«(…) Os pensamentos de Malone
oscilavam entre a curiosidade e a apreensão. Sabia que o melhor seria regressar
à sua livraria e esquecer Stephanie Nelle, e o que quer que ela andasse a
tramar. Os assuntos dela já não lhe diziam respeito. Contudo, também estava
consciente que isso não iria acontecer. Algo se passava e não era coisa boa. Avistou
Stephanie cinquenta metros mais à frente, na Verstergade, outra das compridas
ruas que cruzavam o movimentado bairro comercial de Copenhaga. Caminhava numa
passada decidida e apressada, e virou subitamente à direita e desapareceu no
interior de um dos edifícios. Malone estugou o passo e viu a placa na porta
HANSEN’S ANTIK VARIAT, uma livraria cujo proprietário fora uma das poucas pessoas
que não o recebera de forma acolhedora. Peter Hansen não gostava de
estrangeiros, em especial de americanos, e chegara mesmo a tentar impedir a
admissão de Malone na Associação de Alfarrabistas da Dinamarca. Felizmente para
si, a aversão de Hansen não se tornara contagiosa.
Os velhos instintos começavam a
dominá-lo, sentimentos que tinham permanecido adormecidos desde que se retirara
no ano anterior. Sensações que não lhe agradavam, mas que sempre o haviam
motivado. Estacou a pouca distância da porta e viu Stephanie no interior da
livraria, a conversar com Peter Hansen. Os dois recolheram-se mais para o interior
da loja, que ocupava o rés-do-chão do edifício de três andares. Malone conhecia
bem a disposição do interior, tendo no ano anterior estudado as livrarias de Copenhaga.
Eram quase todas um exemplo da disciplina nórdica, com as estantes organizadas
por assuntos e os livros cuidadosamente arrumados. Hansen, contudo, era mais
informal, sendo a sua livraria uma mistura eclética de velho e novo, em
especial novo, pois não estava para pagar muito dinheiro por aquisições
particulares. Malone esgueirou-se para o interior e esperou que nenhum dos empregados
desse pela sua presença e o chamasse. Jantara algumas vezes com a gerente da
loja e fora num desses jantares que ficara a saber que não era a pessoa de quem
Hansen mais gostava. Por sorte, ela não estava por perto e havia pouca gente em
volta das estantes, não mais do que uma dezena de pessoas. Avançou com destreza
até às traseiras onde sabia existirem uma miríade de compartimentos repletos de
estantes. Apesar disso, não se sentia bem por estar a fazer aquilo. Afinal de
contas, Stephanie ligara-lhe apenas para dizer que estava na cidade por umas
horas e que gostaria de o ver. Mas isso fora antes do incidente com o homem da
faca.
Agora estava demasiado curioso e
desejava saber o que levara aquele homem ao suicídio. Não deveria sequer estar
surpreendido com o comportamento de Stephanie. Sempre guardara as coisas muito
para si própria, demasiado até, e isso havia por vezes gerado alguns
confrontos. Uma coisa era estar em segurança a trabalhar num gabinete em
Atlanta, outra bem diferente era andar no terreno. Era impossível tomar
decisões sensatas sem boas informações. Viu Stephanie e Hansen numa pequena
sala sem janelas que este usava como escritório. Já ali estivera da primeira
vez que tentara travar amizade com o idiota. Hansen era um homem robusto com o
nariz comprido e bigode grisalho. Malone posicionou-se atrás de uma fila de
prateleiras repletas de livros e pegou num, fingindo ler. E o que a fez
deslocar-se de tão longe por isto?, perguntava Hansen na sua voz arquejante. Está
a par do leilão de Roskilde? Era típico de Stephanie, responder a uma pergunta
com outra. Vou lá muitas vezes. Há muitos livros à venda.
Malone também conhecia o leilão.
Roskilde ficava a trinta minutos a oeste de Copenhaga. Os negociantes de livros
antigos da cidade reuniam-se de três em três meses para uma venda que atraía
compradores de toda a Europa. Dois meses depois de abrir a sua loja, Malone
havia ganho perto de duzentos mil euros no leilão com a venda de quatro livros
que encontrara numa obscura venda imobiliária na República Checa. Aqueles
fundos tinham-lhe permitido passar de trabalhador assalariado a empresário com
uma vida mais calma. No entanto, também haviam gerado cobiça e Peter Hansen não
escondera a sua inveja. Preciso do livro de que falámos. Esta noite. Disse-me
que não teria problemas em comprá-lo, disse Stephanie num tom de quem estava habituada
a dar ordens. Hansen soltou uma risada. Vocês americanos são todos iguais.
Pensam que o mundo gira em vosso redor.
O
meu marido disse que o senhor era capaz de encontrar uma agulha num palheiro. O
livro que desejo já foi encontrado, só preciso que o compre. Pertencerá a quem
fizer a melhor oferta. Malone estremeceu. Stephanie não fazia ideia do
território perigoso em que estava a entrar. A primeira regra do negócio era não
mostrar o quanto se desejava o objecto. É um livro pouco conhecido e que não
interessa a ninguém, explicou ela. Mas pelos vistos interessa-lhe a si, o que
significa que existirão outros. Basta-nos fazer a melhor oferta. E por que
razão é este livro tão importante? Nunca antes ouvi falar dele e o autor é
desconhecido. Exigiu explicações ao meu marido? O que quer dizer com isso? Que
não é da sua conta. Adquira o livro e receberá a sua percentagem, como
combinado. E por que não o compra a senhora? Não pretendo explicar-lhe os meus
motivos. O seu marido era bem mais simpático. Pois, mas está morto». In Steve Berry, O
Legado dos Templários, 2006, Publicações dom Quixote, 2007, ISBN
978-972-203-808-9.
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