segunda-feira, 13 de agosto de 2018

As Três Sereias. Irving Wallace. «Passara a tarde a bisbilhotar a loja cheia de artefactos da Polinésia, todos a preços razoáveis, e adquirira um par de castanholas de bambu balinesas, uma clava de guerra, esculpida»

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«(…) Era baixo e gordo, atarracado como se tivesse sido comprimido mecanicamente. Nascera em Memel ou Dantzig, ou numa outra cidade qualquer riscada do mapa pelas tropas de assalto nazistas. Tivera muito nomes e passaportes, e no seu caminho, um longo caminho cujo objectivo era a América, como refugiado fora obrigado a deter-se, fixando por fim residência em Taiti, onde se dedicara ao comércio. Declarara ter sido arqueólogo noutros tempos, ter acompanhado diversas expedições alemãs em dias mais felizes e afizera-se ao modelo de Heinrich Schliemann, obstinado e excêntrico escavador de Tróia. Easterday era demasiado mole e desmazelado, demasiado desejoso de agradar e demasiado falto de sorte para representar o papel de Schliemann, pensara então Maud. Alexander Easterday, sim. Conseguia agora vê-lo melhor: chapéu de linho, ridiculamente empoleirado na cabeça; gravata borboleta (nos Mares do Sul), casaco tropical cinzento, amarrotado, cujas calças o ventre saliente alargara. E ainda pormenores mais curiosos: pince-nez alto num nariz longo, três centímetros de bigode, bolsos deformados, cheios de ninharias, notas, cartões de visita. Começava agora a recordar-se com mais nitidez.
Passara a tarde a bisbilhotar a loja cheia de artefactos da Polinésia, todos a preços razoáveis, e adquirira um par de castanholas de bambu balinesas, uma clava de guerra, esculpida, das ilhas Marquesas, uma saia de tapa da Samoa, um capacho da ilha de Ellice e uma antiga tigela de madeira de Tonga, a qual servia agora de adorno no aparador da sua sala de estar. Antes de partirem, recordava, ela e Adley, pois quisera que Adley o conhecesse, tinham convidado Easterday para uma refeição no restaurante do terraço do Grande Hotel. O convidado mostrara-se uma enciclopédia no que tocava a informações, iluminara alguns enigmas menores da sua estada de meio ano na Melanésia. Isto passara-se há oito anos, quase nove, quando Marc estava no seu último ano na Universidade (ao jovem desagradava a influência ali de Alfred Krober apenas porque o pai e a mãe idolatravam o mestre).
Ao recordar agora os anos passados, Maud lembrou-se de que o seu último contacto com Easterday se verificara um ano ou dois após o seu encontro em Taiti. Nessa altura tinham publicado um estudo sobre o povo de Bau, nas ilhas Fidji, e Adley recomendara-lhe que enviasse a Easterday um exemplar autografado. Ela assim fizera e passados alguns meses Easterday agradecera a dádiva numa breve carta formal a que não era, porém, estranho um certo desvanecimento por tão augustos conhecidos se terem lembrado dele. Empregara a palavra augustos, e depois disso Maud convencera-se de que ele estudara na universidade de Gõttingen. Fora essa a última vez que tivera notícias de A. Easterday, a carta de agradecimento de seis ou sete anos antes, até ao momento presente. Fixara o endereço nas costas do envelope. Que poderia querer dela aquele rosto vago, semi-esquecido, tão longe? Dinheiro? Uma recomendação? Elementos sobre um tema qualquer? Tomou o envelope na palma da mão. Era muito pesado para se tratar de um simples pedido. Mais provavelmente se trataria de uma informação. O homem que lhe escrevia, pensou, tinha alguma coisa a comunicar-lhe.
Pegou na adaga Ashanti, recordação de uma jornada pela África naqueles dias pré-Gana entre as duas guerras mundiais, que se encontrava em cima da secretária, e com um golpe apenas abriu o envelope. Desdobrou as frágeis folhas de papel de correio aéreo. A carta fora cuidadosamente datilografada numa velha máquina, já em péssimo estado, pois muitas das palavras apresentavam pequenos buracos, em vez de um e ou de um o via-se, na maioria das vezes, um furo; contudo, a carta fora batida com cuidado, laboriosamente, a dois espaços, certos. Ela contou as folhas de papel de arroz: vinte e duas ao todo. A sua leitura ocupá-la ia durante algum tempo. Havia a outra correspondência e diversas notas a rever antes da última aula da manhã. Todavia, sentiu a curiosa e bem familiar censura do segundo ser, a não intelectual, não-objectiva, segunda Maud Hayden, dissimulada dentro de si, e isto por se tratar do ser feminino, não científico, intuitivo. Agora, este segundo ser impunha-se, recordava-lhe os mistérios e as excitações que, muitas vezes no passado, tinham vindo de terras longínquas. O seu segundo ser só raramente pedia para ser escutado; porém, quando o fazia, ela não o podia ignorar. Os seus melhores momentos provinham de tal obediência.
Sem dar ouvidos ao bom senso e sem se importar com a pressão do tempo, sucumbiu. Tornou a sentar-se, pesadamente; sem atender ao protesto metálico da cadeira giratória, levou a carta quase rente aos olhos e, lentamente, começou a ler para si mesma aquilo que, esperava, talvez constituísse o melhor dos Pequenos Prazeres do dia. PROFESSOR ALEXANDER EASTERDAY
 HOTEL TEMEHAMI PAPEETE,
TAITI
Dra Maud Hayden.
Presidente, Departamento de Antropologia
Edifício das Ciências Sociais, Sala 309
Raynor College
Santa Bárbara, Califórnia
E. U. A.»
In Irving Wallace, As Três Sereias, Livros do Brasil, coleção Dois Mundos, 2000, ISBN: 978-972-381-025-7.

Cortesia de LBrasil/DMundos/JDACT