa América, 2008, ISBN 978-972-105-876-7.

Cortesia de PEAmérica/JDACT

No 31. Sociedades Secretas. Philip Gardiner. «Na Rússia e na França, as revoluções foram, da mesma forma, criadas por organizações secretas. Isso não significa que toda a tentativa de qualquer sociedade secreta terá resultados»

Maria, a mãe de Deus, ou uma cópia de Ísis
Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) É incrível, mas o mesmo pode ser dito do Islamismo, do Judaísmo, do Budismo e mesmo do comunismo, uma vez que todos começaram como organizações secretas e clandestinas aparentemente contrárias ao Estado. Tal como a sociedade secreta dos nazis na década de 1930, todas as actuais organizações e religiões reconhecidas começaram em segredo e acabaram por tomar o poder, um objectivo do qual zombam os contrários às teorias de conspiração por todo o globo. Permanece o facto de que a história mostra, em cada geração, que as sociedades secretas conquistaram poder e se tornaram Igreja e Estado, como era seu objectivo. Nos dias de hoje, temos sociedades secretas por todo o  mundo, em cada país, todas com os seus próprios objectivos e sendo observadas, como sempre, pelo Estado. Os árabes e alguns cristãos acreditam que os judeus são responsáveis por conspirações mundiais para tomar o controle do planeta. Os drusos e os yezidis na Síria e em outros lugares são vistos como ameaças aos padrões. Os lendários Illuminati são vistos por muitos como uma liga oculta de cavalheiros que, acredita-se, está no coração do poder cristão norte-americano. A comunidade cristã acredita que o terrorismo global é custeado e executado por redes mundiais de organizações islâmicas secretas.
O que a história tem mostrado é que, por fim, essas correntes ocultas e subjacentes acabam por alterar o equilíbrio de poder do mundo. Basta observar o 11 de Setembro e os ataques repugnantes aos Estados Unidos, eles foram perpetrados por organizações clandestinas e mudaram, de facto, o mundo. Outro exemplo foi a revolta norte-americana contra o Império Britânico, apoiada, liderada e inspirada pela sociedade secreta dos maçons. Na Rússia e na França, as revoluções foram, da mesma forma, criadas por organizações secretas. Isso não significa que toda a tentativa de qualquer sociedade secreta terá resultados. A história está marcada por centenas de tais tentativas fracassadas. Outras conseguiram reivindicar o poder apenas por pouco tempo. Outro ponto interessante de se notar, e que está relacionado à nossa compreensão das sociedades secretas, é que muitas das mais célebres cabeças que o mundo já conheceu foram membros de organizações secretas. Platão fora iniciado nos Mistérios de Elêusis e até nos conta, nos seus escritos, como foi sua iniciação. Ele afirmava ter sido colocado numa pirâmide, onde ficou três dias, morreu de forma simbólica, renasceu e então recebeu os segredos dos Mistérios. Não é de admirar que se afirmasse ser a Grande Pirâmide parte e repositório dos Mistérios, uma vez que os nomes que lhe foram atribuídos, Ikhet e Khuti, significavam luz gloriosa ou resplandecente. Então, o que é uma sociedade secreta? É, tão somente um grupo de indivíduos que, ao basear a sua origem nas névoas do tempo ou na dança celestial e solar do Universo cíclico, reúnem-se para efectuar mudanças. Às vezes têm sucesso, às vezes não, mas, na maioria dos casos, promovem algum tipo de mudança na sociedade em geral. Eles possuem, no todo, uma base espiritual, e uma teia importante se estende sobre aqueles que obtiveram êxito. Essa teia é a iluminação, o que deu origem ao nome Os Iluminados. Em 1863, Le Couteulx de Canteleu, ao escrever Les Sectes et Sociétés Secrètes, afirmou:

Todas as sociedades secretas têm origens quase análogas, desde os egípcios até aos Illuminati, e a maioria delas forma uma corrente e dá ensejo ao surgimento de outras.

Uma linguagem secreta
A História é uma mentira. A História é, como disse Justice Holmes, o que os vencedores dizem que é. Tem sido distorcida ao longo de vastos períodos de tempo para se ajustar à ideia que cada geração faz do que é realidade e do que é verdade. Se as sociedades secretas não existissem, a nossa história teria sido totalmente diferente. A história do homem é como um imenso quebra-cabeça. Somente podemos ver o quadro maior quando todas as peças estão dispostas na ordem correcta. O resultado é surpreendente. Veremos um quadro enorme e esclarecedor de como os mistérios do mundo antigo, e do mundo não tão antigo assim, podem ser agora solucionados, desde as pedras erectas megalíticas, o Santo Graal e a alquimia até a verdade por trás da religião e dos actuais sistemas políticos. A história das sociedades secretas esconde a verdadeira história da humanidade. Da mesma forma pela qual a moderna pesquisa genética nos mostra há quão pouco tempo estamos interligados como raça humana, as pesquisas e conclusões subsequentes apresentadas neste livro revelarão como nossos próprios sistemas políticos e de crenças religiosas vêm da mesma fonte. Afinal, não há nada novo sob o sol. Novos sistemas religiosos são apenas antigas religiões renovadas, com nomes e cenários diferentes, mas as crenças fundamentais são as mesmas.
Podemos aprender a partir dessa história e entender os padrões cíclicos do comportamento humano, o que nos ajudará a prever o futuro com mais facilidade, ou ao menos é o que nos dizem. Observaremos a existência da vida e da consciência; estabeleceremos de onde vieram e para onde vão. Abriremos caminho por milénios de mistérios para determinar, com lógica, uma história real baseada em factos e evidências. Veremos se existe mesmo uma conspiração mundial e, em caso afirmativo, aonde ela nos está conduzindo. Devemos estabelecer motivos, procurar novos dados, analisar documentos existentes sob uma nova luz a fim de conseguir uma visão mais ampla de longos períodos de tempo e civilizações e, por fim, confrontar os mistérios da fé. Um dos aspectos mais perturbadores das sociedades secretas vem da compreensão clara de que temos sido enganados por séculos pelos historiadores, um após o outro. Mesmo assim, não podemos perder de vista o facto de que esses profissionais são responsáveis por agrupar e conectar grandes quantidades de informação e apresentar relatos supostamente factuais baseados nos seus próprios sistemas de crença, os quais são influenciados pelo tempo e lugar em que viveram ou vivem». In Philip Gardiner, Sociedades Secretas, colecção Millenium, Publicações Europa América, 2008, ISBN 978-972-105-876-7.

