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A
Velha Senhora dos Canários
«(…) Se fosse uma pessoa, diria
dele que não dá confiança. Tão sensível ao medo como o companheiro, exprime-o lutando
a frio. E se o agarro, sacode-se sem parar, inconformado. Logo que se apanha a
salvo, atira um grito de cólera enquanto espaneja as penas desalinhadas. Não
vai mais longe a minha relação com estas aves. Uma ou duas vezes por semana
dou-lhes meia dúzia dos meus segundos, distraidamente. Sei que não me estimam
nem respeitam, sobretudo desde o dia em que vi a dona dos canários tratar
deles, com gestos tão firmes e serenos, que as aves não esvoaçavam: limitaram-se
a mudar de lugar, também serenamente, permitindo que a mão rugosa e sábia
retirasse o comedouro e o bebedouro de faiança branca e os repusesse frescos e
cheios, com os mesmos gestos sossegados. E a porta das gaiolas fechou-se com um
pequeno estalido de mola protectora. Por isto que vi, posso imaginar certas
horas na casa silenciosa. A dona dos canários vive sozinha. É já muito velha,
mas firme como os seus gestos, e anda sem ruído, calma, eficiente. Tem quase
sempre um fito, um pequeno trabalho que a ocupa, mas, com tanta idade, tem também
horas de pausa, que seriam repouso se não fossem antes contemplação de um
passado que se amplia constantemente, abrangendo, além da vida própria, também
as múltiplas vidas que por muito ou pouco tempo interferiram na sua.
Então, a senhora dos canários vai
sentar-se numa cadeira da marquise, com as mãos abandonadas no regaço, meio
abertas e voltadas para cima como cascas de amêndoa, como barcas encalhadas.
Fica muito direita, enquanto as recordações começam a afluir em vagas mansas
que a submergem e escorrem por ela, pelos olhos brandos, pelas faces ainda
lisas entre os sulcos fundos das rugas, até caírem nas mãos que são como taças
de um jardim fechado. A casa, nestes momentos, parece cobrir-se de musgo. Um
dos canários lança um trinado tímido. O outro responde. E como na casa nada se
mexe e a senhora olha fixamente não se sabe o quê, as aves arremetem um canto
interminável, rio sonoro que alastrasse em mil braços numa planície de silêncio.
A senhora não se move. Talvez não ouça os pássaros, mas eles cantam, cantam,
cantam.
E
Agora, José?
Há versos célebres que se
transmitem através das idades do homem, como roteiros, bandeiras, cartas de
marear, sinais de trânsito, bússolas, ou segredos. Este, que veio ao mundo
muito depois de mim, pelas mãos de Carlos Drummond Andrade, acompanha-me desde
que nasci, por um desses misteriosos acasos que fazem do que viveu já, do que
vive e do que ainda não vive, um mesmo nó apertado e vertiginoso de tempo sem
medida. Considero privilégio meu dispor deste verso, porque me chamo José e
muitas vezes na vida me tenho interrogado: e agora? Foram aquelas horas em que
o mundo escureceu, em que o desânimo se fez muralha, fosso de víboras, em que
as mãos ficaram vazias e atónitas. E agora, José? Grande, porém, é o
poder da poesia para que aconteça, como juro que acontece, que esta pergunta
simples aja como um tónico, um golpe de espora, e não seja, como poderia ser,
tentação, o começo da interminável ladainha que é a piedade por nós próprios.
Em todo o caso, há situações de
tal modo absurdas (ou que o pareceriam vinte e quatro horas antes), que não se
pode censurar a ninguém um instante de desconforto total, um segundo em que
tudo dentro de nós pede socorro, ainda que saibamos que logo a seguir a mola
pisada, violentada, se vai distender vibrante e verticalmente afirmar. Nesse
momento veloz tocara-se o fundo do poço. Mas outros Josés andam pelo mundo, não
o esqueçamos nunca. A eles também sucedem casos, desencontros, acidentes,
agressões, de que saem às vezes vencedores, às vezes vencidos. Alguns não têm
nada nem ninguém a seu favor, e esses são, afinal, os que tornam
insignificantes e fúteis as nossas penas. A esses, que chegaram ao limite das
forças, acuados a um canto pela matilha, sem coragem para o último ainda que
mortal arranco, é que a pergunta de Carlos Drummond Andrade deve ser feita,
como um derradeiro apelo ao orgulho de ser homem: e agora, José?
Precisamente um desses casos me
mostra que já falei demasiado de mim. Um outro José está diante da mesa onde
escrevo. Não tem rosto, é um vulto apenas, uma superfície que treme como uma
dor contínua. Sei que se chama José Júnior, sem mais riqueza de apelidos e
genealogias, e vive em São Jorge da Beira. É novo, embriaga-se, e tratam-no
como se fosse uma espécie de bobo. Divertem-se à sua custa alguns adultos, e as
crianças fazem-lhe assuadas, talvez o apedrejem de longe. E se isto não
fizeram, empurraram-no com aquela súbita crueldade das crianças, ao mesmo tempo
feroz e cobarde, e o José Júnior, perdido de bêbedo, caiu e partiu uma perna,
ou talvez não, e foi para o hospital. Mísero corpo, alma pobre, orgulho ausente.
E agora, José?» In José Saramago, A Bagagem do Viajante, 1973, Editorial Futura,
Editora Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-339-6.
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