jdact
e wikipedia
«(…) A verdade é que ele era doido por tudo
que fosse picante, e um dia até o peguei comendo colheres inteiras de
raiz-forte directamente do frasco, embora Stefa lhe desse uma sova se
descobrisse. À tarde brincava com os meninos lá do bairro. A mãe obrigara-o a prometer
que não sairia da nossa rua, porque os guardas nazis já tinham matado várias
crianças suspeitas de serem estafetas do mercado negro, mas agora nós vivíamos
numa ilha de cavernas e labirintos urbanos à espera de serem explorados, e
Stefa não tinha grandes esperanças de que ele mantivesse a promessa. Para dizer
a verdade, ele e os amigos andavam por todo o gueto. Nas tardes de tempo ruim,
quando não tinha ordem para sair do apartamento, Adam ficava sentado na nossa
cama de pernas cruzadas, fazendo desenhos de animais ou praticando a sua
caligrafia cheia de arabescos. Graças à influência do seu tio Izzy e da mãe,
que gostava de música, também muitas vezes cantava para si próprio. Stefa
começara a ensinar-lhe lições de música quando ele tinha 4 ou 5 anos, e
punha-se a tocar melodias no seu amarelado teclado Bluthner, o que significava
que agora o menino tinha um catálogo de canções na cabeça que ia desde hinos
sionistas, como o Hatikvah, e
atravessava o Atlântico até Irving Berlin, embora a sua pronúncia de inglês
tornasse a letra da música praticamente irreconhecível, a ponto de, por vezes,
chegar a ser cómica. Nas ocasiões em que eu exigia silêncio absoluto,
sentava-se na nossa cama com todo o juízo e fazia os seus queridos cálculos de
matemática, procurando um reconforto silencioso no seu amor pela precisão e
pelo detalhe. Agora vejo que, naquelas primeiras semanas comigo, ele tentava
andar com pezinhos envoltos em lã. Talvez tivesse a esperança de que eu acabasse
por ouvir aquilo que ele não conseguia dizer.
No dia 12 de Outubro, um sábado, aconteceu o
inevitável: os nazis deram a ordem para todos os judeus de Varsóvia irem para o
gueto. A caravana do desespero ao longo da rua Franciszkańska começou de
madrugada. À tarde, quando eu estava à janela do quarto de Stefa, um oficial da
Gestapo ordenou a um grupo de velhotes ortodoxos, todos de barbas longas, que
tirassem os xailes de oração e as roupas, e mandou-os fazer flexões em plena
rua. Sacanas!, murmurou a minha sobrinha para si mesma, mas minutos mais tarde
garantiu-me que para nós era melhor assim. Deve estar a brincar!, disse-lhe eu.
De modo algum! Agora sabemos que só podemos confiar em nós próprios. Eram
palavras heróicas, mas eu não via nada de positivo no desespero ofegante
daqueles velhos nus, e muito menos na humilhação que sentia por não ir correndo
defendê-los.
Como o nosso moral começava a ficar muito baixo, Stefa
decidiu alegrar-nos, convidando alguns dos seus novos amigos para o jantar do
sabá, no dia 25 de Outubro: Ewa Gradman, uma jovem viúva tímida que trabalhava
na padaria do nosso pátio; a sua filha Helena, de 7 anos, uma menininha
pensativa que a diabetes deixara com as faces encovadas e os olhos iluminados
de um ícone russo; e Ziv Levi, um órfão de Łodź de 17 anos, taciturno e cheio
de espinhas, que Stefa e Ewa tinham adoptado como projecto favorito. A essa
altura, começara a trabalhar como aprendiz na padaria e dormia num colchão de
palha que levara para um dos armazéns. Ewa fez para a nossa festa um kugelhopf de perfume adocicado, e Ziv trouxe
quatro ovos frescos e uma rosa vermelha. O jovem entregou os seus presentes a
Stefa com uma formalidade tão cavalheiresca que Adam começou a rir baixinho, e
eu precisei expulsá-lo da sala. Como sempre, o zelador do nosso prédio, o
professor Engal, deu três leves pancadas na nossa porta ao pôr do sol, para
anunciar o início do sabá. Depois do nosso banquete de carpa e kasha, Stefa tirou
um chapéu de palha do seu armário, colocou-o na cabeça do filho, deu-lhe um
peteleco irreverente e segredou qualquer coisa ao ouvido do menino. Ele fez uma
careta e conseguiu articular um Não indeciso, mas
ela respondeu Por mim, querido em
tom de súplica, sentou-se ao piano e lançou-se a tocar a dengosa abertura de Valentine,
de Maurice Chevalier. Forçado pelo olhar insistente da mãe, Adam começou a
cantar. Infelizmente, estava nervoso demais para encontrar sua verdadeira voz,
que era linda, embora por trabalhar. O menino adorava música, mas tinha pavor
de cantar em público; só se sentia à vontade para revelar a sua vida interior,
e seus dons, àqueles que amava. Stefa por vezes esquecia-se que ele não era,
como ela, uma estrela de cabaré a ser revelada.
Vi nos olhos do meu sobrinho que ele
estava prestes a chorar; por isso, após o primeiro verso, sentei-me de repente
e mandei que se calasse, abanando as mãos. Piskorz,
já passa muito da sua hora de deitar,
disse-lhe, acrescentando para os nossos convidados que devíamos dar a festa por
encerrada. Stefa, furiosa, olhava
alternadamente para o relógio de pulso e para mim. Com um riso forçado, disse: não pode estar a falar sério... São
só 21 horas! O menino precisa
dormir. E, para dizer a verdade, eu também. Adam
olhava para mim, o rosto contraído pelo medo e o chapéu de palha nas mãos. Stefa pôs-se de pé de um salto, com um brilho de fúria nos olhos. Se não se importa, tio Erik, sou eu que faço as regras na minha
casa! Especialmente no que toca ao meu filho. Muito
bem, faça todas as regras que quiser..., mas
não conte comigo!, retorquiu,
irritado, e dei um primeiro passo na direcção
do bengaleiro, com a intenção de ir dar um passeio para me acalmar, mas Adam
desatou a chorar e disparou em direcção
ao quarto da mãe». In Richard Zimler, Os Anagramas de Varsóvia, 2009,
Editora Record, 2010, isbn 978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015, ISBN
978-972-004-728-1.
Cortesia
de ERecord/PortoEditora/JDACT