Cortesia de PEAmérica/JDACT

O Papa Negro no 31. Ernesto Mezzabota. «De resto, os pecados que tendes confiado ao tribunal da penitência têm sido sempre tão leves, que na verdade, mesmo para um pobre padre ignorante como eu…»

Cortesia de wikipedia e jdact

O reverendo padre Lefèvre
«(….) Tinha agora a fonte mais escampada, por lhe rarearem os cabelos, e isso fazia com que ela parecesse mais vasta, dando à figura do ex-estudante saboiardo uma expressão de severa majestade, que incutia respeito. Lefèvre saudou Diana com uma ligeira inclinação quando esta ao entrar se curvou profundamente. Perdoai-me, meu padre, disse a viúva, se não vim tão depressa como desejava; mas uma visita de cerimónia… Não foi por causa dessa visita de cerim+onia que perdestes tanto tempo, minha filha, disse o padre, que com um olhar rápido tinha observado o vestido de Diana. Perdestes também alguns instantes para enganar o vosso pai espiritual. Eu!, exclamou Diana, cheia de confusão. Sim, vós…, receastes que eu achasse demasiado mundano o vestuário com que recebestes o príncipe Henrique, e mudastes de vestido. . . como se a vista de um sacerdote pudesse ser perturbada pelo que desperta a admiração e os desejos dos outros homens. Em outra qualquer ocasião a senhora de Brezé ficaria maravilhada por ver que um estranho assim adivinhava os seus mais íntimos pensamentos; mas o padre Lefèvre já por vezes lhe dera tais provas da sua omnisciência, que a condessa já de nada se espantava.
Inclinou a fronte, que passado um momento, ergueu. Então cometi um pecado?, perguntou ela. Pecado? Não; além de que, bem sabeis, minha filha, que nós procedemos com brandura e circunspecção, antes de considerarmos pecaminoso um acto qualquer. Entretanto, tivestes um trabalho inútil, o que é muito para sentir, dada a importância da vossa missão. Mas não falemos mais disso… Viestes para vos confessardes? Sim, meu padre, disse Diana. Preciso de encontrar nas palavras e nos conselhos de Vossa Paternidade um conforto às dúvidas, que me amarguram a vida. Supliquei-vos que fósseis o meu director espiritual, porque a vossa fama de piedade, de saber, de austeridade… Obrigado, minha filha. A Companhia de Jesus foi instituída há poucos anos, mas o Senhor abençoou os nossos esforços, e hoje já dirigimos a consciência dos mais ilustres personagens católicos. De resto, os pecados que tendes confiado ao tribunal da penitência têm sido sempre tão leves, que na verdade, mesmo para um pobre padre ignorante como eu, e o frade inclinou-se com orgulhosa modéstia, não é difícil tarefa manter-vos sempre no caminho da salvação. Diana parecia hesitar.
Meu padre, disse ela afinal, tenho de fazer-vos confissão de algumas faltas mais graves; mas primeiro desejava saber…, se é certo…, como se diz... Eu concluo a vossa frase, filha. Desejais saber se é certo, como se diz, que os padres da Companhia de Jesus têm para com os pecadores uma indulgência muito superior à que costumam ter os outros confessores; se é verdade que eles têm os meios de diminuir aos olhos dos pecadores a gravidade das suas faltas, e de reconciliar com Deus, sem sacrifícios…. É isto que desejais saber minha filha? É, meu padre..., ou pelo menos alguma cousa parecida. Pois bem, ficai então sabendo que esta nossa indulgência que os descrentes nos censuram como uma culpa gravíssima, é verdadeira. Diana fez um gesto de espanto. Oh! Entendamo-nos!, disse com o seu frio sorriso o padre Lefèvre, nós somos tão severos como os outros, quando trata de culpas cometidas com pura maldade e só com a intenção de fazer mal; mas, quando julgamos os pecados, sabemos distinguir o elemento mau da intenção, das circunstâncias e dos impulsos exteriores; e quanto mais fortes são estes, tanto mais benévolos somos em perdoar a queda.
Não vos compreendo bem, meu padre, disse a jovem viúva, tornando-se pensativa. Eu vos apresento um exemplo, disse o jesuíta, envolvendo num olhar perscrutador toda a pessoa da condessa. Suponhamos que uma jovem, vendo passar um príncipe belo, valoroso galante, lhe corre ao encontro e se lhe lança aos pés, oferecendo-se o corpo; essa tal seria uma mulher perdida, uma cortesã dissoluta, uma condenada às penas eternas, que sofrem os que pecam por luxúria. E então ?..., perguntou Diana em grande ânsia. Mas suponhamos agora que aquele príncipe, tanto mais pronto a irar-se, quanto mais poderoso, tinha resolvido fazer morrer o pai daquela jovem. Suponhamos que ela resgatou, à custa da própria honra, a vida de seu pai, e nesse caso converteu-se ela numa Judite, transformou-se numa heroína. Padre! Padre! Que dizeis!, exclamou a condessa. Porventura conheceríeis vós alguma jovem, alguma mulher que se achasse nestas circunstâncias?, perguntou com absoluta tranquilidade o padre Lefèvre. Diana, completamente abatida, deixou pender os braços. Eles sabem tudo; murmurou, sabem tudo, e eu, como louca, quero competir com eles… Com estes aliados serei tudo, sem eles não serei nada… Oh! É preciso que eu me decida! E resolutamente, voltando-se para o jesuíta, disse-lhe: meu padre, tende a bondade de me ouvir de confissão. Estou pronto, minha filha, respondeu o jesuíta, disfarçando um sorriso de triunfo, que lhe despontava nos lábios. Diana sentou-se num escabelo forrado de veludo, e o sacerdote numa cadeira. Meu padre, já sabeis que sou filha do conde de Saint-Vallier, o nobre fidalgo, que auxiliou a fuga do duque de Bourbon, e que por tal facto foi condenado à morte pelo rei Francisco I. Nem os rogos dos amigos, nem as súplicas dos parentes, conseguiram obter para o condenado a clemência do rei. Então, eu, enchendo-me de coragem, corri à corte e lancei-me aos pés do soberano. Foi uma imprudência da minha parte, não é assim, meu padre? Era esse o vosso dever de filha, respondeu o jesuíta, impassível. Continuai. O rei recebeu-me afectuosamente, e quase com respeito: ordenou que se suspendesse por um dia a execução, que estava marcada para o dia seguinte. Quando eu me erguia do chão, onde me tinha prostrado para lhe fazer aquele pedido, o rei murmurou-me ao ouvido: esta noite…, conceder-te-ei completamente..., o perdão de teu pai. Eu quis protestar, quis resistir, mas o soberano disse-me com altiva frieza: dize que não, e a cabeça do conde de Saint-Vallier rolará do patíbulo na praça de Greve». In Ernesto Mezzabota, O Papa Negro, 1947, tradução de Adolfo Portela, Brasil, Exilado dos Livros, Epub, 2001, ISBN 858-671-001-6.

