segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Ensaio. 1258-1264. História Política. O Triunfo da Monarquia Portuguesa. José Mattoso. «Para alívio de muita gente, o dilema cessou, segundo parece, em 1261, com o falecimento da condessa Matilde (aponta-se a data de 14 de Janeiro de 1261; Herculano prefere o ano de 1258…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Sucessão (1259-1263)
«(…) Assim, se as inquirições tinham, por um lado, inculcado na população de todo o Norte do país (a mais densamente povoada) a imagem de um rei com grande autoridade e com grande capacidade de intervenção, com meios de chegar a toda a parte e de se fazer respeitar mesmo pelos mais poderosos, por outro lado, aparecia também, nesse momento exacto, como a causa de nas igrejas não se poderem celebrar os ofícios divinos, ou seja, aqueles rituais que, segundo a mentalidade popular, asseguravam a prosperidade e a paz e mantinham o mundo em equilíbrio. O pecado do rei já não era só dele, alastrava sobre todo o reino e ameaçava todas as pessoas. De facto, o interdito foi cumprido. As clarissas de Santarém, por exemplo, obtiveram do papa, por bula de 13 de Dezembro de 1259, autorização para celebrarem o ofício divino e assistirem à missa celebrada pelo seu capelão, apesar das proibições impostas pela sentença papal. Talvez fosse essa uma das causas que levaram o rei, durante dois anos, a não tomar medidas políticas especiais decorrentes do resultado das inquirições. As sanções eclesiásticas colocavam--no numa situação de fragilidade. Era por isso que pedia aos cónegos regrantes de S. Jorge de Coimbra que rezassem para não cair no poder do diabo.
Afonso III, todavia, não podia resignar-se facilmente a cumprir as imposições papais. Estava perto dos 50 anos (não é segura a data do seu nascimento. A historiografia tradicional aponta o ano de 1210, aceite por AC Sousa, 1735. Teria, portanto, 49 anos quando nasceu dona Branca. Para os padrões medievais era quase um velho) e ainda não tinha nenhum filho legítimo (a Crónica de 1419 diz o contrário. Num dos seus capítulos conta como a condessa veio a Portugal quando soube que o marido tinha casado com dona Beatriz. Enviando dois mensageiros ao rei para lhe estranhar o seu procedimento, este mandou-lhes transmitirem-lhe graves ameaças no caso de ela não regressar a sua terra. Resignada, teria deixado em Portugal um filho de Afonso III que ele depois teria criado na corte antes de o casar com uma filha do infante Pedro de Castela. Os eruditos do século XVIII, nomeadamente Caetano Sousa, 1735, procuraram demonstrar que se tratava de uma tradição sem fundamento. Os seus argumentos, nomeadamente o que se baseia na sucessão do condado de Bolonha e de outros senhorios, por intermédio de sobrinhos e não de filhos de Matilde, parecem-me concludentes). Um dos seus objectivos ao casar com Beatriz deve ter sido justamente assegurar a sucessão do reino. Por isso, decerto, se apressou a consumar o matrimónio logo que Beatriz chegou à idade núbil. Agora que tinha uma filha legítima é que o papa persistia em a considerar fruto de barregania? Legítima, na verdade, segundo os velhos conceitos matrimoniais da sociedade feudal, contra os quais a Igreja lutava desde havia mais de um século. Entre 1196 e 1201 também o rei Filipe Augusto de França (pai do primeiro marido da condessa Matilde) tinha vivido em situação de bigamia para poder ter um segundo filho que melhor lhe assegurasse a sucessão. Nessa altura era ainda frequente o recurso a pretextos de consanguinidade, mesmo longínqua, para dissolver matrimónios, contornando, assim, o rigor da indissolubilidade, progressivamente imposta pela Igreja. Eram meros pretextos: o modelo leigo, que fazia do matrimónio uma questão linhagística, e não moral nem canónica, continuava ainda bem vivo na mentalidade feudal. Para os conceitos da época, era fundamental assegurar a sucessão, e esta definia-se cada vez mais por meio de valores legais de legitimidade. Não era a mesma coisa que ter bastardos.
Para alívio de muita gente, o dilema cessou, segundo parece, em 1261, com o falecimento da condessa Matilde (aponta-se a data de 14 de Janeiro de 1261; Herculano prefere o ano de 1258; na impossibilidade de consultar a bibliografia francesa, não podemos resolver a discordância. Mas a data de 1261 insere-se mais facilmente na sequência dos acontecimentos datados com segurança. Se a morte da condessa foi em 1258, não se compreende por que razão demorou tanto tempo a conseguir a dispensa de consanguinidade. De resto, o rei ainda em 1259 usava o título de conde de Bolonha). Restava resolver o problema da consanguinidade. Afonso III, a quem, entretanto, nascera um filho varão, Dinis, nascido a 9 de Outubro de 1261, que lhe havia de suceder no trono, empregou nisso uma verdadeira bateria de influências. Começou por pedir aos bispos que solicitassem ao papa a legitimação do casamento e dos filhos. Não sabemos se eles acederam fácil ou dificilmente ao pedido. Sabemos apenas que, tendo-se reunido quase todos em Braga, escreveram ao papa em Maio de 1262 pedindo-lhe que dispensasse o casal do impedimento de consanguinidade no 4.º grau e que legitimasse os filhos já nascidos, alegando que o rei não podia dissolver tal casamento; era preciso evitar o mal que daí decorreria e garantir a utilidade e a paz do rei, da rainha e de todo o reino. Assinaram todos em seu nome e no dos respectivos cabidos, excepto o do Algarve, mas incluindo o bispo de Tuy, com jurisdição a norte do rio Lima. Não havendo bispo em Lisboa, visto que se debatia a sucessão do seu prelado, morto em 1258, assinava apenas o cabido (existe um documento de 29 de Abril de 1262 em que refere Mateus como eleito pelo cabido, depois de grandes controvérsias, mas, provavelmente, encontrava-se fora de Portugal. Talvez se tivesse dirigido à cúria pontifícia para receber a sua confirmação, depois de um processo tempestuoso)». In José Mattoso, O Triunfo da Monarquia Portuguesa, 1258-1264, Ensaio de História Política, Revista Análise Social, vol. XXXV, 2001.

Cortesia de RAnáliseSocial/JDACT