Palácio
de Dogmersfield. Hampshire. Outono de 1501
«(…)
Tenho de sair, consegui apenas o mais breve dos
adiamentos da pena e sei que ele me espera do outro da porta e já demonstrou, de
modo bastante persuasivo, que se não for ter consigo a montanha virá a Maomé, e
serei novamente envergonhada. Afasto dona Elvira, como aia não pode proteger-me
neste momento, e dirijo-me à porta do quarto. Os meus empregados estão
petrificados, como escravos enfeitiçados num conto de fadas, por este
comportamento extraordinário vindo de um rei. O coração pulsa-me nos ouvidos e
eu conheço o embaraço de uma rapariga, por ter ele se apresentar em público,
mas também o desejo de um soldado de deixar que a batalha comece, a avidez de
conhecer o pior, mas mais de encarar o perigo do que de lhe escapar. Henrique
de Inglaterra quer que conheça o filho, diante do seu grupo de acompanhantes,
sem cerimónias, sem dignidade, como se não passássemos de um bando de
camponeses. Assim seja. Não vai encontrar uma princesa da Espanha a recuar por
medo. Cerro os dentes, e sorrio como a minha mãe me ensinou. Aceno para o meu
arauto, que está tão espantado como o resto dos meus companheiros. Anunciai-me,
ordeno-lhe. Com o rosto branco de susto, ele abre a porta. A Infanta Catarina,
princesa da Espanha e Princesa de Gales, grita. Esta sou eu. Este é o meu
momento. Este é o meu grito de guerra. Dou um passo em frente.
A Infanta Espanhola, de rosto exposto ao olhar de todos os homens,
permaneceu na ombreira escurecida da porta e depois entrou na sala, apenas uma
pequena chama de cor em ambas as faces denunciava a sua provação. Ao lado do
pai, o príncipe Artur engolia em seco. Era bastante mais bonita do que ele
imaginara, e um milhão de vezes mais altiva. Estava vestida com um roupão de
veludo negro, que se abria para revelar uma camisa de dormir cor de pele, com
um decote quadrado e profundo, cobrindo os seus seios fartos, ao pescoço,
trazia várias fiadas de pérolas, o cabelo castanho, libertado da trança, caía-lhe
pelas costas numa enorme onda de vermelho dourado. Na cabeça, trazia uma
mantilha de renda preta atirada determinadamente para trás, esboçou uma
grandereverência e voltou a levantar-se de cabeça bem erguida, graciosa como
uma bailarina. Peço perdão por não estar preparada para vos saudar, disse em
francês. Se soubesse que viríeis, estaria preparada.
Surpreende-me que não tenhais ouvido o barulho, respondeu o rei. Eu estava
a discutir à vossa porta, há quase dez minutos. Julguei que fossem duas sentinelas
a gritar, disse friamente. Artur conteve um suspiro de horror perante a impertinência;
mas o seu pai observava-a com um sorriso, como se tratasse de uma nova potra que
revelasse um espírito prometedor. Não. Era eu; estava a ameaçar a vossa dama de
companhia. Lamento ter sido obrigado a forçar a entrada. Ela inclinou a cabeça.
Era a minha aia, dona Elvira. Lamento se foi desagradável convosco. O seu
inglês não é muito bom. Não deve ter percebido o que pretendíeis. Eu queria ver
a minha nora e o meu filho queria ver a noiva, e eu espero que uma princesa
inglesa se comporte como uma princesa inglesa, e não como uma maldita rapariga
confinada a um harém. Pensei que os vossos pais haviam derrotado os mouros. Não
esperei vê-los transformados em vossos modelos. Catarina ignorou o insulto com
um leve rodar de cabeça». In Philippa Gregory, Catarina de Aragão,
A Princesa Determinada, Livraria Civilização Editora, 2006, ISBN
978-972-262-455-8.
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