Cortesia de Wikipedia/JDACT

No 31. O Papa Negro. Ernesto Mezzabota. «Como os grandes comediantes, Diana tinha expressão de teatro e uma expressão verdadeira, e esta era a mais repugnante e odiosa que se podia imaginar!»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(….) Henrique pareceu-lhe ver tremer uma lágrima nos olhos da condessa, tão cruelmente e indirectamente ofendida, e louco, alucinado, caiu-lhe aos pés. Oh! Perdoai-me, Diana!..., exclamou ele extremamente agitado, perdoai-me, porque o meu amor é tamanho que decerto me perturba a razão! Mas ao ver-vos tão bela e encantadora, parece-me impossível que haja alguém que se não apaixone por vós, e que não empregue todos os meios para que vós aceiteis o seu amor… Não me desprezeis, Diana, porque senão, à fé de Valois!..., cometo uma loucura!... E o mancebo, em cujo cérebro se debatiam as mais delicadas fantasias cavalheirescas com os grosseiros costumes das caçadas e dos quartéis, prostrou-se de novo aos pés da condessa. Esta, como que absorvida num pensamento mais relevante, não reparava no mancebo, e deixava que este lhe apertasse a mão com apaixonado ardor. E contudo, murmurou a condessa, ao cabo de um breve silêncio, e contudo, seria todo o meu sonho ser a inspiradora de um jovem, valente, poderoso…, guiá-lo no caminho da glória…, fazer dele um grande príncipe, um herói…
Oh! Diana, exclamou Henrique, correspondei ao meu amor, e fareis de mim o que quiserdes..., e eu considerar-vos-ei como a salvadora da casa de França. Silêncio! Erguei-vos!, respondeu a condessa, que viu que era tempo de pôr termo àquela cena. Vem aí algum dos meus criados. Com efeito, naquele momento batiam à porta do salão e uma aia, tendo pedido licença, entrou e inclinou-se, dizendo à condessa: senhora, o reverendo padre Lefèvre chegou agora para a conferência espiritual do costume. Que o reverendo padre tenha a bondade de passar ao oratório… Monsenhor, perdoai-me se vos deixo; vou falar com o senhor de todos os tronos, vou confessar-me a um ministro de Deus. Sois uma santa!, exclamou o príncipe, depondo na bela mão da gentil dama um beijo apaixonado. A condessa deu-lhe em troca um sorriso cheio de amor e de tristeza; depois, tendo acompanhado o príncipe até à porta, como competia à hierarquia do seu real adorador, dirigiu-se para o oratório, onde a esperava o reverendo padre Lefèvre. Se Henrique a tivesse visto naquele momento, é provável que a sua paixão se convertesse em horror. A fisionomia daquela mulher brilhava de uma alegria tão malévola, nos seus lábios pairava um ar de desprezo tão profundo, que a beleza ideal da inconsolável viúva desaparecia, dando-lhe ao rosto uma expressão sinistra em que se reflectiam as mais tristes paixões. Como os grandes comediantes, Diana tinha expressão de teatro e uma expressão verdadeira, e esta era a mais repugnante e odiosa que se podia imaginar!
                   
O reverendo padre Lefèvre
Ao passar da sala onde recebera o príncipe para o oratório onde a esperava o jesuíta, Diana lançara sobre os ombros uma capa, que cobria todas as cândidas belezas, cuja vista acendera tamanho fogo de desejos no coração do príncipe Henrique. A sereia bem compreendia que os meios de influir sobre um mancebo inexperiente e inflamável deviam ser diferentes dos que precisava empregar para ser bem-vista por um sombrio e austero frade. Por isso, quando entrou no oratório, Diana levava um vestido muito simples, e apresentou-se de fronte serena, com o olhar franco e tranquilo de quem não tem nada que se lhe lance em rosto. O padre Lefèvre pouco tinha mudado desde aquele dia em que o vimos entre os cavaleiros templários tomar o partido de Inácio de Loiola, e inscrever-se com os outros cinco companheiros na nova instituição, proclamada por Inácio sob o nome de Companhia de Jesus. Era sempre o mesmo tipo de montanhês, de elevada estatura, de porte austero, magro, de feições e formas angulosas. Conservava-se ordinariamente de olhos baixos, mas era fácil perceber, quando erguia o olhar, que a humildade monástica não tinha apagado neles o lampejo de orgulho». In Ernesto Mezzabota, O Papa Negro, 1947, tradução de Adolfo Portela, Brasil, Exilado dos Livros, Epub, 2001, ISBN 858-671-001-6.

Cortesia de Wikipedia/JDACT

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Histórias íntimas. Mary del Priore. «Nas classes populares, a privacidade era um luxo que ninguém tinha. Dormia-se em redes, esteiras ou em raríssimos catres compartilhados por muitos membros da família. Os cómodos serviam para tudo…»

