«(…) Havia alguns barcos no canal, navegando em direcção à Praça
do Mercado. Mas não era dia de mercado, apesar de os barcos serem tantos que
não se enxergava o canal. Um barco levava peixes de água doce para as barracas
da ponte Jerónimo. Outro vinha carregado de tijolos, com água pelas beiradas. O
homem que conduzia o barco gritou, cumprimentando-me. Apenas fiz um gesto e
abaixei a cabeça para que a borda da minha touca escondesse o meu rosto. Atravessei
uma ponte sobre o canal e virei para o espaço amplo da Praça do Mercado, que,
mesmo àquela hora, estava agitada, com pessoas atravessando de um lado para
outro, rumo a alguma tarefa: comprar carne no Mercado de Carne ou pão na
padaria, levar madeira para pesar na Casa do Peso. As crianças iam à rua buscar coisas para os pais; os
aprendizes para os seus mestres, as criadas para os seus patrões. Cavalos e
carruagens passavam em tropel no piso de pedra. À minha direita estava a câmara
municipal, com sua fachada de mármore branca e dourada olhando do alto das
janelas. À minha esquerda estava a Nova Igreja, onde eu havia sido baptizada,
dezasseis anos antes. A sua torre comprida e estreita lembrava-me uma gaiola de
pedra. O pai uma vez levou-nos até lá ao alto. Jamais esquecerei a vista de
Delft: cada pequena casa de tijolo vermelho e telhado inclinado, o canal verde
e o portão da cidade ficaram marcados para sempre na minha memória, pequenos,
porém nítidos. Naquele dia, perguntei ao meu pai se todas as cidades holandesas
eram daquele jeito, mas ele não sabia. Nunca tinha ido a nenhuma outra cidade,
nem mesmo a Haia, que ficava a duas horas a pé.
Andei até ao centro da praça. Lá, as pedras foram colocadas
formando uma estrela de oito pontas dentro de um círculo. Cada ponta indicava
uma parte de Delft. Achava que ali era o centro da cidade e o centro da minha
vida. Frans, Agnes e eu tínhamos brincado na estrela desde que pudemos correr até ao mercado. A
nossa brincadeira preferida era escolher uma ponta, dizer o nome de alguma
coisa (cegonha, igreja, carrinho de mão, flor) e correr naquela direcção
procurando por aquela determinada coisa. Foi assim que exploramos quase toda a
cidade de Delft. Mas havia uma ponta em que nunca estivemos: nunca fui à
Esquina dos Papistas, onde moravam os católicos. A casa em que eu ia trabalhar
ficava a dez minutos de casa, tempo que uma caçarola de água levava para
ferver, mas nunca passei por lá. Não conhecia nenhum católico. Não havia muitos
em Delft e nenhum na nossa rua, nem nas lojas que frequentávamos. Não que os
evitássemos, mas eles eram muito reservados. Eram aceites em Delft, mas não se
esperava que demonstrassem a sua fé abertamente. Realizavam os seus ofícios
religiosos discretamente, em lugares simples que por fora não pareciam igrejas.
Meu pai tinha trabalhado com católicos e disse-me que eles não eram diferentes
de nós. O máximo, que se podia dizer é, que eram menos sérios. Gostavam de
comer, beber, cantar e jogar. O pai falou isso quase como se os invejasse.
Naquela hora, eu seguia a ponta da estrela para onde nunca
tinha ido, atravessando a praça mais devagar do que os outros, pois relutava em
deixar os lugares que conhecia tão bem. Atravessei a ponte sobre o canal e
virei à esquerda para o Oude Langendijck. À esquerda, o canal ficava paralelo à
rua, separando-a da Praça do Mercado. Na esquina em que a rua cruzava com a
Molenpoort, quatro meninas estavam sentadas num banco ao lado da porta aberta
de uma casa. Tomaram uma ordem por tamanho: da mais velha, que devia ter a
idade de Agnes, à mais nova, que devia ter uns quatro anos. Uma das meninas do
meio segurava um bebé no colo, grandinho, já devia gatinhar e logo estaria
andando. Cinco filhos, pensei. E esperando mais um. A menina mais velha fazia
bolhas de sabão soprando numa concha com uma haste na ponta, brinquedo parecido
com um que o meu pai fizera para nós. As outras pulavam e estouravam as bolhas
que surgiam. A menina, com o bebé no colo, não podia mexer-se muito e alcançava
algumas bolhas, apesar de estar sentada ao lado da que soprava. A mais nova era
a mais distante e não tinha chance de
alcançar as bolhas. A segunda era a mais rápida, corria e apertava as bolhas
nas mãos. Tinha o cabelo da cor mais forte das quatro, ruivo como a parede de
tijolo atrás dela. A mais nova e a que estava com o bebé tinham cabelo cacheado
e louro como o da mãe, enquanto a mais velha tinha o mesmo ruivo escuro do pai.
Olhei a menina do cabelo ruivo pegar as bolhas, estourando-as antes que
batessem nos azulejos cinzentos e brancos colocados em diagonal na frente da
casa. Ela vai ser difícil, pensei». In Tracy Chevalier, Moça com Brinco
de Pérola, 1999, Bertrand Brasil, 2002, ISBN
978-852-860-957-8.
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