terça-feira, 7 de agosto de 2018

A Virgem e o Cigano. DH Lawrence. «Os seus olhos passavam de rosto para rosto, muito activos, numa busca impiedosa daquilo que ela desejava. Entretanto, o homem, aparentemente seu marido…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Eh? Mas, então, e as horas?, gritou Leo. Oh, deixa lá as horas! Há sempre alguém preocupado com as horas!, exclamou Lucille. Bom, se não se importam com as horas a que vão chegar, pois eu também não!, disse Leo, heroicamente. O cigano mantivera-se sentado na parte lateral da carroça, descontraído, observando os rostos. Depois, saltou para o chão, os joelhos um pouco entorpecidos. Era, aparentemente, um homem com mais de trinta anos e, à sua maneira, um janota. Usava uma espécie de jaqueta de caça, de peitorais duplos, que lhe chegava à cintura, feita de um tecido de lã grosseiro, num tom verde-escuro, umas calças pretas bastante justas, botas pretas e um boné verde-escuro e ao pescoço um grande lenço de seda amarelo e vermelho. Tinha uma aparência curiosamente elegante e bastante dispendiosa, dentro do seu estilo cigano. Era bonito, também, de queixo erguido, com a tradicional vaidade cigana e, agora, aparentemente, sem já se importar com os estranhos, conduzia o seu cavalo para fora da estrada, preparando-se para fazer recuar a carroça.
As raparigas viram, então, pela primeira vez, uma profunda reentrância num dos lados da estrada e duas grandes carroças a deitarem fumo. Yvette desceu rapidamente. Tinham de súbito chegado a uma pedreira abandonada, cortada na falésia ao lado da estrada, e neste covil, quase como uma espécie de gruta, encontravam-se três outras grandes carroças, desarmadas, até passar o Inverno. Havia também, lá mais para o fundo, um abrigo construído com ramagens, um estábulo para o cavalo. A rocha cinzenta e nua erguia-se muito acima das carroças e curvava para fora, para o lado da estrada. O pavimento era constituído por lajes, entre as quais cresciam ervas. Era um acampamento de Inverno, confortável e quente. A mulher idosa, que carregava o fardo, entrara numa das carroças e deixara a porta aberta. Duas crianças espreitavam, exibindo as suas cabeças escuras. O cigano chamou alguém, enquanto fazia a carroça recuar para dentro da pedreira, e surgiu um homem já velho, para o ajudar a desatrelar o cavalo.
O cigano subiu os degraus da carroça mais nova, a que tinha a porta fechada. Por debaixo da carroça estava amarrado um cão, que correu para a frente até ao limite da corda. Era um cão branco, malhado, de um tom castanho-amarelado. Rosnou surdamente, quando Leo e Bob se aproximaram. Nesse mesmo instante, uma cigana de cara muito morena, com um grande lenço cor-de-rosa em volta da cabeça e enormes brincos de ouro nas orelhas, desceu os degraus da carroça mais nova, balançando a sua volumosa saia verde, cheia de folhos. Era de certo modo bonita, com uma cara comprida, atrevida, um pouco animalesca. Parecia-se com uma daquelas ciganas espanholas, atrevidas e ondeantes. Bom dia, senhoras e cavalheiros, disse, mirando as raparigas com os seus olhos ousados de ave de rapina. Falava com um certo sotaque estrangeiro. Boa tarde!, responderam as raparigas. Qual das lindas meninas quer ouvir a sua sina? Qual é que me dá a sua mãozinha?
Era uma mulher alta, com uma assustadora maneira de esticar o pescoço para a frente, como uma ameaça. Os seus olhos passavam de rosto para rosto, muito activos, numa busca impiedosa daquilo que ela desejava. Entretanto, o homem, aparentemente seu marido, surgiu no alto dos degraus da carroça, fumando um cachimbo e com uma criança pequena, de cabelos pretos, nos braços. Ficou de pé, apoiado nas suas pernas flexíveis, olhando distraidamente para baixo, para o grupo, como se estivesse a vê-los à distância, as longas pestanas negras bem erguidas por cima dos olhos negros, presunçosos e impudentes. Um olhar peculiar, que transmitia qualquer coisa. Yvette sentiu-o, sentiu-o nos seus joelhos. Fingiu estar interessada no cão branco e castanho. Quanto é que quer para nos ler a sina a todos?, perguntou Lottie Framley, enquanto os seis jovens cristãos de frescas faces recuavam, um pouco relutantemente, ante esta mulher paga e nómada. A todos? As senhoras e os cavalheiros, todos?, perguntou a mulher, astutamente. Não quero que leiam a minha! Façam-no vocês!, gritou Leo. Eu também não, disse Bob. As quatro raparigas. As quatro senhoras?, perguntou a cigana, olhando-as perspicazmente, depois de ter observado os rapazes». In DH Lawrence, A Virgem e o Cigano, 1926, Editora Assírio & Alvim, 1984, colecção O Imaginário, ISBN 978-972-370-164-7.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT