E
Depois, o Inferno
«(…) Ao ver que fora roubado do
seu, trazido com dificuldade na caravela que o levara da cidade do Porto para
Pernambuco, deu de dizer palavras de cólera e que o Diabo o levasse de seu
corpo, numa explosão de rara fúria. Conclusão? Foi denunciado à Inquisição (maldita) por blasfémia. Embora
longe da higienização de nossos dias, certa sensibilidade ao cheiro do corpo
ia-se instalando. Os processos de divórcio apresentados à Igreja Católica
revelam traços da intolerância de certos cônjuges em função do odor. O mau
cheiro impedia as suas relações sexuais. Em São Paulo, na segunda metade do
século XVIII, por exemplo, Ana
Luísa Meneses acusava o cônjuge de pitar tabaco de fumo, que lhe conferia um terrível
hálito que se faz insuportável a quem dele participa. E Maria Leite Conceição
reclamava dos pés e pernas inchadas do seu, das quais exalava um mau cheiro
insuportável. Como se vê, o embate conjugal não passava longe de alguns
critérios de sensibilidade feminina.
E onde se exerciam os rituais de
intimidade? Um viajante inglês responde: as casas têm em geral três ou quatro
andares. Internamente, essas residências são muito mal mobiliadas, ainda que
muitas delas tenham quartos adornados com bonitas pinturas. As moradas até
podiam ser belas, mas o seu interior raramente era limpo. Os aposentos, por vezes,
eram varridos com uma espécie de vassoura feita com bambu. Água no chão? Nunca.
As paredes das casas, raramente pintadas uma segunda vez depois da caiação
original, tornavam-se amarelas. Os cubículos dos quartos quase nunca eram
abertos à acção purificadora do ar livre, nem tampouco expostas as camas,
embora húmidas de suor. A fim de tornar os quartos toleráveis e deles expulsar
os miasmas de que se acham penetrados, costumam-se queimar substâncias
odoríferas logo antes da hora de se recolher. Tais odores também mantinham
afastados, por curto espaço de tempo, os atacantes invisíveis: mosquitos,
baratas, percevejos e outras imundícies. Os detritos só eram removidos uma vez por
semana. Os penicos estavam em toda a parte e seu conteúdo, sempre fresco, era
jogado nas ruas e praias. Decididamente, não era esse o ambiente ideal para
encontros eróticos, como os concebemos hoje.
Nas classes populares, a
privacidade era um luxo que ninguém tinha. Dormia-se em redes, esteiras ou em
raríssimos catres compartilhados por muitos membros da família. Os cómodos serviam
para tudo: ali recebiam-se os amigos, realizavam-se os trabalhos manuais,
rezava-se, cozinhava-se e dormia-se. A precariedade não dava espaço para o
leito conjugal, essa encruzilhada do sono, do amor e da morte. Entre os
poderosos, a multiplicação de quartos nas residências não significava garantia
de privacidade. Todos davam para o mesmo corredor e raramente tinham janelas.
Ouvidos indiscretos estavam em toda a parte. Frestas nas paredes permitiam
espiar. Chaves eram artefactos caríssimos e as portas, portanto, não se
trancavam. Na alcova podia haver uma cama coberta por mosquiteiro, colchão
rijo, travesseiros redondos e chumaços, e excelentes lençóis. Elemento de
ostentação nas casas ricas, a cama traduzia um nível de vida: a conquista do
tempo e da liberdade. Mas, para suas intimidades, os casais sentiam-se mais à
vontade pelos matos, nas praias, nos campos, na relva. Longe dos olhos e
ouvidos dos outros.
Nessa época, na Europa, as camas
com baldaquino, com as cortinas fechadas, ofereciam a possibilidade de
isolamento. Aqui, só chegaram mais tarde, aparecendo nos ex-votos de madeira
dos finais do século XVIII.
Respeitava-se a regra: ao trocar de roupa, ninguém olhava. Na Europa, graças à
criação da sala de banhos e do boudoir,
reuniram-se as condições de exercício de uma nova forma de erotismo. Entre nós,
porém, o penico vigorou até os fins do século XIX, empestando o ambiente. Quanto ao asseio e às regras de
civilidade, contudo, havia muito que aprender. Os moradores da Colónia ainda
estavam muito próximos de comportamentos julgados selvagens na Europa. Lá,
desde a Idade Moderna, já se desaconselhava arrotar ou flatar em público. Na época
das reformas religiosas, no século XVI,
nos vários manuais de civilidade publicados graças ao aparecimento da imprensa,
se recomendava apertar os glúteos com força, não deixando escapar nada de mau
gosto. Ou que os ruídos fossem abafados pelos de uma falsa tosse. Às senhoras
que sofriam de gases, era sugerido ter sempre cachorrinhos como companhia. Aos
pobres quadrúpedes eram atribuídos os maus cheiros ou os ruídos anormais.
Entre
nós, os flatos eram combatidos, segundo o cirurgião barbeiro Luís Gomes
Ferreira, actuante em Minas Gerais, em 1735,
com copinhos ou dedais de aguardente. Aqui, os limites para suportar o mau
cheiro corporal não só ficavam evidentes no quotidiano, como eram tolerados. O
melhor narrador sobre o tema é Gregório Matos. A sua obra poética está recheada
de factos do dia a dia. Muitos de seus poemas foram oferecidos, por exemplo: a
uma mulher que se bor… na igreja em quinta-feira de Endoenças; a uma mulher
corpulenta que em noite de Natal soltou um gas para chegar ao confessionário,
etc. O tímido desgosto frente à nudez e ao mau cheiro reforçava, contudo, as
normas culturais do início dos tempos modernos. Apesar de a sujeira estar em
toda parte, as pessoas apontavam-na com o dedo e começavam a se incomodar. Os
maus modos também começaram a ser notados. Sobretudo, defecar e urinar em
público, expondo as partes íntimas, chocava. Que o diga John Barrow, que, em
seu relato A Voyage to Conchinchina
in the Years of 1792 and 1793, registou o hábito das mulheres de
urinar descaradamente nas ruas do Rio. O certo era fazê-lo contra um muro,
cobrindo o sexo, na tentativa de proteger-se dos olhares alheios. Se a
intimidade não era regra para todos, cobrir o sexo era lei. O Renascimento,
apesar de o seu amor pela beleza física, jamais discutiu a questão da nudez.
Deu-lhe apenas outro sentido». In Mary del Priore, Histórias íntimas,
Sexualidade e erotismo na história do Brasil, Editora Planeta do Brasil, São Paulo,
CDD-302-309-81, 2011, ISBN 978-857-665-608-1.
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