quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Histórias íntimas. Mary del Priore. «Nas classes populares, a privacidade era um luxo que ninguém tinha. Dormia-se em redes, esteiras ou em raríssimos catres compartilhados por muitos membros da família. Os cómodos serviam para tudo…»

jdact e wikipedia

E Depois, o Inferno
«(…) Ao ver que fora roubado do seu, trazido com dificuldade na caravela que o levara da cidade do Porto para Pernambuco, deu de dizer palavras de cólera e que o Diabo o levasse de seu corpo, numa explosão de rara fúria. Conclusão? Foi denunciado à Inquisição (maldita) por blasfémia. Embora longe da higienização de nossos dias, certa sensibilidade ao cheiro do corpo ia-se instalando. Os processos de divórcio apresentados à Igreja Católica revelam traços da intolerância de certos cônjuges em função do odor. O mau cheiro impedia as suas relações sexuais. Em São Paulo, na segunda metade do século XVIII, por exemplo, Ana Luísa Meneses acusava o cônjuge de pitar tabaco de fumo, que lhe conferia um terrível hálito que se faz insuportável a quem dele participa. E Maria Leite Conceição reclamava dos pés e pernas inchadas do seu, das quais exalava um mau cheiro insuportável. Como se vê, o embate conjugal não passava longe de alguns critérios de sensibilidade feminina.
E onde se exerciam os rituais de intimidade? Um viajante inglês responde: as casas têm em geral três ou quatro andares. Internamente, essas residências são muito mal mobiliadas, ainda que muitas delas tenham quartos adornados com bonitas pinturas. As moradas até podiam ser belas, mas o seu interior raramente era limpo. Os aposentos, por vezes, eram varridos com uma espécie de vassoura feita com bambu. Água no chão? Nunca. As paredes das casas, raramente pintadas uma segunda vez depois da caiação original, tornavam-se amarelas. Os cubículos dos quartos quase nunca eram abertos à acção purificadora do ar livre, nem tampouco expostas as camas, embora húmidas de suor. A fim de tornar os quartos toleráveis e deles expulsar os miasmas de que se acham penetrados, costumam-se queimar substâncias odoríferas logo antes da hora de se recolher. Tais odores também mantinham afastados, por curto espaço de tempo, os atacantes invisíveis: mosquitos, baratas, percevejos e outras imundícies. Os detritos só eram removidos uma vez por semana. Os penicos estavam em toda a parte e seu conteúdo, sempre fresco, era jogado nas ruas e praias. Decididamente, não era esse o ambiente ideal para encontros eróticos, como os concebemos hoje.
Nas classes populares, a privacidade era um luxo que ninguém tinha. Dormia-se em redes, esteiras ou em raríssimos catres compartilhados por muitos membros da família. Os cómodos serviam para tudo: ali recebiam-se os amigos, realizavam-se os trabalhos manuais, rezava-se, cozinhava-se e dormia-se. A precariedade não dava espaço para o leito conjugal, essa encruzilhada do sono, do amor e da morte. Entre os poderosos, a multiplicação de quartos nas residências não significava garantia de privacidade. Todos davam para o mesmo corredor e raramente tinham janelas. Ouvidos indiscretos estavam em toda a parte. Frestas nas paredes permitiam espiar. Chaves eram artefactos caríssimos e as portas, portanto, não se trancavam. Na alcova podia haver uma cama coberta por mosquiteiro, colchão rijo, travesseiros redondos e chumaços, e excelentes lençóis. Elemento de ostentação nas casas ricas, a cama traduzia um nível de vida: a conquista do tempo e da liberdade. Mas, para suas intimidades, os casais sentiam-se mais à vontade pelos matos, nas praias, nos campos, na relva. Longe dos olhos e ouvidos dos outros.
Nessa época, na Europa, as camas com baldaquino, com as cortinas fechadas, ofereciam a possibilidade de isolamento. Aqui, só chegaram mais tarde, aparecendo nos ex-votos de madeira dos finais do século XVIII. Respeitava-se a regra: ao trocar de roupa, ninguém olhava. Na Europa, graças à criação da sala de banhos e do boudoir, reuniram-se as condições de exercício de uma nova forma de erotismo. Entre nós, porém, o penico vigorou até os fins do século XIX, empestando o ambiente. Quanto ao asseio e às regras de civilidade, contudo, havia muito que aprender. Os moradores da Colónia ainda estavam muito próximos de comportamentos julgados selvagens na Europa. Lá, desde a Idade Moderna, já se desaconselhava arrotar ou flatar em público. Na época das reformas religiosas, no século XVI, nos vários manuais de civilidade publicados graças ao aparecimento da imprensa, se recomendava apertar os glúteos com força, não deixando escapar nada de mau gosto. Ou que os ruídos fossem abafados pelos de uma falsa tosse. Às senhoras que sofriam de gases, era sugerido ter sempre cachorrinhos como companhia. Aos pobres quadrúpedes eram atribuídos os maus cheiros ou os ruídos anormais.
Entre nós, os flatos eram combatidos, segundo o cirurgião barbeiro Luís Gomes Ferreira, actuante em Minas Gerais, em 1735, com copinhos ou dedais de aguardente. Aqui, os limites para suportar o mau cheiro corporal não só ficavam evidentes no quotidiano, como eram tolerados. O melhor narrador sobre o tema é Gregório Matos. A sua obra poética está recheada de factos do dia a dia. Muitos de seus poemas foram oferecidos, por exemplo: a uma mulher que se bor… na igreja em quinta-feira de Endoenças; a uma mulher corpulenta que em noite de Natal soltou um gas para chegar ao confessionário, etc. O tímido desgosto frente à nudez e ao mau cheiro reforçava, contudo, as normas culturais do início dos tempos modernos. Apesar de a sujeira estar em toda parte, as pessoas apontavam-na com o dedo e começavam a se incomodar. Os maus modos também começaram a ser notados. Sobretudo, defecar e urinar em público, expondo as partes íntimas, chocava. Que o diga John Barrow, que, em seu relato A Voyage to Conchinchina in the Years of 1792 and 1793, registou o hábito das mulheres de urinar descaradamente nas ruas do Rio. O certo era fazê-lo contra um muro, cobrindo o sexo, na tentativa de proteger-se dos olhares alheios. Se a intimidade não era regra para todos, cobrir o sexo era lei. O Renascimento, apesar de o seu amor pela beleza física, jamais discutiu a questão da nudez. Deu-lhe apenas outro sentido». In Mary del Priore, Histórias íntimas, Sexualidade e erotismo na história do Brasil, Editora Planeta do Brasil, São Paulo, CDD-302-309-81, 2011, ISBN 978-857-665-608-1.

Cortesia de EPlaneta/JDACT