segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Ensaio. 1258-1264. História Política. O Triunfo da Monarquia Portuguesa. José Mattoso. «O interdito consistia na proibição de celebrar ofícios litúrgicos públicos nos lugares sobre os quais recaía até se dar a reparação exigida pela autoridade eclesiástica»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Sucessão (1259-1263)
«(…) De facto, a condessa Matilde não tinha ficado muito feliz com o segundo casamento de seu marido. Da documentação actualmente existente, e que consta, sobretudo, de um conjunto de bulas pontifícias, podem deduzir-se os principais passos do processo canónico desencadeado por ela e a que o nosso rei contrapôs, segundo parece, um prudente e sepulcral silêncio. Sem nos prendermos com as veementes e escandalizadas expressões da cúria papal, que acentuavam a gravidade moral do triplo pecado régio (adultério, bigamia e incesto), vejamos quais as fases do processo canónico. Em primeiro lugar, a condessa Matilde queixou-se ao papa, não sabemos em que data. Sem ilusões quanto à eventualidade de poder reaver o marido, pedia a separação e a restituição do seu dote (a separação implicava a cessação do direito e dever de coabitar e a separação de bens. O direito canónico admitia a separação, mas não autorizava um novo matrimónio a nenhum dos cônjuges). O pontífice mandou ao arcebispo de Compostela, pela bula Exposuit nobis de 13 de Maio de 1255, que citasse Afonso III, intimando-o a apresentar-se na cúria papal dentro de quatro meses para se submeter a julgamento canónico. Na mesma data, e por bula com o mesmo incipit, o papa ordenava ao rei de França que não obrigasse a condessa a coabitar com seu marido. Teria o piedoso S. Luís querido persuadir a condessa a vir para Portugal para viver com o seu marido? Se assim era, o papa não considerou a ideia muito prudente. Nenhum leitor ficará admirado se lhe dissermos que o rei ignorou por completo a intimação. Já nessa época se conhecia o método de ganhar processos por meio de recursos dilatórios. O silêncio era, portanto, a melhor táctica. Segundo parece, houve ainda uma segunda citação com o mesmo resultado. Mas a condessa continuou a lutar pela sua dignidade. Nomeou um procurador para tratar do caso na cúria, um tal mestre Pedro, cónego de Nesle, que reclamou novamente a separação dos cônjuges, a restituição do dote e a privação de qualquer direito de Afonso sobre bens da condessa. O papa, dada a não comparência do réu, decretou a separação nos termos reclamados e tornou-a pública por meio da bula Presidente rationis imperio no dia 26 de Julho de 1256. Ora Afonso não restituiu o dote, permanecia em situação de bigamia e continuava a não comparecer na cúria romana por si nem por meio de nenhum procurador. O papa Alexandre IV, por mais benevolente que desejasse ser para com o rei, não podia fazer de conta que ignorava o escândalo, sob pena de perder a sua autoridade numa matéria como esta, em que era evidente (para os homens da época, é óbvio) a obrigação de os príncipes respeitarem a autoridade pontifícia: era um caso flagrante de superioridade da autoridade espiritual sobre a autoridade temporal ratione peccati.
Por isso, na bula Sicut de virtute de 2 de Abril de 1258, dirigida ao próprio rei de Portugal e com outro exemplar endereçado ao arcebispo de Braga, Alexandre IV repete a sentença de separação entre Afonso e Matilde e comunica que, se o rei não se separasse de Beatriz, ordenaria ao arcebispo de Compostela e ao bispo de Mondonhedo que proclamassem as devidas sanções canónicas. Não se conservam as bulas dirigidas a estes dois prelados, mas sabe-se, por documentos posteriores, que de facto o reino foi declarado sob interdito quarenta dias depois da respectiva sentença, ou seja, provavelmente, nos últimos meses de 1258 (não se sabe a data exacta do começo do interdito porque não se conhece quando é que os bispos nomeados pela Santa Sé proferiram a sentença. O interdito consistia na proibição de celebrar ofícios litúrgicos públicos nos lugares sobre os quais recaía até se dar a reparação exigida pela autoridade eclesiástica. No caso presente, o interdito recaía sobre todo o reino. Esta imposição afectava de maneira especial as comunidades religiosas, e sobretudo as femininas, pelo que as mais escrupulosas recorriam, por vezes, ao expediente de obterem uma licença papal para poderem ter missa celebrada pelo capelão, mas à qual só podia assistir a comunidade. Foi o que aconteceu, como veremos, com as clarissas de Santarém).
Note-se que esta data coincide com a fase final do levantamento das inquirições. Não sabendo exactamente como é que a ordem papal foi cumprida, resta-nos especular sobre o que poderia ter acontecido. Por um lado, podemos admitir que as comunicações eram lentas e que o cumprimento do interdito teria levado um certo tempo a efectuar-se, sobretudo nos locais mais distantes das cidades. Também não sabemos se todo o clero o cumpriu. Mas a estrutura eclesiástica era talvez, nessa época, a mais eficaz máquina de transmissão de decisões públicas e de notícias. Além disso, pode, neste caso, ter-se desencadeado o temor de desafiar os poderes sobrenaturais por as ordens papais não serem cumpridas. Na década de 1190, os pregadores tinham considerado as calamidades que durante duas décadas assolaram o reino, espalhando a fome e a guerra por toda a parte, como castigo divino por a rainha dona Teresa, filha de Sancho I, ter resistido durante anos à sentença de separação de seu marido, o rei Afonso IX de Leão, por impedimento de parentesco. Estes acontecimentos dramáticos estavam ainda na memória de muita gente. Ora a situação de Afonso III era talvez mais grave ainda: o concubinato e o casamento entre parentes eram amplamente tolerados, mas a bigamia constituía grave escândalo. É, portanto, provável que o conhecimento do interdito se espalhasse depressa e que a sua execução se generalizasse amplamente». In José Mattoso, O Triunfo da Monarquia Portuguesa, 1258-1264, Ensaio de História Política, Revista Análise Social, vol. XXXV, 2001.

Cortesia de RAnáliseSocial/JDACT