quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Nas Asas do Tempo. Diana Gabaldon. «Agora, assombra o porão onde foi assassinado, excepto na data de aniversário da sua morte e nos quatro Dias Antigos. Dias Antigos?»

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«(…) Atravessamos juntos o portão, rindo, e Frank parou para que eu subisse os estreitos degraus da entrada à sua frente. De repente, agarrou-me pelo braço. Cuidado! Não pise nisso aí! Parei com o pé cuidadosamente erguido acima de uma grande mancha vermelho-amarronzada no degrau superior. Que estranho, disse. A sra. Baird esfrega os degraus todas as manhãs; eu já vi. O que acha que pode ser isso? Frank inclinou-se sobre o degrau, delicadamente procurando sentir o cheiro. Assim de improviso, eu diria que se trata de sangue. Sangue! Recuei um passo. De quem? Olhei nervosamente para a casa. Acha que a sra. Baird sofreu algum tipo de acidente? Não podia imaginar a nossa imaculada senhoria deixando manchas de sangue secando na soleira da porta, a não ser que uma enorme catástrofe tivesse ocorrido. Imaginei por um instante se a sala de visitas não estaria abrigando um assassino ensandecido, preparando-se naquele mesmo instante para saltar sobre nós com um grito arrepiante. Frank sacudiu a cabeça. Ficou na ponta dos pés para espreitar o jardim do vizinho por cima da cerca viva. Acho que não. Há uma mancha igual a essa na entrada da casa dos Collins também. É mesmo? Cheguei mais perto de Frank, tanto para olhar por cima da cerca quanto em busca de apoio moral. As Highlands dificilmente pareceriam um lugar provável para um assassinato em massa, por outro lado eu duvidava que essas pessoas usassem qualquer tipo de critério lógico ao escolher o local do crime. Isso é um tanto..., desagradável, observei. Não havia nenhum sinal de vida na casa ao lado. O que acha que aconteceu? Frank franziu a testa, pensando, depois bateu a mão rapidamente na perna da calça, como se tivesse uma súbita inspiração. Acho que sei! Espere um instante. Partiu em direcção ao portão e começou a descer a rua quase correndo, deixando-me desamparada na entrada da casa. Voltou logo depois, radiante com a confirmação. Sim, isso mesmo, tem que ser. Todas as casas deste lado tiveram isso. Isso o quê? A visita de um maníaco homicida?, perguntei um pouco rispidamente, ainda nervosa por ter sido bruscamente abandonada sozinha, na companhia apenas de uma grande mancha de sangue. Frank riu.
Não, um sacrifício ritual. Fascinante! Estava de quatro na relva, examinando atentamente a poça de sangue. Aquilo não me parecia nada melhor do que um maníaco homicida. Agachei-me ao lado dele, contorcendo o nariz diante do cheiro. Ainda era cedo para moscas, mas dois mosquitos das Highlands, grandes e lentos, giravam em torno da mancha. O que quer dizer com sacrifício ritual?, indaguei. A sra. Baird frequenta a igreja, assim como todos os seus vizinhos. Isso aqui não é o Monte dos Druidas ou nada semelhante, não é? Levantou-se, limpando os pedacinhos de relva das calças. Não há nenhum lugar na Terra com mais magia e superstições antigas influenciando o quotidiano das pessoas do que as Highlands. Com ou sem igreja, a sra. Baird acredita nas lendas dos povos antigos, assim como todos os seus vizinhos. -Apontou para a mancha com o bico do sapato perfeitamente engraxado. O sangue é de um galo preto, explicou, satisfeito. As casas são novas, sabe. Pré-fabricadas. Olhei-o friamente. Se acha que isso explica tudo, pense melhor. Que diferença faz a idade das casas? E afinal, onde está o universo?
No pub, eu acho. Vamos até lá verificar? Tomando-me pelo braço, conduziu-me pelo portão e começamos a descer a Gereside Road. Antigamente, ele explicou conforme andávamos, e não faz tanto tempo assim, quando uma casa era construída, era costume matar alguém e enterrá-lo nos alicerces, como uma oferenda aos espíritos da terra. Sabe, ali ele lançará os alicerces ao seu primogénito e no seu filho mais novo erguerá os portões. Antigo como os montes. Estremeci diante da citação. Nesse caso, suponho que seja bem mais moderno e compreensível que estejam usando galinhas. Quer dizer, já que as casas são relativamente novas, nada foi enterrado sob elas e os moradores agora estão tentando remediar a omissão. Exactamente. Frank parecia satisfeito com meu progresso e deu uns tapinhas nas minhas costas. Segundo o vigário, muitos dos habitantes locais acham que a guerra foi em parte causada pelo facto de as pessoas estarem abandonando as suas raízes e deixando de tomar as devidas precauções, como enterrar uma oferenda sob os alicerces das casas ou queimar espinhas de peixes na lareira. Excepto hadoques, é claro. Sabia? Ou nunca mais pescará um. Ao invés disso, sempre enterre as espinhas de um hadoque.
Vou-me lembrar disso, prometi. Diga-me o que se deve fazer para nunca mais ver um arenque e eu o farei imediatamente. Ele sacudiu a cabeça, absorto num de seus acessos de lembrança, aqueles breves períodos de êxtase erudito quando ele perdia o contacto com o mundo à sua volta, completamente empenhado em evocar conhecimentos de todas as fontes. Não sei nada sobre arenques, disse, distraído. Mas para ratos, penduram-se ramos de choupo tremedor por toda parte. Choupo treme-dor na casa, e nunca verá um rato, como se diz. Quanto a corpos nos alicerces..., é daí que vêm muitos dos fantasmas locais. Conhece Mountgerald, a casa grande no final da High Street? Há um fantasma lá, um operário que trabalhava na construção da casa e foi assassinado em sacrifício para os alicerces. Em algum momento do século XVIII; isso, na verdade, é bastante recente, acrescentou, pensativamente. Diz-se que, por ordem do dono da casa, uma parede foi construída primeiro, depois um bloco de pedra foi empurrado de cima da parede sobre um dos operários. Provavelmente algum sujeito de que ninguém gostava foi escolhido para o sacrifício. Então, ele foi enterrado no porão e o resto da casa foi construído sobre ele. Agora, assombra o porão onde foi assassinado, excepto na data de aniversário da sua morte e nos quatro Dias Antigos. Dias Antigos?» In Diana Gabaldon, Nas Asas do Tempo, 1991, Casa das Letras, LeYa, 2010, 2016, ISBN 978-972-461-974-3.

Cortesia das CdasLetras/JDACT