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E Depois, o Inferno
«(…) Ao ver que fora roubado do seu, trazido com dificuldade na caravela que o levara da cidade do Porto para Pernambuco, deu de dizer palavras de cólera e que o Diabo o levasse de seu corpo, numa explosão de rara fúria. Conclusão? Foi denunciado à Inquisição (maldita) por blasfémia. Embora longe da higienização de nossos dias, certa sensibilidade ao cheiro do corpo ia-se instalando. Os processos de divórcio apresentados à Igreja Católica revelam traços da intolerância de certos cônjuges em função do odor. O mau cheiro impedia as suas relações sexuais. Em São Paulo, na segunda metade do século XVIII, por exemplo, Ana Luísa Meneses acusava o cônjuge de pitar tabaco de fumo, que lhe conferia um terrível hálito que se faz insuportável a quem dele participa. E Maria Leite Conceição reclamava dos pés e pernas inchadas do seu, das quais exalava um mau cheiro insuportável. Como se vê, o embate conjugal não passava longe de alguns critérios de sensibilidade feminina.
E onde se exerciam os rituais de intimidade? Um viajante inglês responde: as casas têm em geral três ou quatro andares. Internamente, essas residências são muito mal mobiliadas, ainda que muitas delas tenham quartos adornados com bonitas pinturas. As moradas até podiam ser belas, mas o seu interior raramente era limpo. Os aposentos, por vezes, eram varridos com uma espécie de vassoura feita com bambu. Água no chão? Nunca. As paredes das casas, raramente pintadas uma segunda vez depois da caiação original, tornavam-se amarelas. Os cubículos dos quartos quase nunca eram abertos à acção purificadora do ar livre, nem tampouco expostas as camas, embora húmidas de suor. A fim de tornar os quartos toleráveis e deles expulsar os miasmas de que se acham penetrados, costumam-se queimar substâncias odoríferas logo antes da hora de se recolher. Tais odores também mantinham afastados, por curto espaço de tempo, os atacantes invisíveis: mosquitos, baratas, percevejos e outras imundícies. Os detritos só eram removidos uma vez por semana. Os penicos estavam em toda a parte e seu conteúdo, sempre fresco, era jogado nas ruas e praias. Decididamente, não era esse o ambiente ideal para encontros eróticos, como os concebemos hoje.
Nas classes populares, a privacidade era um luxo que ninguém tinha. Dormia-se em redes, esteiras ou em raríssimos catres compartilhados por muitos membros da família. Os cómodos serviam para tudo: ali recebiam-se os amigos, realizavam-se os trabalhos manuais, rezava-se, cozinhava-se e dormia-se. A precariedade não dava espaço para o leito conjugal, essa encruzilhada do sono, do amor e da morte. Entre os poderosos, a multiplicação de quartos nas residências não significava garantia de privacidade. Todos davam para o mesmo corredor e raramente tinham janelas. Ouvidos indiscretos estavam em toda a parte. Frestas nas paredes permitiam espiar. Chaves eram artefactos caríssimos e as portas, portanto, não se trancavam. Na alcova podia haver uma cama coberta por mosquiteiro, colchão rijo, travesseiros redondos e chumaços, e excelentes lençóis. Elemento de ostentação nas casas ricas, a cama traduzia um nível de vida: a conquista do tempo e da liberdade. Mas, para suas intimidades, os casais sentiam-se mais à vontade pelos matos, nas praias, nos campos, na relva. Longe dos olhos e ouvidos dos outros.
Nessa época, na Europa, as camas com baldaquino, com as cortinas fechadas, ofereciam a possibilidade de isolamento. Aqui, só chegaram mais tarde, aparecendo nos ex-votos de madeira dos finais do século XVIII. Respeitava-se a regra: ao trocar de roupa, ninguém olhava. Na Europa, graças à criação da sala de banhos e do boudoir, reuniram-se as condições de exercício de uma nova forma de erotismo. Entre nós, porém, o penico vigorou até os fins do século XIX, empestando o ambiente. Quanto ao asseio e às regras de civilidade, contudo, havia muito que aprender. Os moradores da Colónia ainda estavam muito próximos de comportamentos julgados selvagens na Europa. Lá, desde a Idade Moderna, já se desaconselhava arrotar ou flatar em público. Na época das reformas religiosas, no século XVI, nos vários manuais de civilidade publicados graças ao aparecimento da imprensa, se recomendava apertar os glúteos com força, não deixando escapar nada de mau gosto. Ou que os ruídos fossem abafados pelos de uma falsa tosse. Às senhoras que sofriam de gases, era sugerido ter sempre cachorrinhos como companhia. Aos pobres quadrúpedes eram atribuídos os maus cheiros ou os ruídos anormais.
Entre nós, os flatos eram combatidos, segundo o cirurgião barbeiro Luís Gomes Ferreira, actuante em Minas Gerais, em 1735, com copinhos ou dedais de aguardente. Aqui, os limites para suportar o mau cheiro corporal não só ficavam evidentes no quotidiano, como eram tolerados. O melhor narrador sobre o tema é Gregório Matos. A sua obra poética está recheada de factos do dia a dia. Muitos de seus poemas foram oferecidos, por exemplo: a uma mulher que se bor… na igreja em quinta-feira de Endoenças; a uma mulher corpulenta que em noite de Natal soltou um gas para chegar ao confessionário, etc. O tímido desgosto frente à nudez e ao mau cheiro reforçava, contudo, as normas culturais do início dos tempos modernos. Apesar de a sujeira estar em toda parte, as pessoas apontavam-na com o dedo e começavam a se incomodar. Os maus modos também começaram a ser notados. Sobretudo, defecar e urinar em público, expondo as partes íntimas, chocava. Que o diga John Barrow, que, em seu relato A Voyage to Conchinchina in the Years of 1792 and 1793, registou o hábito das mulheres de urinar descaradamente nas ruas do Rio. O certo era fazê-lo contra um muro, cobrindo o sexo, na tentativa de proteger-se dos olhares alheios. Se a intimidade não era regra para todos, cobrir o sexo era lei. O Renascimento, apesar de o seu amor pela beleza física, jamais discutiu a questão da nudez. Deu-lhe apenas outro sentido». In Mary del Priore, Histórias íntimas, Sexualidade e erotismo na história do Brasil, Editora Planeta do Brasil, São Paulo, CDD-302-309-81, 2011, ISBN 978-857-665-608-1.

Cortesia de EPlaneta/JDACT

Histórias íntimas. Mary del Priore. «Lavar a carne é desgraça, em toda a parte do Norte, porque diz, que dessa sorte, perde a carne o sal, a graça»

