sexta-feira, 3 de agosto de 2018

O Primeiro Herói. José C. Oliveira. «Sem resultado. Os olhos de Afonso Henriques mantêm-se fixos nas trevas em frente. Mais do que aquela espera pelo que tarda de Roma, exaspera-o ter de ser assim transportado…»

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Afonso Henriques
Nascimento de uma nação...
«(…) Mais do que uma tentativa de explicação historiográfica, do que se trata é de representar literariamente e em imagens uma tensão dramática que permite a afirmação de uma vontade de autonomia e independência. O texto de José Carlos Oliveira não é, assim, um exercício de análise, mas uma narrativa, um registo humano impressivo, que pretende ser revelador de um percurso que culmina na criação de um Estado e de uma Nação. Daí a preocupação fundamental na força da imagem e no diálogo entre as figuras fundamentais. E assim vislumbramos, na conquista de Lisboa, uma coluna de que se não vê o fim, a trote rápido pela estrada, armada como antes não aconteceu na Ibéria, uma profusão de estandartes, elevando-se no ar com a cruz azul sobre branco, a que se juntam os de muitas casas estrangeiras, sobre um extenso mar de cruzes de Cristo que a todos cobre o peito. A que muitos mais se juntarão com a chegada da grande frota que deu entrada no Tejo e se dirige a Lisboa. À frente Afonso Henriques, acompanhado por João Peculiar e Ermígio Moniz, rodeados pelos principais dos cruzados...
É a monarquia guerreira de Afonso Henriques, retratada por José Mattoso, que aqui surge, que permitirá a consolidação do Reino, a partir de um território suficientemente amplo que levará à superação da perspectiva condal. A fronteira foi-se estabilizando e a autoridade interna ganhou legitimidade junto dos povos, o que garantiu ao novo Estado iniciar a aplicação de providências nos domínios administrativo, económico e social, dando a estabilidade que faltava aos Reinos taifas. Aliás, a instalação de Afonso Henriques em Coimbra assegurou a afirmação de uma corrente cultural e política de índole moçárabe e mediterrânica. Assim se ultrapassou a divisão entre os dois condados de Portucale e de Coimbra, e as tensões entre o Norte e o Sul, o que concretizou a verdadeira complementaridade, realizando-se a articulação entre o Atlântico e o Mediterrâneo, para usar a expressão consagrada por Orlando Ribeiro. Daí que, longe de qualquer simplificação, estejamos perante movimentos complexos criadores de Portugal». In Guilherme d'Oliveira Martins, Prefácio.

Nada se ouve, nada se vê na escuridão. Só um intenso cheiro a queimado e maresia preenche o vazio. Subitamente um ténue clarão desperta e hesita lá longe, logo seguido pelo despontar de duas pequenas chamas que acabam por denunciar um extenso corredor em pedra. São dois archotes que se aproximam, elevados bem alto por dois homens de armas, cabeças cobertas por metal sobre a cota de malha e espadas na cintura. Abrem as trevas a um pequeno grupo de outros quatro homens, confortados em veludos e peles, pequenos punhais na cintura e a atenção concentrada na conjugação de esforços para deslocar o pequeno estrado onde se eleva um trono de traço espesso e escorreito. Senta-se nele um homem em quem os muitos traços da idade avançada não logram diminuir a estatura e o porte poderosos. O desespero e a revolta que traz nos olhos são mais intensos que o brilho da coroa de ouro sobre os cabelos abundantes e encanecidos. É o centro das atenções dos que o transportam, olhando-o suspensos duma decisão iminente. Um deles decide-se, chama-o num tom de insistência cautelosa: Senhor! Senhor Afonso Henriques!...
Sem resultado. Os olhos de Afonso Henriques mantêm-se fixos nas trevas em frente. Mais do que aquela espera pelo que tarda de Roma, exaspera-o ter de ser assim transportado em lugar de se transportar por si, o passo travado por aquela perna sem prestança, e as memórias que ela teima em trazer-lhe, numa dupla acusação pela derrota às mãos do genro castelhano e pela maldição que a mãe lhe lançou, quando a despediu, a ela que o fez despertar para o que antes desconhecia. Agora, com Roma teimosa no silêncio, toma-o a inquietude como nunca antes, e a exasperação. Os homens entreolham-se, os outros dois à frente esforçam-se por não olhar para trás, concentram-se em rasgar as trevas com os archotes, o som dos passos e o ranger da madeira parecem ampliar-se. O braço de Afonso Henriques eleva-se no ar, os homens hesitam, ele ordena, a voz ecoando no corredor, grave, definitiva: parai!» In José Carlos Oliveira, D. Afonso Henriques, O Primeiro Herói, 2016, Oficina do Livro, 2016, ISBN 978-989-741-419-0.

Cortesia de OdoLivro/JDACT