sexta-feira, 31 de agosto de 2018

No 31. Moll Flanders. Daniel Defoe. «Não há de parecer estranho que eu agora começasse a pensar, mas minhas reflexões eram, ai de mim!, pouquíssimo sólidas, eu tinha uma reserva quase ilimitada de vaidade e orgulho»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Como nos cansássemos desses folguedos, sentamo-nos e ele falou-me durante muito tempo; disse que estava fascinado por mim, que não sossegaria, dia e noite, até que houvesse dito o quanto me amava, que se eu fosse capaz de amá-lo e de fazê-lo feliz eu lhe salvaria a vida, e muitas outras coisas bonitas; da minha parte, disse-lhe pouco, mas a minha postura prontamente revelou que eu não passava de uma tola e não percebia de modo algum o que ele pretendia. Depois ele começou a caminhar pelo quarto e, pegando na minha mão, fez-me passear com ele; pouco a pouco, foi ganhando segurança e em certo momento atirou-me na cama e ali me beijou com muito ardor, mas, a bem da justiça, devo dizer que não usou de rudeza, apenas beijou-me muito, depois, como teve a impressão de que alguém subia a escada, levantou-se da cama, ergueu-me também, professando imenso amor por mim; disse que se tratava de um afecto honesto e que não queria causar-me mal algum, e pondo cinco guinéus na minha mão foi-se escada abaixo.
Eu estava mais confusa com o dinheiro do que estivera antes com o amor, e comecei a sentir tamanha exaltação que mal tomava conhecimento do chão em que pisava; considero muito importante esta parte de minha história porque, se ela vier a ser lida por uma jovem inocente, talvez a instrua a se proteger do mal que lhe pode acarretar a consciência prematura da própria beleza; se uma jovem se julga formosa, nunca duvidará da sinceridade de todos os homem que se disserem apaixonados por ela, pois se ela crê ser encantadora o bastante para cativar o homem, é natural que aceite de bom grado os efeitos dos seus encantos. O jovem cavalheiro inflamara o seu desejo tanto quanto aguilhoara a minha vaidade, e como se percebesse que tivera oportunidade e lamentasse não a ter aproveitado, daí a meia hora, mais ou menos, subiu a escada de novo e retomou seus arroubos comigo, tal como antes, só que com menos prelúdios.
Para começar, ao entrar no quarto, virou-se e, fechando a porta, disse, senhora Betty, antes pareceu-me que alguém subia a escada, mas não era verdade; se eu for visto neste quarto com você, não me surpreenderão a beijá-la, e respondi que não fazia ideia de quem poderia subir pela escada, pois acreditava que não havia mais ninguém na casa além da cozinheira e da outra criada, que nunca estavam por ali; minha querida, disse, em todo caso é melhor nos garantirmos, e com isso ele sentou-se e começamos a conversar, e agora, ainda que eu continuasse inflamada devido à sua primeira visita e pouco falasse, ele, por assim dizer, pôs palavras em minha boca, falando da paixão com que me amava e que, embora não pudesse mencionar tal desejo antes de entrar na posse do seu património, estava decidido a fazer-me feliz e também a sê-lo; disse que queria casar-se comigo e muitas outras palavras românticas, cuja verdadeira finalidade eu, pobre néscia, não compreendia, tendo-me portado como se não houvesse outra espécie de amor senão o que conduz ao matrimónio, e ao ouvi-lo falar de núpcias, não encontrava oportunidade nem me sentia com forças para dizer que não, se bem que ainda não houvéssemos chegado a esse ponto.
Não fazia muito tempo que conversávamos quando ele se pôs de pé e, deixando-me quase sem ar com os seus beijos, jogou-me na cama de novo; como ambos estivéssemos então bastante estimulados, ele foi mais longe do que a decência me permite referir, mas se ele houvesse tomado mais familiaridades do que quis, não estaria em meu poder negar-lhe alguma coisa naquele momento. Todavia, conquanto tenha tomado essas liberdades comigo, não chegou ao que chamam de último favor, o que, para lhe fazer justiça, ele nem tentou; essa renúncia voluntária serviu-lhe de pretexto para todas as liberdades em outras ocasiões depois dessa; findo o nosso encontro, ele pôs em minha mão quase um punhado de moedas de ouro e me deixou, fazendo mil protestos de paixão e afirmando amar-me mais do que a todas as mulheres do mundo.
Não há de parecer estranho que eu agora começasse a pensar, mas minhas reflexões eram, ai de mim!, pouquíssimo sólidas, eu tinha uma reserva quase ilimitada de vaidade e orgulho, e pouca reserva de virtude; é verdade que, uma vez por outra, perguntava-me o que meu senhor pretendia, porém não pensava em nada além das belas palavras e do ouro; se queria casar-se comigo ou não, parecia-me assunto de pouca importância, nem os meus pensamentos chegaram a sugerir a necessidade de tentar algum acordo em meu benefício, até que ele veio a fazer-me uma espécie de proposta formal. Assim, pois, abandonei-me sem o menor cuidado à possibilidade de me arruinar, e sou bom exemplo para todas as jovenzinhas cuja vaidade prevalece sobre a virtude; jamais se viu maior parvoíce por parte de duas pessoas, se eu tivesse procedido como devia e resistido, como impõem a virtude e a honra, o cavalheiro haveria desistido dos seus avanços ao ver que não tinha possibilidade alguma de alcançar os seus desígnios, ou teria feito propostas de casamento sérias e formais, e nesse caso quem o reprovasse não teria como reprovar a mim; em suma, se ele me conhecesse e tivesse percebido como era fácil conseguir a ninharia a que aspirava, não teria precisado quebrar tanto a cabeça, bastaria dar-me quatro ou cinco guinéus e teria se deitado comigo da próxima vez que viesse; se eu me tivesse dado conta dos seus desígnios e de como ele supunha ser difícil ganhar-me, poderia ter imposto as minhas próprias condições; e se eu não houvesse transigido em favor de um casamento imediato, poderia tê-lo feito em troca de uma manutenção até às núpcias e teria o que quisesse: ele já era mais do que rico, além do que viria ainda a herdar; eu parecia ter posto inteiramente de lado todos os pensamentos dessa espécie e só me deixava levar pelo orgulho de minha beleza e de saber-me amada por tal cavalheiro; quanto ao ouro, passava horas e horas a contemplá-lo, contava os guinéus inúmeras vezes, mais de mil por dia; nunca pobre criatura assim vaidosa esteve tão mergulhada em falsidade, sem atentar ao que me aguardava e que a ruína já quase batia à porta; na verdade, acredito que desejasse aquela ruína, uma vez que nada fazia para evitá-la». In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A vida Amorosa de Moll Flanders, Publicações Europa América, 1998, ISBN 978-972-104-443-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT