sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Deslumbrante. Madeline Hunter. «Conduziu meu pai à sepultura com a perseguição, lord Sebastian. O senhor e os outros membros do parlamento, que não paravam de falar daquela pólvora»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Audrianna também se agitara. Os acontecimentos e conversas recentes pediam uma explicação. Mencionou um esquema maior, lord Sebastian. O que quis dizer com isso? Não acredito que o seu pai tenha sido culpado de negligência. Não acredito que a pólvora ruim que deixou os soldados indefesos tenha sido um acidente. A resposta dele deixou-a perplexa. Insinuava que o pai dela enviara deliberadamente a pólvora ruim para a frente de combate. Como se atreve?! Não basta que ele tenha sido injustamente, sentido infeliz a ponto de se desesperar? Acusá-lo agora de... Era dele a última verificação da qualidade numa longa linha de verificações. A distribuição nunca se faria sem a assinatura dele. Fosse por descuido ou conspiração, por alguma razão as atenções se voltaram para ele, miss Kelmsleigh. Lamento, mas esta é a verdade. O insulto deixou-a com vontade de bater nele. Limpou o ferimento com mais força enquanto lágrimas de raiva turvavam a visão. Não, não é essa a verdade. Está enganado. O meu pai não teve culpa de absolutamente nada. Subitamente, a mão dele fechou-se sobre a mão dela que limpava. O toque dele sugeria que ela estava machucando mais do que percebia e que, agora, ele apenas a fazia parar. Contudo, o toque firme da mão dele por cima da sua e a aproximação do rosto que permanecia estóico produziu um inesperado surto de intimidade. O desânimo que sentira com as insinuações dele sobre seu pai misturou-se com uma nova surpresa. Compreendeu que ele segurava a sua mão daquela forma para reconfortá-la.
Ninguém fez aquilo antes. Não desde que o escândalo rebentara. Nem a mãe, que ficara tão perturbada, primeiro com a preocupação, depois com o desgosto. Roger, certamente não. Nem sequer Daphne, a prima, que tratara todo o episódio como um livro cuja capa deveria ficar fechada para sempre. Agora aquele homem, a quem só faltara entregar a corda ao seu pai para ele se enforcar, fazia uma pequena tentativa de acalmá-la. Devia repelir o toque dele e ignorar o seu esforço. Devia dizer-lhe que não queria ser consolada, e ainda menos por ele. Em vez disso, ficou sem conseguir mexer-se durante certo tempo. Fechou os olhos e aceitou o gesto humano da preocupação dele, sentindo-a fluir como água cálida no corpo. Permitiu que tocasse o seu coração e acalmasse a agitação que sentia. Ignorou a peculiaridade da origem do reconforto por precisar tão desesperadamente do seu bálsamo. Ele segurou a sua mão e tirou o trapo ensanguentado que segurava. Pegou um pano limpo.
Ajude-me a amarrar isto, por favor, para que eu possa vestir-me para o nosso convidado. Com as mãos trémulas e as dele segurando o pano, ela enrolou o braço. Depois ele colocou-se de pé. De repente, tinha aquele tórax nu à frente do nariz. Uma consciência aguda daquele peito, da textura da pele e da força, desenhada em sombras profundas pela luz do fogo, deixou-a atordoada durante um longo momento. Forçou-se a olhar para cima e olhando a forma como espiava o seu corpo. Sentiu-se muito vermelha e quente. Afastou-se e deu as costas, para que não visse o embaraço. Não havia nada censurável na maneira como ele a olhara. Nada de insinuante nem lascivo. A expressão fora de longe mais chocante do que isso. Vira o próprio fascínio que ele sentira e o reconhecimento silencioso de algum segredo partilhado. Confiança, igualmente, como se soubesse que era digno de ser olhado, mas curiosidade também, como se o interesse dela fosse menos previsível do que o de mulheres anteriores. Ouviu-o se vestindo, e depois o movimento da cadeira. Miss Kelmsleigh.
Ela obrigou-se a virar e a olhar para ele. Tinha um aspecto decente agora. Além da camisa e o colete, vestia também a capa de montar cinza-escura que tirara quando havia entrado. O lenço tinha sido muito bem atado, se considerasse a dor que provavelmente sentira ao mexer o braço. Miss Kelmsleigh, lamento a morte do seu pai. Lamento a sua dor e lamento que a minha busca da verdade tenha magoado a sua família. Ainda assim, esta noite ou amanhã de manhã o juiz de paz do condado vai levantar algumas questões embaraçosas. Devo pedir que confie em mim e que me permita responder em nome dos dois.  A referência à morte do pai inflamou a raiva que a lançara naquela viagem miserável. Sentia-se grata por aquele momento de consolação, mas, na verdade, aquilo não mudava nada.
Conduziu meu pai à sepultura com a perseguição, lord Sebastian. O senhor e os outros membros do parlamento, que não paravam de falar daquela pólvora. Não aceitavam nenhuma explicação e insistiram em que o Gabinete do Material de Guerra encontrasse um bode expiatório para condenar em praça pública. Acho que seria estupidez da minha parte confiar em si. É compreensível que veja as coisas assim. No entanto, eu sou a única protecção que pode ter a este respeito. A minha palavra de cavalheiro, o título do meu irmão e a minha posição no governo podem poupá-la». In Madeline Hunter, Deslumbrante, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-372-5.

Cortesia de EASA/JDACT