terça-feira, 21 de agosto de 2018

Moça com Brinco de Pérola. Tracy Chevalier. «Naquela hora, eu seguia a ponta da estrela para onde nunca tinha ido, atravessando a praça mais devagar do que os outros, pois relutava em deixar os lugares que conhecia tão bem»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Havia alguns barcos no canal, navegando em direcção à Praça do Mercado. Mas não era dia de mercado, apesar de os barcos serem tantos que não se enxergava o canal. Um barco levava peixes de água doce para as barracas da ponte Jerónimo. Outro vinha carregado de tijolos, com água pelas beiradas. O homem que conduzia o barco gritou, cumprimentando-me. Apenas fiz um gesto e abaixei a cabeça para que a borda da minha touca escondesse o meu rosto. Atravessei uma ponte sobre o canal e virei para o espaço amplo da Praça do Mercado, que, mesmo àquela hora, estava agitada, com pessoas atravessando de um lado para outro, rumo a alguma tarefa: comprar carne no Mercado de Carne ou pão na padaria, levar madeira para pesar na Casa do Peso. As crianças iam à rua buscar coisas para os pais; os aprendizes para os seus mestres, as criadas para os seus patrões. Cavalos e carruagens passavam em tropel no piso de pedra. À minha direita estava a câmara municipal, com sua fachada de mármore branca e dourada olhando do alto das janelas. À minha esquerda estava a Nova Igreja, onde eu havia sido baptizada, dezasseis anos antes. A sua torre comprida e estreita lembrava-me uma gaiola de pedra. O pai uma vez levou-nos até lá ao alto. Jamais esquecerei a vista de Delft: cada pequena casa de tijolo vermelho e telhado inclinado, o canal verde e o portão da cidade ficaram marcados para sempre na minha memória, pequenos, porém nítidos. Naquele dia, perguntei ao meu pai se todas as cidades holandesas eram daquele jeito, mas ele não sabia. Nunca tinha ido a nenhuma outra cidade, nem mesmo a Haia, que ficava a duas horas a pé.
Andei até ao centro da praça. Lá, as pedras foram colocadas formando uma estrela de oito pontas dentro de um círculo. Cada ponta indicava uma parte de Delft. Achava que ali era o centro da cidade e o centro da minha vida. Frans, Agnes e eu tínhamos brincado na estrela desde que pudemos correr até ao mercado. A nossa brincadeira preferida era escolher uma ponta, dizer o nome de alguma coisa (cegonha, igreja, carrinho de mão, flor) e correr naquela direcção procurando por aquela determinada coisa. Foi assim que exploramos quase toda a cidade de Delft. Mas havia uma ponta em que nunca estivemos: nunca fui à Esquina dos Papistas, onde moravam os católicos. A casa em que eu ia trabalhar ficava a dez minutos de casa, tempo que uma caçarola de água levava para ferver, mas nunca passei por lá. Não conhecia nenhum católico. Não havia muitos em Delft e nenhum na nossa rua, nem nas lojas que frequentávamos. Não que os evitássemos, mas eles eram muito reservados. Eram aceites em Delft, mas não se esperava que demonstrassem a sua fé abertamente. Realizavam os seus ofícios religiosos discretamente, em lugares simples que por fora não pareciam igrejas. Meu pai tinha trabalhado com católicos e disse-me que eles não eram diferentes de nós. O máximo, que se podia dizer é, que eram menos sérios. Gostavam de comer, beber, cantar e jogar. O pai falou isso quase como se os invejasse.
Naquela hora, eu seguia a ponta da estrela para onde nunca tinha ido, atravessando a praça mais devagar do que os outros, pois relutava em deixar os lugares que conhecia tão bem. Atravessei a ponte sobre o canal e virei à esquerda para o Oude Langendijck. À esquerda, o canal ficava paralelo à rua, separando-a da Praça do Mercado. Na esquina em que a rua cruzava com a Molenpoort, quatro meninas estavam sentadas num banco ao lado da porta aberta de uma casa. Tomaram uma ordem por tamanho: da mais velha, que devia ter a idade de Agnes, à mais nova, que devia ter uns quatro anos. Uma das meninas do meio segurava um bebé no colo, grandinho, já devia gatinhar e logo estaria andando. Cinco filhos, pensei. E esperando mais um. A menina mais velha fazia bolhas de sabão soprando numa concha com uma haste na ponta, brinquedo parecido com um que o meu pai fizera para nós. As outras pulavam e estouravam as bolhas que surgiam. A menina, com o bebé no colo, não podia mexer-se muito e alcançava algumas bolhas, apesar de estar sentada ao lado da que soprava. A mais nova era a mais distante e não tinha chance de alcançar as bolhas. A segunda era a mais rápida, corria e apertava as bolhas nas mãos. Tinha o cabelo da cor mais forte das quatro, ruivo como a parede de tijolo atrás dela. A mais nova e a que estava com o bebé tinham cabelo cacheado e louro como o da mãe, enquanto a mais velha tinha o mesmo ruivo escuro do pai. Olhei a menina do cabelo ruivo pegar as bolhas, estourando-as antes que batessem nos azulejos cinzentos e brancos colocados em diagonal na frente da casa. Ela vai ser difícil, pensei». In Tracy Chevalier, Moça com Brinco de Pérola, 1999, Bertrand Brasil, 2002, ISBN 978-852-860-957-8.

Cortesia de BertrandB/JDACT