sábado, 18 de agosto de 2018

A Bagagem do Viajante. José Saramago. «Em todo o caso, há situações de tal modo absurdas (ou que o pareceriam vinte e quatro horas antes), que não se pode censurar a ninguém um instante de desconforto total, um segundo em que tudo dentro de nós pede socorro…»

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A Velha Senhora dos Canários
«(…) Se fosse uma pessoa, diria dele que não dá confiança. Tão sensível ao medo como o companheiro, exprime-o lutando a frio. E se o agarro, sacode-se sem parar, inconformado. Logo que se apanha a salvo, atira um grito de cólera enquanto espaneja as penas desalinhadas. Não vai mais longe a minha relação com estas aves. Uma ou duas vezes por semana dou-lhes meia dúzia dos meus segundos, distraidamente. Sei que não me estimam nem respeitam, sobretudo desde o dia em que vi a dona dos canários tratar deles, com gestos tão firmes e serenos, que as aves não esvoaçavam: limitaram-se a mudar de lugar, também serenamente, permitindo que a mão rugosa e sábia retirasse o comedouro e o bebedouro de faiança branca e os repusesse frescos e cheios, com os mesmos gestos sossegados. E a porta das gaiolas fechou-se com um pequeno estalido de mola protectora. Por isto que vi, posso imaginar certas horas na casa silenciosa. A dona dos canários vive sozinha. É já muito velha, mas firme como os seus gestos, e anda sem ruído, calma, eficiente. Tem quase sempre um fito, um pequeno trabalho que a ocupa, mas, com tanta idade, tem também horas de pausa, que seriam repouso se não fossem antes contemplação de um passado que se amplia constantemente, abrangendo, além da vida própria, também as múltiplas vidas que por muito ou pouco tempo interferiram na sua.
Então, a senhora dos canários vai sentar-se numa cadeira da marquise, com as mãos abandonadas no regaço, meio abertas e voltadas para cima como cascas de amêndoa, como barcas encalhadas. Fica muito direita, enquanto as recordações começam a afluir em vagas mansas que a submergem e escorrem por ela, pelos olhos brandos, pelas faces ainda lisas entre os sulcos fundos das rugas, até caírem nas mãos que são como taças de um jardim fechado. A casa, nestes momentos, parece cobrir-se de musgo. Um dos canários lança um trinado tímido. O outro responde. E como na casa nada se mexe e a senhora olha fixamente não se sabe o quê, as aves arremetem um canto interminável, rio sonoro que alastrasse em mil braços numa planície de silêncio. A senhora não se move. Talvez não ouça os pássaros, mas eles cantam, cantam, cantam.

E Agora, José?
Há versos célebres que se transmitem através das idades do homem, como roteiros, bandeiras, cartas de marear, sinais de trânsito, bússolas, ou segredos. Este, que veio ao mundo muito depois de mim, pelas mãos de Carlos Drummond Andrade, acompanha-me desde que nasci, por um desses misteriosos acasos que fazem do que viveu já, do que vive e do que ainda não vive, um mesmo nó apertado e vertiginoso de tempo sem medida. Considero privilégio meu dispor deste verso, porque me chamo José e muitas vezes na vida me tenho interrogado: e agora? Foram aquelas horas em que o mundo escureceu, em que o desânimo se fez muralha, fosso de víboras, em que as mãos ficaram vazias e atónitas. E agora, José? Grande, porém, é o poder da poesia para que aconteça, como juro que acontece, que esta pergunta simples aja como um tónico, um golpe de espora, e não seja, como poderia ser, tentação, o começo da interminável ladainha que é a piedade por nós próprios.
Em todo o caso, há situações de tal modo absurdas (ou que o pareceriam vinte e quatro horas antes), que não se pode censurar a ninguém um instante de desconforto total, um segundo em que tudo dentro de nós pede socorro, ainda que saibamos que logo a seguir a mola pisada, violentada, se vai distender vibrante e verticalmente afirmar. Nesse momento veloz tocara-se o fundo do poço. Mas outros Josés andam pelo mundo, não o esqueçamos nunca. A eles também sucedem casos, desencontros, acidentes, agressões, de que saem às vezes vencedores, às vezes vencidos. Alguns não têm nada nem ninguém a seu favor, e esses são, afinal, os que tornam insignificantes e fúteis as nossas penas. A esses, que chegaram ao limite das forças, acuados a um canto pela matilha, sem coragem para o último ainda que mortal arranco, é que a pergunta de Carlos Drummond Andrade deve ser feita, como um derradeiro apelo ao orgulho de ser homem: e agora, José?
Precisamente um desses casos me mostra que já falei demasiado de mim. Um outro José está diante da mesa onde escrevo. Não tem rosto, é um vulto apenas, uma superfície que treme como uma dor contínua. Sei que se chama José Júnior, sem mais riqueza de apelidos e genealogias, e vive em São Jorge da Beira. É novo, embriaga-se, e tratam-no como se fosse uma espécie de bobo. Divertem-se à sua custa alguns adultos, e as crianças fazem-lhe assuadas, talvez o apedrejem de longe. E se isto não fizeram, empurraram-no com aquela súbita crueldade das crianças, ao mesmo tempo feroz e cobarde, e o José Júnior, perdido de bêbedo, caiu e partiu uma perna, ou talvez não, e foi para o hospital. Mísero corpo, alma pobre, orgulho ausente. E agora, José?» In José Saramago, A Bagagem do Viajante, 1973, Editorial Futura, Editora Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-339-6.

Cortesia de EFutura/ECaminho/JDACT