Afonso
Henriques
Nascimento de
uma nação...
«(…) Mais do que uma tentativa de
explicação historiográfica, do que se trata é de representar literariamente e
em imagens uma tensão dramática que permite a afirmação de uma vontade de autonomia
e independência. O texto de José Carlos Oliveira não é, assim, um exercício de análise,
mas uma narrativa, um registo humano impressivo, que pretende ser revelador de um
percurso que culmina na criação de um Estado e de uma Nação. Daí a preocupação fundamental
na força da imagem e no diálogo entre as figuras fundamentais. E assim vislumbramos,
na conquista de Lisboa, uma coluna de que se não vê o fim, a trote rápido pela estrada,
armada como antes não aconteceu na Ibéria, uma profusão de estandartes,
elevando-se no ar com a cruz azul sobre branco, a que se juntam os de muitas casas
estrangeiras, sobre um extenso mar de cruzes de Cristo que a todos cobre o peito.
A que muitos mais se juntarão com a chegada da grande frota que deu entrada no Tejo
e se dirige a Lisboa. À frente Afonso Henriques, acompanhado por João Peculiar e
Ermígio Moniz, rodeados pelos principais dos cruzados...
É a monarquia guerreira de
Afonso Henriques, retratada por José Mattoso, que aqui surge, que permitirá a consolidação
do Reino, a partir de um território suficientemente amplo que levará à
superação da perspectiva condal. A fronteira foi-se estabilizando e a autoridade
interna ganhou legitimidade junto dos povos, o que garantiu ao novo Estado iniciar
a aplicação de providências nos domínios administrativo, económico e social, dando
a estabilidade que faltava aos Reinos taifas. Aliás, a instalação de Afonso Henriques
em Coimbra assegurou a afirmação de uma corrente cultural e política de índole
moçárabe e mediterrânica. Assim se ultrapassou a divisão entre os dois condados
de Portucale e de Coimbra, e as tensões entre o Norte e o Sul, o que concretizou
a verdadeira complementaridade, realizando-se a articulação entre o Atlântico e
o Mediterrâneo, para usar a expressão consagrada por Orlando Ribeiro. Daí que,
longe de qualquer simplificação, estejamos perante movimentos complexos criadores
de Portugal». In Guilherme d'Oliveira Martins, Prefácio.
Nada se ouve, nada se vê na
escuridão. Só um intenso cheiro a queimado e maresia preenche o vazio. Subitamente
um ténue clarão desperta e hesita lá longe, logo seguido pelo despontar de duas
pequenas chamas que acabam por denunciar um extenso corredor em pedra. São dois
archotes que se aproximam, elevados bem alto por dois homens de armas, cabeças cobertas
por metal sobre a cota de malha e espadas na cintura. Abrem as trevas a um pequeno
grupo de outros quatro homens, confortados em veludos e peles, pequenos punhais
na cintura e a atenção concentrada na conjugação de esforços para deslocar o pequeno
estrado onde se eleva um trono de traço espesso e escorreito. Senta-se nele um
homem em quem os muitos traços da idade avançada não logram diminuir a estatura
e o porte poderosos. O desespero e a revolta que traz nos olhos são mais
intensos que o brilho da coroa de ouro sobre os cabelos abundantes e encanecidos.
É o centro das atenções dos que o transportam, olhando-o suspensos duma decisão
iminente. Um deles decide-se, chama-o num tom de insistência cautelosa: Senhor!
Senhor Afonso Henriques!...
Sem resultado. Os olhos de Afonso
Henriques mantêm-se fixos nas trevas em frente. Mais do que aquela espera pelo que
tarda de Roma, exaspera-o ter de ser assim transportado em lugar de se transportar
por si, o passo travado por aquela perna sem prestança, e as memórias que ela teima
em trazer-lhe, numa dupla acusação pela derrota às mãos do genro castelhano e pela
maldição que a mãe lhe lançou, quando a despediu, a ela que o fez despertar para
o que antes desconhecia. Agora, com Roma teimosa no silêncio, toma-o a inquietude
como nunca antes, e a exasperação. Os homens entreolham-se, os outros dois à frente
esforçam-se por não olhar para trás, concentram-se em rasgar as trevas com os archotes,
o som dos passos e o ranger da madeira parecem ampliar-se. O braço de Afonso Henriques
eleva-se no ar, os homens hesitam, ele ordena, a voz ecoando no corredor, grave,
definitiva: parai!» In José Carlos Oliveira, D. Afonso Henriques, O Primeiro Herói, 2016,
Oficina do Livro, 2016, ISBN 978-989-741-419-0.
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