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E Depois, o Inferno
«(…) Bem diferente também era a noção de pudor que as viagens ultramarinas revelaram aos europeus. Singrando mares e chegando a terras que lhes eram desconhecidas, encontraram povos que tinham outras noções quanto à nudez, às funções corporais ou à sexualidade. Aos olhos dos europeus, os selvagens não tinham sido ungidos pela Graça divina. E seria considerado ofensivo colocar em dúvida os comportamentos cristãos para seguir o exemplo de índios. Mas a diferença não estava só entre cristãos e bárbaros. Mesmo na Europa, pudor de sentimentos e pudor corporal tinham significados diferentes entre os diferentes grupos: ricos ou pobres, homens ou mulheres. O banho, por exemplo. Ele gozou de grande prestígio entre as civilizações antigas e estava associado ao prazer: vide as termas romanas. Durante o Império, os banhos públicos multiplicaram-se e muitos se tornaram locais de prostituição. Eram os chamados banhos bordéis, onde as filhas do banho ofereciam os seus serviços. Os primeiros cristãos, indignados com a má frequência, consideravam que uma mulher que fosse aos banhos poderia ser repudiada. O código Justiniano deu respaldo à acção. Concílio após concílio, tentava-se acabar com eles. Proibidos aos religiosos, sobretudo quando jovens, abster-se de banho tornou-se sinónimo de santidade. Santa Agnes privou-se deles toda a vida. Ordens monásticas os proibiam aos seus monges. O baptismo cristão, antes uma cerimónia comunitária de imersão, transformou-se numa simples aspersão.
Contudo, é importante lembrar que, apesar dos prazeres oferecidos pela água, gestos de pudor estavam sempre presentes. Durante a Idade Média, homens e mulheres não se banhavam juntos, salvo nos prostíbulos. Ambos cobriam as partes pudendas. Eles, com um tipo de calção. Elas, com um vestido fino e comprido. Regulamentos austeros coibiam horários e orientavam o uso das estufas. Era terminantemente proibido, por exemplo, que homens entrassem nos banhos femininos e vice-versa. Não faltam ilustrações, em miniaturas e gravuras, sobre o voyeurismo, capaz de quebrar as severas regras que controlavam tais espaços. Segundo alguns autores, enquanto nossos índios davam exemplo de higiene, banhando-se nos rios, os europeus eram perseguidos pelas leis das reformas católica e protestante que lhes interditavam nadar nus. A visão de rapazes dentro dos rios, mergulhando ou nadando em trajes de Adão, causava escândalo, quando não penalidades e multas. A nudez e a poligamia dos índios ajudavam a demonizar a sua imagem. Considerados não civilizados, a tentativa dos jesuítas em cobri-los resultou, muitas vezes, em situações cómicas, como a relatada por padre Anchieta: os índios da terra de ordinário andam nus e quando muito vestem alguma roupa de algodão ou de pano baixo e nisto usam de primores a seu modo, porque um dia saem com gorro, carapuça ou chapéu na cabeça e o mais nu; outro dia saem com os seus sapatos ou botas e o mais nu [...] e vão passear somente com o gorro na cabeça sem outra roupa e lhes parece que vão assim mui galantes.
A discussão sobre a nudez dos selvagens alimentava outra: o que teria vindo antes: a roupa ou o pudor? Adão que o dissesse... Teve que se cobrir com uma folha de parreira, assim que foi expulso do paraíso. Eis porque os missionários impunham roupas aos índios. Inspirados pelas descobertas, vários tratados sobre indumentária e costumes foram então escritos na Europa. A ideia era a de que se cobrissem os nus, retirando-lhes as armas da sedução. Mas que, também, se atacasse os que se cobriam com tecidos caros, perucas pomposas e maquilhagem, sinónimo de luxúria e vaidade. Daí a importância da modéstia como sinónimo de pudor.
Hábitos de higiene, hoje associados ao prazer físico, eram inexistentes. Entre os habitantes da América portuguesa, a sujeira esteve mais presente do que a limpeza. E isso, durante séculos. O viajante inglês John Luccock, no início do século XIX, ainda afirmava que as abluções frequentes não eram nada apreciadas pelos homens. Os pés são geralmente a parte mais limpa das pessoas. Os rostos, mãos, braços, peitos e pernas que, todos eles andam muito expostos em ambos os sexos, raramente recebem a bênção de uma lavagem [...] os cubículos em que se acham os leitos raramente são abertos à influência purificadora do ar livre, nem tampouco expostas ao sol as camas, embora húmidas de suor. A sensibilidade olfactiva dos colonos estava longe daquela que já se instalara na Europa, que tinha a preocupação de oxigenar os ares e de banir definitivamente o mau cheiro. Tal movimento suscitava a intolerância em relação aos odores do corpo, que entre nós ainda eram plenamente admitidos. Teóricos já advertiam para os riscos de a gordura tapar os poros, retendo humores maléficos e imundícies, das quais a pele já estava carregada. A película nauseabunda, que os antigos acreditavam funcionar como um verniz protector contra doenças, na verdade bloqueava as trocas aéreas necessárias ao organismo.
Essa mudança provocou uma passagem da natureza ao artifício. Os perfumes que remetiam aos odores animais, âmbar, almíscar, saíram de moda por sua violência. Antes, as mulheres os utilizavam, não para mascarar o seu cheiro, mas para sublinhá-lo. Havia nele um papel sexual que acentuava a ligação entre as partes íntimas e o odor. Na Europa civilizada, a emergência de uma nova forma de pudor, porém, ameaçava essa tradição, substituindo-a por exalações delicadas à base de lavanda e rosas. O bidet foi então introduzido na França, tornando-se o auxiliar do prazer. As abluções femininas se revestiam de erotismo. Os talcos perfumados e outros pós, à base de íris, flor de laranjeira e canela, cobriam as partes íntimas. Um simples perfume aguçava a consciência de si, aumentando o espaço entre o próprio cheiro e o dos outros, a multidão fedorenta. O odor forte, considerado um arcaísmo, se tornou coisa de roceiras e prostitutas velhas. Entre nós, o âmbito da higiene íntima feminina, de difícil pesquisa histórica, foi brevemente abordado pelo poeta baiano Gregório de Matos. No fim do século XVII, ele escreveu sobre a carga erótica do cheiro de mulher. Sim, cheiros íntimos agradavam: o do almíscar era um deles. O poeta criticou uma mulher que seduzira por lavar a vagina antes do acto sexual, maldizendo as que queriam ser lavandeiras do seu c… Certa carga de erotismo dependia do equilíbrio entre odor e abluções, embora houvesse muitos, como Gregório Matos, o Boca do Inferno, que preferissem o sexo feminino recendendo a olha e sabendo o sainete. Lavai-vos, minha Babu, cada vez que vós quiseres, cantava o poeta, já que aqui são as mulheres lavandeiras do seu c…

Lavai-vos quando o sujeis.
E porque vos fique o ensaio
Depois de fo… lavai-o
Mas antes não o laveis.

E reclamava:

Lavar a carne é desgraça
Em toda a parte do Norte
Porque diz, que dessa sorte
Perde a carne o sal, a graça;
E se vós por essa traça
Lhe tirais o passarete
O sal, a graça, o cheirete,
Em pouco a dúvida topa
Se me quereis dar a sopa
Dai-ma com todo o sainete.

O cheiro de almíscar ainda agradava por estes lados do Atlântico, onde o bidet só aportou no século XIX. Mas lavar o corpo, com quê? Um pedaço de sabão era bem inestimável. Que o diga certo Baltasar Dias, em 1618». In Mary del Priore, Histórias íntimas, Sexualidade e erotismo na história do Brasil, Editora Planeta do Brasil, São Paulo, CDD-302-309-81, 2011, ISBN 978-857-665-608-1.

Cortesia de EPlaneta/JDACT

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Aos primeiros vinham-nos buscar, ao fim das aulas, as serviçais das senhoras suas mães e, às vezes, as senhoras suas mães em pessoa, todas perfumadas e ataviadas de veludos e de sedas»

