domingo, 12 de agosto de 2018

Cem quilos de ouro. Fernando Morais. «A injecção aplicada dentro do carro parecia começar a fazer efeito e Willy adormeceu em seguida. Dormiu ao som de ruídos bucólicos: um bezerro que mugia…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) As duas folhas de papel foram colocadas sob a lona, alguém veio recolhê-las e depois apagou a luz. Minutos depois o homem que anunciara o sequestro devolvia o bilhete dirigido a Édson: olha, doutor, o pessoal está bravo com o senhor. Estão achando que foi pouco enfático no bilhete e que não está levando a sério a hipótese de ficar connosco um mês ou, se preciso, um ano. Como é que o senhor insinua no bilhete para Édson que eu sou a sua protectora, porra? Willy tentou explicar-se, mas não houve jeito. Deram-lhe de novo papel e caneta e o homem começou a ditar: comece assim: caro Édson: eu exijo que a polícia fique de fora disto... Willy interrompeu-o. Mas não vão acreditar que é espontâneo, nunca uso essa linguagem. Está bem, doutor, faça como o senhor achar melhor. Outra coisa, companheiro: podia parar com esse negócio de doutor? Não sou doutor, nem terminei o meu curso de engenharia. Então, nada de doutor. Sem perceber, Willy acabara de baptizar seu carcereiro, que a partir daquele momento seria o Companheiro. O bilhete acabou saindo como Willy queria. Porém, mais importante do que isso, ele sentia que começava a controlar a situação. Foi um bilhete curto:

Édson amigo. Estou numa enrascada brava, companheiro, e você será a minha salvação. É vital deixar a polícia fora disso, de qualquer maneira. Tenho certeza de que vai ter pulso suficiente para isto. Você é o homem da negociação. Com a sua ajuda volto logo. Guilherme.

A injecção aplicada dentro do carro parecia começar a fazer efeito e Willy adormeceu em seguida. Dormiu ao som de ruídos bucólicos: um bezerro que mugia, galos cantando, música vinda de um rádio distante, vozes de gente ao longe e, a cada meia hora, o barulho remoto de um veículo passando em alta velocidade por uma estrada. Mais tarde, os sequestradores tentariam convencê-lo de que toda aquela sonoplastia era artificial e tinha sido montada especialmente para confundi-lo e transmitir-lhe a impressão de que estivera preso na zona rural.

Em Salvador, uma operação de guerra começava a ser montada para tirá-lo o mais cedo possível daquele lugar. Cláudia, a sua mulher, ficara sabendo do sequestro minutos depois da cena à porta da academia. Alguns alunos tinham visto o seu marido ser levado à força para dentro do Monza e correram para avisá-la. Ela comunicou-se com o irmão de Willy, Francisco Affonso Ferreira, o Chiquito, também director da Bahema, que conseguiu localizar em São Luís do Maranhão o filho do presidente da República, Fernando José Sarney. Horas depois, Cláudia receberia um telefonema do director da Polícia Federal, Romeu Tuma, que estava em Volta Redonda, onde cinco operários haviam sido mortos por tropas do Exército durante uma greve. O governador da Bahia, Waldir Pires, mandou que policias locais vigiassem a casa do empresário, em cujo telefone foi acoplado um sistema de gravação.
Uma amiga da família, sobrinha do general Ivan Souza Mendes, ministro-chefe do SNI, sugeriu que o tio fosse accionado. Confusa, Cláudia consultou Tuma por telefone. Sem encontrar o delegado, acabou falando com o filho deste, também policia, que a demoveu da ideia de recorrer ao SNI. Não me parece que seja necessário, disse ele. Num caso como esse, acho que a primeira providência do general Ivan seria consultar o meu pai. Diante da pouca experiência da polícia baiana em sequestros, outro irmão de Willy, Manuel Alceu Affonso Ferreira, advogado e ex-juiz do TRE paulista, decidiu pedir ajuda ao secretário de Segurança Pública de São Paulo, Luiz Antonio Fleury Filho. Este colocou à disposição da família uma equipe do Grupo Anti-Sequestro, o GAS, que poderia embarcar para Salvador a qualquer momento, desde que uma liturgia burocrática fosse previamente cumprida: a solicitação teria que partir do secretário de Segurança Pública da Bahia. Mas o secretário baiano estava licenciado, participando da campanha eleitoral». In Fernando Morais, Cem quilos de ouro, Companhia das Letras, 2003, ISBN 978-853-590-449-9.

Cortesia da CdasLetras/JDACT