«(…) São
os passarinhos que andam a arranjar-se para se deitarem a dormir dentro dos
seus ninhos, costumava dizer Tadeu. E ela ria-se virando a cabeça muito esperta
para a cúpula do castanheiro, a ver se descobria como se faz a toillete nocturna
dos passarinhos. Entrara, por fim, na sala. Havia grupos aqui e ali. Graves
políticos que discutiam, financeiros de abdómen volumoso, matronas severas,
rapazes elegantes, e no meio de tudo um bando de raparigas alegres, garridas, a
chilrearem, a rirem e a cochicharem entre si, contentes da nova companheira que
lhes chegava de longe, mas muito mais contentes ainda daquela atmosfera festiva
e perfumada que as envolvia. No meio desse grupo encantador é que ela estava de
pé. Um corpo deliciosamente modelado, de uma graça franzina e toda moderna. Tinha
um vestido de foulard muito justo, muito elegante, e no meio dos rolos
do seu crespo cabelo louro aninhava-se uma rosa vermelha, uma rosa cor de
sangue.
Os olhos
azuis, altivos e desdenhosamente fixos lembravam... Os olhos metálicos da sua
mãe. Pois era aquela a sua Margarida?! Era. Não lhe restava a menor dúvida.
Apesar de todas as diferenças tinha-a conhecido logo. A sua límpida testa de
criança um pouco curta, indício de obstinação e de capricho; a sua boca
pequenina, até alguma coisa dos seus gestos antigos, tudo trouxe ao coração de
Tadeu uma lufada de saudades irresistível. Correu para ela como doudo,
atravessou pelo meio de toda aquela gente, sem a menor timidez, sem o menor
receio, sem notar sequer o espanto que a sua cómica aparição tinha excitado. As
raparigas que faziam um círculo em torno de Margarida separaram-se numa súbita
explosão de risadinhas, e ela, olhando muito fixa para Tadeu, exclamou rindo,
rindo sem poder mais: Ih! Credo, primo Tadeu, que casaca!... Que figura!...
Pelo amor de Deus vá já tirar essa casaca e venha depois! E ria, ria sem disfarce,
enquanto ele com os braços quebrados, o rosto estúpido, a fisionomia
espavorida, sentia dentro da sua pobre alma sem consolo esfacelar-se,
desfazer-se, diluir-se em lágrimas de fel a última esperança da sua vida!
Três dias
depois, Margarida, que se esquecera completamente daquele insignificante episódio
em que Tadeu figurara, encontrou-o por acaso na Baixa, onde andava fazendo
compras com a sua mãe, ao lado de Henrique, que para o distrair tinha
ultimamente fingido precisar absolutamente da sua companhia. Margarida saía de
uma loja e ia a saltar ligeira, elegante com a sua graça parisiense para dentro
do coupé delicioso que,
de propósito para a filha, o marquês tinha encomendado meses antes à casa
Binder, e que dois finos cavalos ingleses esplendidamente ajaezados faziam voar
pelas ruas da nossa pacata Lisboa. A vista de Tadeu despertou-lhe umas poucas
de ideias que ainda não lhe tinham ocorrido. Lembrou se, por exemplo, de que
não o vira mais, desde o instante em que ele se apresentara à frente dela com
uns transportes ridículos e uma toillete horrorosa, na sala povoada
pelas suas novas amigas, tão irónicas, tão cruelmente maliciosas...
Porque
não tornara ela a vê-lo? Tinha-lhe esquecido perguntar por ele, fora muito
ingrata... E sem raciocinar aquele impulso estranho, parou, esperou numa
atitude de coqueterie irresistível que os dois amigos se aproximassem,
visto que ambos caminhavam na direcção em que ela
estava, e estendendo a Tadeu a sua mão esguia e fina, a sua mão de loura,
enluvada de pelica cor de bronze, disse com
uma expressão de finura e malícia intraduzível: então seu ingrato! Não me tem querido aparecer! Por
onde tem andado? E ficou a olhar para ele, como quem espera alguma coisa,
interrogadora, fascinante, sempre aristocrática. A marquesa, que já estava
dentro do trem, murmurou levemente enfastiada: então, Margarida, ficamos aqui?... E Tadeu corando,
balbuciando, resmoneava confusamente uma banal desculpa. Margarida saltou por
fim o estribo que o criado conservava desdobrado, envolvendo num olhar
magnético dos seus cintilantes olhos azuis, a bela e viril figura de Henrique Sousa, que
presenciara mudo aquela cena inexplicável». In Maria Amália Vaz de Carvalho, Contos
Fantasias e Reflexões (da primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências
de Lisboa), 1880, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ePub, Uma História
Verdadeira, Wikipedia.
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