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O Medalhão de Ouro
«(…) Nesse dia o fradelo havia-nos lido o Sermão da Montanha, do Evangelho de São Mateus, e comentava uma a uma as oito bem-aventuranças. Na fase da fixação memorial, obrigava-nos a repetir em coro, monocordicamente, as oito bem-aventuranças, numa cantilena enfadonha, fastienta, até à saciedade, ao sono, que nós prosseguíamos olhando distraidamente ou para o vitral e o sol que por ele coava, ou para a porta que deitava para o pátio, na ânsia de irmos brincar e correr: Bem-aventurados os mansos, porque hão-de possuir a terra; Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados; Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus. Eu beliscava o companheiro do lado. Irmão, este menino beliscou-me. Bem-aventurados os que sofrem perseguição pela justiça, porque deles é o reino dos céus. E enquanto eu fico de castigo, de joelhos, de costas para o vitral, o fradelo manda os outros irem correr lá fora, ao sol, e saí também. Eu viro-me logo de frente para o vitral, sento-me sobre os calcanhares, esquecido de tudo, boca e olhos bem abertos na funda contemplação do deslumbramento da luz, da polifonia das cores, da transfiguração sobrenatural das formas. Não decorre muito tempo desde que estou neste enlevo quando ouço passos e entra na sacristia uma mulher nova que denota uma certa inquietação. Se vira frei Andrade. Fora até lá fora com os outros, respondia. E eu não ia? Estava a rezar? Não, estava era de castigo.
Oh, meu pequenino!, e pega-me ao colo, sentando-se no banco. Como me chamava? Os seus olhos sorriem-me, os seus lábios, quentes, macios, beijam-me, mas são os seus seios estalando rijos e pejados, lácteos, no corpinho leve, que me atraem numa atracção indizível e me provocam na boca uma insólita salivação. João. João quê? Nunca senão naquele momento havia reparado que era só João. Os outros podiam dizer que eram Fulanos de qualquer coisa, Sicranos de tal, filhos de algo. João, respondo eu, encolhendo os ombros. Ela compreendia. Um órfão certamente. E que fizera o Joãozinho para merecer castigo ? Belisquei o meu companheiro. Seu maroto!, exclama sorrindo-me e endireitando-me os caracóis na cabeça. Um menino tão bonito! Prometesse-lhe que não tornava a fazer aquilo, prometia?, e encosta-me maternalmente a cabeça ao peito, enquanto me afaga. Prometo, respondo, deixando-me estar encostado, fechando os olhos por momentos, sentindo em todo o meu ser um indefinido cansaço que vem de trás, doutro tempo, não sei de onde, e um estranho bem-estar que deve certamente de ser o que sentem os anjos no Céu. Lindo menino!, diz ela, dando-me um beijo. Depois, pondo-me no chão: se lhe ia pelo fradelo? Precisava muito de falar com ele. Vou pôr-me a caminho quando entra o fradelo: que estás a fazer?, grita zangado. Não te disse para ficares de... Fui eu que lhe disse que vos fosse chamar, irmão-interrompeu ela. A mãe do Berto acabara de falecer. Tinha de o levar consigo... O Senhor tivesse a sua alma em descanso! Seguisse-o. Ia chamar o menino.
Amém!, diz ela e vai seguir o fradelo mas eu toco-lhe a mão, olho-a a sorrir. Ela inclina-se, dá-me um beijo e sussurra-me ao ouvido: não te esqueças do que prometeste. Não me esqueço, respondo eu, sussurrando por minha vez, num perfeito estado de beatitude. Ela saiu. Nunca mais a vi, mas também nunca mais me esqueci do que lhe havia prometido e passei a beliscar os outros companheiros... menos aquele. Durante muito tempo também não tornamos a ver o Berto. Soubemos que esteve gravemente doente com o abalo sofrido pela morte da mãe. Deixara de comer, chorava lágrimas a fio constantemente, não dormia e definhava de tal sorte que era só ossos. Mais se acentuou então no meu espírito o reparo que já havia tempos fizera de que aquele grupo de catecúmenos era constituído por duas espécies de rapazinhos, os externos e os internos. Aos primeiros vinham-nos buscar, ao fim das aulas, as serviçais das senhoras suas mães e, às vezes, as senhoras suas mães em pessoa, todas perfumadas e ataviadas de veludos e de sedas, tecidos preciosos cujo uso, por ordenação do tempo de el-rei D. João II, só não era defeso a donas e senhores muito ilustres. Quanto a nós outros, recolhíamos ao internato, em regime de completo silêncio, as horas todas distribuídas por tarefas impostas em calendário rígido, ordenado a toque de sineta, com intermináveis rezas e cantos na capela, severa disciplina na grande sala de estudo e no refeitório, até acabar o dia no recolher, exaustos, ao dormitório de brancas camas alinhadas, homogéneas, frias, no desvão de umas compridas e desconfortáveis águas-furtadas. Nessa noite, mal me deitei, adormeci e desatei a sonhar. Eram imagens dispersas, dilaceradas, partidas, que apareciam e se transformavam, iam e vinham, nítidas, esbatidas ou disformes, mas sempre acabavam por vir dar a um tema central: uma descomunal pia de água benta encimada por um imenso vitral, cuja figura principal, em pé, esguia, a toda a altura, era Nossa Senhora. Segurava ao colo o Menino Jesus. Eu estava sentado nos calcanhares, em cima de uma nuvem que não sei se fazia parte do vitral se não, e aos meus olhos a figura da Virgem Maria começou a sorrir-me, com as feições bonitas que eu vira na sacristia àquela mulher jovem que, por via da morte de mãe de alguém indefinido, me pegara ao colo... O Menino Jesus era eu, ela anelava-me com os seus dedos suaves a madeixa dos cabelos e eu, os pés descalços e rechonchudos a rebulir irrequietos e rosados, tomava consoladamente a mamada de um dos seus rotundos e fecundos seios. Interpunha-se depois a imagem de Berto, a chorar, levado pela mão de uma figura esfumada, e logo a desvanecer-se e com ela a esvair-se o sonho todo. Quando de manhã a sineta tocou, lavei-me como um sonâmbulo, vesti-me como um sonâmbulo, fiz a cama como um sonâmbulo e com os outros dirigi-me para a capela como um sonâmbulo, de tal modo o que se passara na véspera e o que eu sonhara ocupavam o meu espírito». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Era uma das minhas muitas fraquezas essa do apego aos livros, mas acontecia que, quando eu saía a calcorrear Lisboa, sempre acudia alguém, o abade, o bibliotecário…»

