jdact
Afonso
Henriques
Nascimento de
uma nação...
«As
figuras que marcam a vida dos povos tendem a ser mitificadas. É natural que assim
aconteça. O mito é, com efeito, a explicação das origens. Pelo mito procura-se compreender
a realidade. E o mistério do destino humano, em todas as suas vertentes, tende a
buscar razões invisíveis para explicar o curso dos acontecimentos históricos. Isso
torna-se evidente quando queremos representar a realidade da vida. E a grande dramaturgia
faz-se da procura e da interrogação sobre os mitos e os seus mistérios. Shakespeare
fez da recriação das personagens históricas tema para a complexa interrogação sobre
a humanidade. Mais do que o evento, interessou-lhe a complexidade do fator humano.
E diga-se, em abono da verdade, que no caso português o mito ganha um especial significado
histórico e cultural. Antes do mais, pela improbabilidade essencial de uma independência
política no ocidente da Península Ibérica, sem outra explicação que não a determinação
dos povos e dos seus desígnios, numa rara compreensão da importância da frente
aberta onde a terra se acaba e o mar começa, que o tempo pôde favorecer; mas
também pela influência do que muitos autores designaram como fundo céltico,
enquanto ponto de encontro de tradições indo-europeias ancestrais, que
acompanharam o povoamento europeu, desde os gálatas aos galegos, dos megálitos aos
heróis das florestas, com uma rica criatividade poética, artística e dramática.
E o certo é que esse sentido teatral enriquece a compreensão dos mitos. Não há mitologia
sem representação.
O drama que é apresentado nesta obra
do cineasta, e escritor José Carlos Oliveira, que ora se irá ler, nasce sob o signo
de um paradoxo primordial, que é, de si, um excelente ponto de partida mítico. Falamos
da ambição, mas também da revolta, vividas por dona Teresa, mãe do nosso primeiro
Rei, ante sua irmã Urraca e o defeito físico que atingiu à nascença o futuro Rei
português, sinal que não impedirá alguém vocacionado para a maior glória, como figura
histórica marcante. Assistimos, assim, à dramatização do nascimento de uma
Nação. Há contradições e lutas, há encontros e desencontros. O falar de Egas Moniz
no texto é significativo: o que é que queremos, hoje? A maioria hesita, resmunga,
alguns afirmam, uns após outros: queremos o que é nosso; queremos sentar-nos
onde antes nos sentávamos; queremos ser nós a escolher o nosso caminho. Um de entre
eles desembainha a espada e bate com o punho na mesa, acalmam-se os ânimos, olha
em redor da mesa e depois projecta a voz: queremos, como antes, decidir no que é
nosso. Queremos, como antes, entregar os nossos impostos a quem queremos que sejam
entregues, recrudesce o rumor.
É a vontade dos barões de Entre-Douro-e-Minho
que se sente e que prevalece, perante o conflito inexorável que atravessava a Galiza,
com suas velhas aspirações autonomistas (até eclesiásticas, com o arcebispo
Diego Gelmírez) na esfera do reino de Leão. Dona Teresa tem ambições nítidas no
Reino que fora de seu pai e intitula-se Rainha por força dessa genealogia.
No entanto, quer o conde Henrique, quer a nobreza que aconselha o jovem Afonso
tinham outras ideias. Havia que caminhar para sul. E um dilema trágico pesa sobre
os ombros do jovem Infante: é para mim que passa o fardo de tal traição... Como
é também sobre mim que recai o dever da reparação…» In José Carlos Oliveira, D. Afonso
Henriques, O Primeiro Herói, 2016, Oficina do Livro, 2016, ISBN
978-989-741-419-0.
Cortesia de OdoLivro/JDACT