«(…) Mas onde a situação militar se agravara terrivelmente era
no Ceilão. Terminadas as tréguas em 1652, os holandeses fizeram avançar as suas
tropas na ilha, com a intenção de tomarem Colombo. Por sua vez, também o rei de
Cândia não desistira de expulsar os portugueses, perfilando-se ao lado dos
holandeses. A agravar estas frentes de combate, a desordem nas hostes
portuguesas, a fome, a insatisfação e a pressão psicológica que a ameaça do
ataque militar provocava, desencadearam um motim que conduziu à execução de
dois oficiais e à deposição do geral, Manuel Mascarenhas Homem. E os meios para
fazer face a esta situação de guerra eram muito escassos.
É esta,
no essencial, a situação que o novo vice-rei irá encontrar em Goa. Ancorando a
nau Bom
Jesus da Vidigueira no porto de Mormugão na manhã de 21 de Agosto,
logo o capitão-mor António Sousa Meneses, com outros capitães e fidalgos, o
foram visitar a bordo. O novo governador teve assim o ensejo de se inteirar da
situação política e militar da Índia e de avaliar a sua gravidade. Todavia não
terá ficado surpreendido. Lastima sabê-lo mas, como faz notar, enxerguei que
me não enganava!
No
dia seguinte, após ouvir missa ainda a bordo, acto religioso a que o vice-rei
diariamente assistirá, embarcou com alguns fidalgos na manchua do Estado com
destino a Reis Magos, indo alojar-se, como era usual, no colégio franciscano
desse nome. Não passou despercebido ao novo vice-rei o sombreado das árvores e
o verde dos campos que o final da monção provocara, bem como a grandiosidade e
a beleza dos templos e das casas. De caminho recebeu carta do inquisidor com o
treslado do auto-de-fé que ocorrera nesse dia e de Brás Castro, o governador
cessante. À
entrada da igreja aguardava-o uma figura
de fama, não identificada, que lhe deu as boas-vindas em verso. Atento, ouviu,
entrou na igreja e rezou. De tarde recebeu visitas e, ao anoitecer, a de Brás Castro
e seu filho. No dia seguinte, depois de ouvir missa cantada, certamente de acção
de graças pelo bom sucesso da viagem, iniciava a sua actividade. Recebeu o
secretário de estado a quem incumbiu, entre outros assuntos, de enviar avisos
para o Norte informando da sua chegada.
Convocou
os juízes da Relação para combinar a sua posse e tratou de matérias de justiça
com o ouvidor-geral. A posse ocorreria no mesmo Colégio dos Reis Magos a 24, com a presença da Cidade, Conselho de Estado, Relação e
fidalgos. E, de seguida, reuniu o Conselho de Estado para decidir o modo como
haviam de desembarcar os soldados que ainda se encontravam a bordo e o envio de
tropas para Salsete e Bardes. É que
haviam chegado notícias de estar a aproximar-se da fronteira o exército do Idalxá
. Mas o erário estava exaurido ou, na sua expressão, não havia um real para
nada. Por isso teve de recorrer a um empréstimo de dois mil e quinhentos
xerafins. Este é o estado em que achei este Estado, comentaria o
vice-rei.
Certamente
para dar tempo a que se preparasse a costumada recepção na Cidade de Goa,
continuará instalado nos aposentos franciscanos em Reis Magos. Despacha
assuntos mais imediatos, como seja a descarga das naus, o envio de cartas para
o Norte, ou até a recomendação aos conventos para que agradecessem a Deus a boa
viagem
que
fizera e lhe pedissem graças para o seu governo. A partida para a Cidade de Goa
teve lugar a 26, quando já eram decorridos quatro dias de permanência em Reis
Magos. De manhã dá audiências, despacha com o secretário de estado e às duas horas
parte com o acompanhamento que se costuma em actos semelhantes. Aguardava-o a
vereação, que lhe entrega as chaves da cidade e, a seguir, o cabido, que lhe dá
a beijar um crucifixo. O cortejo solene prossegue, agora debaixo do pálio, com
destino à Sé. No percurso, danças e folias abrilhantam a festa e pretendem
significar o regozijo popular. A situação financeira não permitia grandes
gastos e o vice-rei ordenara contenção nas despesas. Na catedral reza e,
depois, a cavalo, dirige-se ao seu palácio, onde a nobreza da cidade, que já o
havia acompanhado, o aguardava.
Apesar
das duas horas de viagem até à cidade, do cortejo e cerimonial que teve de
cumprir, ainda tratou com vários oficiais de assuntos respeitantes à Fazenda
Real que considera em grande lástima. Aliás, Rodrigo Silveira parece estar
ciente da oposição que lhe será movida pelos poderosos e oficiais de justiça,
quando tiver de proceder, como é justo e sem respeitos, ao saneamento
financeiro do Estado e à aplicação da justiça. Todavia não parece preocupar-se.
Bem sei que lhes não há-de parecer bem - comentava, porém dá-se-me pouco disso.
Aliás, no começo da semana seguinte, mandaria reunir os ministros dos Contos
para lhes dar uma reprimenda pelo incumprimento das suas obrigações, já que
tivera queixa geral de seus procedimentos, e da má arrecadação das dívidas
gerais». In Artur Teodoro Matos, Diário do conde de Sarzedas, Vice-rei do
Estado da Índia (1655 -1656), Lisboa, colecção Outras Margens, CNCDPortugueses,
2001, ISBN 972-787-052-X.
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