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O Medalhão de Ouro
«(…) Capuz atirado para a nuca, segurando na mão uma cana que não nos metia medo, o caracol ruivo na testa a atrair-nos a atenção, ensinava-nos a doutrina. Nessa época, estaríamos ai por volta de 1534, ainda não tinha reunido o Concilio de Trento para sair a terreiro contra o protestantismo que campeava na Europa. Ainda não havia surgido a nova formulação da doutrina, a remodelação dos métodos de ensinar que haviam de esclarecer os espíritos perturbados e incautos em face da heresia que alastrava. Não tardaria, com efeito, em resultado dessa esforçada e ingente mobilização dos mais doutos cérebros da Cristandade, a ver-se chegar aos prelos das nações católicas, em extraordinária profusão, as teses, os sermões, as homilias, os novos missais, os compêndios e esses pequenos livros, maravilha de síntese de toda a doutrina, que eram os catecismos. Bem me lembro de ver e folhear essas novidades nas bancas dos livreiros nas ruas buliçosas de Roma, de Veneza, de Trento, por toda a Itália. Grande impulsionador desse esforço de publicar os resultados do concílio, para os pôr em acção, foi o arcebispo de Milão, Carlos Borromeu, ele próprio autor de um catecismo que veio a lume em 1566, e no nosso Portugal recordo o zelo incansável de frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo e senhor de Braga, primaz das Espanhas, que, entre outras obras de cristianíssima doutrina, publicou em 1564 naquela cidade, por mandado de el-rei e em casa do tipógrafo régio António Mariz, um catecismo ou doutrina cristã e práticas espirituais, para uso não só dos sacerdotes que têm cargo de almas nas igrejas de sua obrigação, mas ainda dos mestrados de Santiago e de Avis, obra que foi depois várias vezes reeditada em Coimbra e em Lisboa. Eu e os livros entendemo-nos. Somos irmãos de solidão. Falo com eles e eles comigo.
Chamam-me. Uma ocasião entrei em casa do imprimidor Marcos Borges, que tem oficina ali por detrás da Ermidinha de Nossa Senhora da Palma, e de uma estante em que se enfileirava com outros ele chamou por mim, como se me puxasse pela manga, quando eu folheava outras obras: então não o via? O seu autor era meu conhecido e amigo, o arcebispo de Braga ... Também aí me chamou a atenção com insistência a Cartinha para Ensinar a Ler, com os Mistérios de Nossa Santa Fé, de um outro amigo meu, douto teólogo, frei João Soares, bispo de Coimbra e conde de Arganil. Obra maneirinha e leve, que se pode trazer na algibeira ou na manga do hábito e não como essas outras pesadonas, grossas, incómodas, que encontramos nas bibliotecas acorrentadas às estantes, pobres livros agrilhoados!... Outro catecismo, agora de Nossa Santidade o papa Pio V, pôs-se-me aos gritos a chamar por mim ao passar eu um dia pela Rua dos Espingardeiros, em frente da casa do livreiro João Lopes. É uma obrinha que por mandado do Ilustríssimo e Reverendíssimo Metropolitano arcebispo de Lisboa, o senhor Miguel Castro, foi tresladada do latim em linguagem pelo doutor em Teologia padre Cristóvão Matos e publicada na oficina de António Álvares, impressor do arcebispo.
Era uma das minhas muitas fraquezas essa do apego aos livros, mas acontecia que, quando eu saía a calcorrear Lisboa, sempre acudia alguém, o abade, o bibliotecário, a incumbirem-me de adquirir livros que iam enriquecer a livraria do convento. Agora sei que não era ocasionalmente. A doutrina, portanto, naquela época da minha meninice, era-nos ministrada à maneira velha e tradicional, cujas bases e orientação radicavam em obras muito antigas, como o tratado de nosso padre Santo Agostinho, De Catechisandis rudibus, os Discursos Catequísticos, de São Cirilo, a Oração Catequética, de São Gregório de Nissa. Muito da antiga tradição oral dos ensinamentos persistia, embora e já cada vez mais apoiada em textos sagrados que o leitor nos fazia ouvir e comentava em escólios conceituosos. Eram crescentemente evidentes os frutos que se estavam tirando dessa nova e maravilhosa invenção que é a arte da impressão de livros. Dizem alguns que é pau de dois bicos: os inimigos da nossa santa religião também escrevem e não desfalecem de publicar as suas ideias aleivosas e de assaltar a fortaleza da Fé! Bem as vi, nas terras por que passei, essas obras que saíram da pena de um Lutero, de um Zwínglio, de um Calvino e de outros autores». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Na parede seguinte um arcaz grande, tachonado, um banco corrido e por cima uma janela gótica, geminada, com vitral. No lado oposto, logo à esquerda de quem entra…»

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O Medalhão de Ouro
«(…) Depois de uma breve oração a pedir a Deus a bênção do alimento que íamos tomar, serviam-nos leite e pão que nós consumíamos com grande consolo dos nossos estômagos, mas sem sofreguidão: já havíamos sido muitas vezes admoestados pelos monitores de que o acto de comer deve ter a elevação espiritual bastante para lhe retirar quaisquer resquícios de animalidade, non vivit homo ut manducet, sed Manducat ut vivat. Sempre tenho pensado nesta sentença de Diógenes de Laércio, de que mais tarde, em Veneza, adquiri uma velha edição de 1490 das Vitae et Sententiae. Não me esqueço, até, de um dito do mestre monitor que naquele tempo nos tinha a seu cargo como se fôramos o seu rebanho. Frade muito jovem, de feições brancas e angulosas, queixo proeminente, cabelo ruivo, ondeado, sobre a testa um caracol pendente que constantemente anelava com o polegar e o indicador, e aqueles lábios muito bem recortados, como os de uma estátua grega, que se abriam e fechavam com uma precisão matemática ao pronunciarem, na sua voz encorpada e timbrada, numa dicção perfeita, todas as sílabas das palavras. Sempre nos devíamos levantar da mesa com um pouco de apetite: essa era a regra de ouro da higiene corporal e espiritual. O facto, porém, era que, não obstante estas ideias calarem em mim, não deixava eu de pensar, olhando bem em volta a realidade das coisas, que tudo se processava ao invés. O homem vivia na busca do imediato, do ter e do comer. Só uns quantos, muito poucos, conseguiam desprender-se das urgências da carne e superar, espiritualizar, sublimar os instintos. Nesse aspecto, embora me soubesse muito bem a refeição que tomava, aquele leite denso e suculento, aquele pão perfumado, não me custava nada aceitar a orientação dos meus superiores franciscanos, que tinham como norma a pobreza e o evangélico angariar do estrito pão de cada dia. Acabada a refeição e recitada a oração de acção de graças, dirigíamo-nos para o grande salão de estudo onde nos preparávamos para as aulas, que não tardavam a começar, mal a sineta tocava. Toda a escola, contígua ao convento, era então uma grande colmeia de trabalho. Não havia ninguém desocupado, desde as crianças que nós éramos, uma espécie de viveiro ou seminário, passando pelos mais adiantados, os postulantes, os noviços. Os mestres eram recrutados no convento entre os frades de mais sabedoria e experiência, que lecionavam as disciplinas mais avançadas e especializadas.
As aulas de iniciação eram ministradas pelos irmãos que haviam professado recentemente e revelado propensão para o magistério. Sempre me infundiu um profundo respeito ver os mestres passarem, com seus livros nas mãos ou debaixo do braço, o andar calmo e o semblante sem paixões de quem atingiu a serenidade da sapiência. Ouvi-los falar era para mim motivo de enlevo e os seus ensinamentos penetravam-me no espírito sedento sem admitirem réplica: o que eles diziam era a verdade. Então, eu não sabia ainda o que era a opinião, desconhecia que um mesmo assunto podia ser encarado por ângulos diferentes e nem sempre as ideias das pessoas coincidiam. Quando mais tarde assisti maravilhado a algumas sessões do Concílio de Trento, aprendi que homens tidos como sábios e doutos, os mais doutos e sábios que a Cristandade elegera e enviara àquela cidade italiana, podiam discutir e debater uma questão por prismas diversos e não raro antagónicos. Era este um terreno resvaladiço, diziam-me, que só a muita santidade e isenção desses doutores e a sua inteligência iluminada pelo divino Espírito Santo podiam arrostar, estava eu a entender? A incerteza e pusilanimidade eram armas do anjo das trevas. Assaltavam os menos escudados e ai de quem vacilasse e deixasse entrar no seu coração a semente da dúvida. A escola no entanto, sobretudo nos anos de iniciação, tinha o sacrossanto encargo de formar os espíritos e as almas, lançando os alicerces e as traves-mestra da verdade que havia de levar à santificação, último escopo de toda a ciência humana. Tinha pois de ser normativa e dogmática.
Eu ficava parado a ver passar os mestres e a cismar em que também um dia gostaria de ser sabedor como eles. Isso levava-me a dedicar-me afincadamente ao estudo. É por essa altura que as pessoas que me rodeiam surgem na minha memória com nome próprio, bem identificadas. Recordo-me e estou a ver como se fosse hoje... Porque me ficou essa cena tão gravada na lembrança que ainda agora há qualquer coisa, muito vaga, nas profundezas de mim, que me dói?... Era numa sacristia. Ao longo da parede, engastado nela e em cima de um estrado baixo, corria aquele imenso, comprido e alto móvel, de bela nogueira lustrosa de um castanho rosado e quente, com os seus enormes gavetões onde se guardavam as alfaias do culto e os paramentos, que cheiravam a alecrim e a espicanardo. Na parede seguinte um arcaz grande, tachonado, um banco corrido e por cima uma janela gótica, geminada, com vitral. No lado oposto, logo à esquerda de quem entra, a pia da água benta, concha espalmada de mármore branco, com nervuras e relevos lavrados por fino cinzel, a que a maior parte de nós ainda não chegava senão em bicos dos pés. E nós éramos aqueles pequenos seres que no meio da ampla quadra, sentados em círculo nuns escabelos de madeira, muito rasos, rodeávamos aquele jovem fradelo vestido de grosseiro burel castanho, cingido de corda, que lhe fazia cair em pregas miúdas a sotaina». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Naquele tempo, pois, ao aproximar-me do altar sentia na pele o mistério que dele se evolava, que ele exalava das formas, dos símbolos, das figuras hieráticas dos Ícones…»

