sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Contos e Fantasias Maria Amália Carvalho. «Tinha-o tornado uma máquina de fazer contas, contas de somar, de repartir, de multiplicar, o inferno! Não pudera ir, mas esperava vê-la logo que ela chegasse…»

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«(…) Ganhava o pão que comia. Era um escriturário humilde, mas tinha direito a dizer que não dependia de ninguém.
No dia em que Tadeu soube que Margarida ia chegar, a sensação que fez vibrar todo o seu ser, foi violenta de mais para que possa ser descrita. Acudiram-lhe em tropel, desordenadamente, numa confusão louca, todas as lembranças do passado, todas as queridas visões daqueles nove anos de êxtase que ele vivera. Estava tudo intacto num cantinho luminoso da sua alma, onde ele não entrava com medo de fazer fugir as avezinhas azuis que eram as suas saudades. Margarida! Bebé! A sua alegria! A loura cabecinha encaracolada, os olhos cor de azul, límpidos, transparentes, cristalinos, como um céu de Primavera! Os pequeninos braços gordos e nédios! A boquinha risonha! A voz musical, uma voz de cotovia acordando os ecos da alvorada! Todo aquele conjunto de graças ia ser dele outra vez. Com que delicia sôfrega ele não beijaria os pezinhos da sua fada pequenina e loura! Como lhe contaria tudo que tinha passado longe dela! As saudades sem consolo, as lágrimas que chorara, as humilhações que sofrera no meio daqueles perversos de faces rosadas e imberbes, que se tinham constituído em algozes da sua fraqueza e do seu desamparo! Oh! Amá-la-ia tanto e tanto, que ela havia de dar-lhe por força um bocadinho de afecto, e esse bocadinho só bastaria a torná-lo mais feliz do que um rei.
Margarida! E ao repetir baixinho com um calafrio de prazer este nome querido, via saltar num raio de sol uma figurinha esbelta, graciosa, de fato muito curto e muito simples, um vestido branco, um cinto azul, um bibe de cercadura bordada, onde as amoras colhidas por ele tinham posto uma mancha vermelha, com os espessos cabelos louros em anéis soltos, e uma risada a vibrar ainda em torno dela como um rosário de pérolas que se desfiasse dentro de um cofre de cristal. Henrique julgou que ele endoidecia, e Joaninha com a sua voz velada, onde havia uns toques de doçura maternal, dizia-lhe: mas olhe que ela é uma senhora! Já não pode ser a mesma. Não tenha uma esperança que vai converter-se-lhe em martírio! A minha Margarida, repetia ele alheado, meio louco! A minha filhinha adorada! Nunca tive uma alegria que dela me não viesse! Todos me tratavam mal, só ela gostava de mim e me queria sempre ao seu lado. Hás-de vê-la, meu Henrique, verás se há no mundo uma criança mais linda, mais mimosa, é uma fada, é uma pérola, é a minha única amiga neste mundo!
No dia seguinte à hora em que uma brilhante festa de família, uma espécie de baile muito íntimo, reunia nas salas do marquês todos os parentes, aliados e amigos que vinham solenizar a chegada da sua filha e herdeira, Tadeu na pequenina sala de jantar de Henrique, dobrado sobre o peitoril da janela numa postura de desolação e de abandono, soluçava baixinho, ao pé de Joaninha, que tentava em vão consola-lo. Estava de casaca, coitadinho; Joana não seria capaz de rir do desgraçado, mas como a casaca lhe ficava mal! Tinha-se vestido para assistir ao jantar. Antes do jantar não conseguira ver Margarida. A sra. Margarida vinha muito cansada, estava no seu quarto. Dormia. Não havia maneira de a acordar.
Eis as secas respostas que as criadas, aquelas perversas, tinham dado ás suplicas frenéticas do pobre Tadeu. Enquanto a ir ao encontro dela como tanto sonhara, não tinha podido. O seu tio, agora que lhe descobrira algum préstimo, muito secundário, é verdade, mas um préstimo em todo o caso, abusava dele horrorosamente. Tinha-o tornado uma máquina de fazer contas, contas de somar, de repartir, de multiplicar, o inferno! Não pudera ir, mas esperava vê-la logo que ela chegasse, vê-la só, poder beijar-lhe as mãos, a testa, os cabelos, os pés! Vesti-la toda de beijos como dantes! E depois sabia que também ela havia de ter saudades! Que também se havia de lembrar muito do seu amigo, do seu Tadeu, do seu cão fiel! Estava impaciente, estava no ar. Mas quando teve a certeza de que só a veria na sala, foi vestir-se logo, envergou uma casaca do seu pai que este mandara arranjar para ele, uma casaca muito larga, já fora da moda, de pano azulado. Que lhe importava! Ia vê-la! Vê-la era o céu. Vinha-lhe à lembrança aquele ninho de melros que apanhara um dia, sabe Deus com que trabalho, para lhe dar, e o dia em que ela lhe pedira a lua com um gravidade tão cómica, apontando para o tanque, e o balouço que ambos tinham projectado fazer, e as hisrias que ele lhe contava debaixo do castanheiro à tarde, enquanto a música do piano suspirava ao longe, e havia no ar uns rumores indefinidos de que ela lhe perguntava a explicação». In Maria Amália Vaz de Carvalho, Contos Fantasias e Reflexões (da primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências de Lisboa), 1880, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ePub, Uma História Verdadeira, Wikipedia.

Cortesia de LLivros/JDACT