segunda-feira, 27 de agosto de 2018

O Retrato do Rei. Ana Miranda. «Mariana mandava-lhes o que pediam apenas para se livrar deles. Agora a sua riqueza estava a ponto de se acabar. O que seria dela, pobre, sem marido, sem escravos?»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Contrato da Carne
«(…) O dia surgiu com uma luz roxa; os sinos das igrejas tocaram em uníssono. Mariana quase não dormia. Ao acordar do sono curto daquela noite teve uma sensação de peso sobre o peito. Levantou-se da cama, sentindo-se indefesa. As toalhas haviam sido trocadas; a bacia estava cheia de água, as saias estendidas sobre uma cadeira, os sapatos ao pé da cama. Mariana abriu a arca de noiva. Um cheiro de mofo penetrou em seu nariz. Retirou os pós, os perfumes, as cabeleiras, que não usava mais, as roupas que tinham sido da sua avó, de sua mãe, depois suas. Estreitas, delicadas, com rendas e enfeites. Vestiu uma delas. As mulheres cultivavam a alicantina da falsa fragilidade. A sua mãe dizia que os seres masculinos eram muito vulneráveis e por esse motivo precisavam de pistolas. Nenhuma mulher devia temer um homem. Mariana foi tomada de um enorme ânimo; a possibilidade de um encontro com o pai a confortava; a ideia de retornar das Minas com uma grande herança lhe trazia alívio. Quando pensava em fazer uma viagem, a sua pulsação tornava-se mais intensa. Nos últimos meses ela andara cogitando demais sobre a morte. Era vista com reservas e mesmo censura pela gente principal. Dom Fernando tentara, por diversas vezes, fazê-la contrair novo matrimónio. Apresentava-lhe ridículos gentios da Corte, aos quais ela demonstrava indiferença ou desprezo. Se partisse para as Minas a sua reputação estaria, de vez, destruída.
Embora muitos a julgassem uma mulher de hábitos anormais, havia por ela um certo respeito, devido à sua posição. Doava dinheiro para as igrejas, recolhimentos, misericórdias e caridades, para os pobres e estrangeiros, vagabundos e poetas, e no Rio de Janeiro havia tantos poetas como carrapatos nas patas dos cavalos. Escrivãos, varredores de pó de casas de livraria, estudantes apaixonados, amanuenses, advogados confundiam a sua medíocre actividade de garranchar letras com engenho poético. Viviam a solicitar-lhe jantares, carruagens, passeios e caça, quando não dinheiro para ficarem taramelando por aí. Mariana mandava-lhes o que pediam apenas para se livrar deles. Agora a sua riqueza estava a ponto de se acabar. O que seria dela, pobre, sem marido, sem escravos?
Como seria o lugar das Minas, que o amanuense descrevera como povoado de mulheres nuas uivando e homens se atracando? O que significavam cinco arrobas de ouro? Todos sabiam como eram as histórias de Eldorados. O ouro demonstrara a sua poderosa força maléfica em Ofir na Arábia Feliz, e em Golconda da dinastia Kutb Chahi; nas ilhas de Crísis e Argira, de onde se esperavam arrancar rochas inteiras de ouro e prata. Eram conhecidas as proezas de Marco Polo em Xipangu, as lendas das cornucópias de Hispaniola onde índios adornavam os lóbulos das orelhas e narizes com argolas de ouro. As fábulas de cabo Ledo, cabo das Três Pontas; de Kantora, em Gâmbia; dos contrafortes de Fatu Jalón, onde ficava a esplendente jazida de ouro em pó da ilha de Tibar. Os homens estavam sempre a lavar tijolos. Mariana precisava ver o pai, fazer-lhe uma pergunta cuja resposta poderia mudar a sua vida. Assim, pediu a Tenório que avisasse a Valentim sobre a sua decisão: iria partir para os Sertões dos Cataguases, o El Dourado das serras mineiras». In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.

Cortesia de ES/CdasLetras/JDACT