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O Medalhão de Ouro
«(…) Rumo inesperado tomam todavia os acontecimentos. Com a aprendizagem do latim, nós, os mais pequenos, começamos a ajudar à missa. Todos os dias calhava a vez a um, enquanto os outros combinavam o fio puríssimo das suas vozes com os cheios e graves dos mais idosos e adiantados, entoando em coro os hinos litúrgicos. Corria o mês de Julho. Um fidalgo da mais alta nobreza, parente de reis, mestre de Santiago e de Avis, que, além de possuir abastados senhorios no Centro do país, era senhor de vastas terras que se estendiam desde Setúbal, onde tinha seus paços, até ao termo de Évora, havia oferecido ao convento um missal novo, obra ultimamente impressa, encadernado a couro, pregueado com broches de prata, assim como de prata eram as suas cantoneiras. Os irmãos franciscanos, na sua simplicidade, habituados a não terem mimos nem atavios, com pouco se contentam, quanto mais com uma dádiva tão preciosa! Era gostoso de ver, até os mais novos notávamos, a alegria com que o presbítero folheava aquelas páginas ainda brancas, ornadas de finíssimas iluminuras coloridas, e lia aqueles caracteres nítidos que cheiravam a tinta fresca e o prazer que também nós, os pequenos ajudantes, sentíamos em pegar nele quando se apresentava a ocasião de haver de mudá-lo do lado da epístola para o do evangelho ou vice-versa. Quanto a mim sentia profunda emoção em ajudar à missa. Estar ali tão perto daquilo que para mim era redobrado mistério!... Mistério era palavra que ouvia todos os dias, na catequese e que muito fundamente me tocava. Não havia também em mim, à minha volta, escuro mistério? O insondável marcou-me pela vida fora, porque depois, desde bem cedo, e com o avançar da idade, aprendi que a religião vive do mistério e que a revelação tem de ser sempre meia revelação. Eu ouvira falar, ou lera algures, dos mistérios de Elétisis, no vasto templo rodeado de ciparissos da deusa Deméter, divindade que representava o volver cíclico das estações do ano. Sabia das iniciações esotéricas da seita pitagórica e dos segredos dos rituais órficos e do inefável simbolismo de Isis, nas margens do Nilo onde, por entre os papiros e as flores de lótus, passeia a suave íbis e esvoaça o falcão e rasteja a cobra-capelo, à luz ardente do sol do deserto, em frente das grandes pirâmides. Lera o livro de Marco Polo que narra os costumes estranhos e as crenças esquisitas dos povos que habitam na grande China. Pessoas que a todo o momento acudiam das índias Orientais contavam os mais inauditos factos relacionados com a fé daquelas nações. Tudo era mistérios, segredos bem guardados. A mais leve indiscrição podia pagar-se com a vida.
Recentemente tenho confirmado este meu sentimento e opinião, com os muitos contactos e conversação havidos com tantas e desvairadas gentes de outras religiões, sobretudo judeus portugueses de cá fugidos e espalhados por terras do Mediterrâneo. A fé hebraica sustenta-se na crença de que o Messias está a chegar. Ele chegou e não o reconheceram nem o aceitaram. Era lógico: perderiam a sua crença nos antigos mistérios, tal o vigor das novidades que Ele veio trazer. Muitos dos meus irmãos franciscanos, quando me ouvem falar assim, dizem que tenho ideias muito ousadas, mas eles bem sabem que elas não passam da verificação de um facto que nada tem a ver com o meu repúdio das ideias e falsos deuses dos pagãos. Vem a colação apenas para notificar que desde muito novo me habituei a sentir como coisa palpável o mistério que impregna e é sustentáculo da religião...
Naquele tempo, pois, ao aproximar-me do altar sentia na pele o mistério que dele se evolava, que ele exalava das formas, dos símbolos, das figuras hieráticas dos Ícones, da talha dourada do retábulo, do baldaquino, da porta do sacrário, do ruído da chave na porta do sacrário, do ouro e lavrado das alfaias do culto, do bordado dos paramentos, do linho alvíssimo das toalhas, do cheiro a cera e a incenso. Realçavam-no o silêncio e a meia obscuridade do templo ou a luz coada por vitrais, o andar vagaroso e concentrado das pessoas, o ciciar das vozes... Sempre que chegava a minha vez de ajudar à missa, fazia-o com uma solene religiosidade, não isenta de certa emoção, o que um dia me levou a quase me desequilibrar a meio dos degraus do altar. Tropecei. O missal, aberto, oscilou na sua estante, algumas laudas abriram-se com o deslocamento de ar que entre elas se insinuara por momentos e uma pequena tira de papel, que talvez estivesse a marcar uma página, soltou-se então, e librando e ondeando foi cair no chão. Recuperado rapidamente o equilíbrio, coloquei o missal sobre o altar, no lado esquerdo, e vim ocupar o meu posto, de pé, enquanto o ministro lia o Evangelho. De novo de joelhos, ao Credo, reparo no papel caído num degrau, ali a meu lado. Apanhei-o, naquele gesto quase automático de quem foi habituado à mais escrupulosa limpeza, a não lançar papéis no chão, e como a continuação do ofício divino exigisse a minha atenção, seguia-se o Ofertório e era preciso apresentar as galhetas ao celebrante, guardei-o num bolso por baixo da sobrepeliz. Após a missa, que era muito cedo, a hora de prima, dirigimo-nos, como sempre, em fila, os mais novos à frente, seguidos dos outros em gradação de estudos e de hierarquia, no mais rigoroso silêncio, ao refeitório». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT